Tem uma banda chamada Hotel Santa Clara da qual gosto muito. Eles são daqui de Porto Alegre mas fazem um som em inglês, que chamam de twee-pop, um estilo de folk/pop britânico. Só que o som deles é muito melhor do que o fabricado em terras bretãs. Não que eu seja ou não um fã da música britânica, mas é que eles são muito bons. Mesmo.
Lá por 2009 eles postaram várias músicas apaixonantes no Myspace. Descobri-os através da minha irmã, que me mostrou um clipe de uma música, chamada Hopefully Foolness, e eu pirei. Depois achei outras músicas, Witty Song, Fitting Silhouettes, Cold as Your Heart, boa, linda, ótima. Apesar das gravações serem demos, a qualidade musical do grupo era inegável. Eles têm um vocalista muito bom que, apesar de não cantar em todas as músicas, tem voz, pronúncia e timbre invejáveis para qualquer banda, nacional ou internacional.
A Hotel Santa Clara é uma big band, ou seja, tem músico a dar com pau: tecladista, trompetista, violinista, três vocalistas e o combo guitarras-baixo-bateria. Não esqueço até hoje um show deles em 2009, o único que assisti: eu, minha irmã e o então namorado dela, num estabelecimento que mais parecia uma casa, sem palco. A banda tocava no nível da plateia. Era a noite inaugural da Tweepopnight, a primeira festa de twee-pop de Porto Alegre. A sala onde seria realizado o show era pequena, e parecia ainda menor pelo fato de haver uma cortina tapando metade dela. O show começou com dois membros do HSC tocando uma música acústica, bonita, mas simples, à frente da cortina. Só que, perto do final da canção... BAM! As cortinas caem e revelam, além de todo o resto da banda, um palco decorado com nuvens de cartolina, charmosamente simples. Todos os instrumentistas se juntam à música numa orgia sonora. É de deixar qualquer um extasiado. Inesquecível. Lá jurei meus votos de fã, e a minha irmã comprou um bottom escrito I (coração) HSC.
No mesmo 2009 eles anunciaram um CD por vir, e eu me beliscava de antecipação. A cena musical da época era favorável ao lançamento: Mallu Magalhães estava em alta fazendo músicas em inglês no Brasil, então o público estava pronto para receber propostas similares. Talvez, quem sabe, eles fizessem barulho no país inteiro? Talento eles tinham. Competência sonora, mais ainda. Com uma boa divulgação eles chegariam longe. Só que...
Só que não aconteceu. Porque a banda acabou.
Uns poucos meses antes do lançamento oficial do cd, a Hotel Santa Clara fechou as portas. Do nada. Num dia estavam postando notícias das gravações no Twitter, no outro não estavam mais juntos. Foi abrupto desse jeito.
Fiquei meio sem entender. Pensei que ia ser um tempo, só, mas o tempo foi passando, passando, e nada. Aí caiu a ficha que eles acabaram mesmo. E caiu a segunda ficha, que não haveria cd. Que aquelas demos, uma amostra do que a banda seria, eram o que de mais oficial restara. Até hoje escuto as músicas, mas me sinto estranho. Ninguém as conhece, por melhores que sejam. Não há ninguém que possa conversar comigo sobre elas. As próprias pessoas que as comporam já seguiram em frente e deixaram suas criações à própria sorte, melodias abandonadas no deserto da internet, para algum explorador encontrar por acidente.
Fiz todo esse preâmbulo para falar que a vida não segue uma cronologia lógica como um filme, com começo, meio e fim. Nem precisa necessariamente ser sem pé nem cabeça: pode ter pé e não ter cabeça, ou ter cabeça sem pé. Pode ser uma coisa com total sentido, de total importância, que simplesmente ficou pela metade. Como a última obra de arte do pintor, aquela que fica inacabada e é bela pelo que é, e mais ainda pelo que poderia ser. Como uma amizade que prometia muita coisa, mas foi interrompida por uma viagem ou, sei lá, pela morte. Como uma carreira interrompida por qualquer motivo. Como um relacionamento que acaba sem ter porquê.
O Myspace do Hotel Santa Clara é este, e algumas das faixas que ficaram prontas para o álbum não-lançado podem ser encontradas aqui. Talvez o fato de mais pessoas conhecerem essas músicas faça-as vivas de novo. Quem sabe.
Tem gente que acha que é mais bonito se algo belo nunca se completar, porque a promessa do que poderia ter sido é infinitamente mais bela do que a realidade blablá... Sei. Não acho. Queria muito saber como seriam várias coisas que ficaram pra trás antes de desabrochar. Inclusive a Tweepopnight, da qual nunca mais ouvi falar. Nem da casa de shows sem palco, aliás, cuja localização nunca mais encontrei. Talvez tenha sido engolida pelo passado, onde existirá eternamente. Talvez exista até hoje em alguma dimensão do espaço-tempo, hospedando bandas finadas com músicas não-gravadas, frequentada por uma plateia de gente sem face que não existe e, por isso mesmo, canta alegremente o repertório, brindando com suas cervejas de marcas falidas.
Ou talvez eu esteja enlouquecendo.
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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
sábado, 20 de agosto de 2011
Ciúme
O ciúme fede. O ciúme é um sentimento vil, amargo, que faz suar, que deixa a gente com aquele mal-estar no peito, que desanima, que pode ser o colesterol, mas se estiver tudo em ordem, então não há engano, é ciúme. É ruim. E é besta, porque ciúme sempre é besta. Não há ciúme inteligente, racional. O ciúme é mimado, bobo. E o problema é que todos sentem, por mais racionais que sejam, porque o ciúme é próprio da natureza humana. Algo a ver com a evolução, o instinto de guardar os genes do parceiro para si, a fim de não perdê-lo para a concorrência. Para não sentir ciúme, é preciso abdicar de sua humanidade; para não sentir ciúme, é preciso ser sobrehumano.
É assim que é o Vílson. O Vílson é um cara mirradinho, fala pouco, apesar de ser bem simpático, e é muito sereno. Vílson, claro, é um nome inventado, para preservar a fonte. E o Vílson namora uma gostosa, e o pior tipo de gostosa: a que sabe que é gostosa. A gostosa da namorada do Vílson sabe que é gostosa e adora ser visada, ficar de papo-furado com outros homens, rir, flertar e deixá-los loucos. E o pior, faz isso na frente do namorado. É bizarro ver o Vílson e a namorada com os amigos: o Vílson fica lá, sentado com os seus cinquenta e cinco quilos numa cadeira, bem sereno, enquanto a namorada faz a social. Você, um novato no grupo, não entende: os dois chegaram juntos, de mãos dadas, e agora a namorada nem dá bola pro Vílson. Você resolve tirar a dúvida:
- Aqueles dois são namorados, mesmo?
- Ela e o Vílson? Acho que são - responde o outro.
E a namorada do Vílson, só de risadinhas. Ela faz graça para o grupo, formado só por por homens mais fortes e altos que o Vílson e com olhares maliciosos que fariam qualquer garotinha inocente corar. A namorada do Vílson anuncia que foi pra praia no fim de semana e ficou com marquinha, querem ver? Todos concordam, e ela afasta a alça do sutiã para que vejam que, sim, lá está a marquinha. Um dos caras senta-se e pergunta se a namorada do Vílson quer sentar no seu colo, o que ela prontamente faz. Você leva a mão à boca:
- Esses aí não eram pra ser os amigos do cara?! - você pergunta, com um leve desespero na voz.
Seu amigo dá de ombros. Um dos caras elogia os cabelos da namorada do Vílson, passa a mão neles; ela dá um risinho. E o Vílson, apesar de sentado bem de frente da cena, parece se entreter observando o cadarço desamarrado. Você, compadecido, vai puxar papo, sei lá, consolar o cara. O Vílson é gente-fina, vocês conversam amenidades, ele não desvia o olhar por nem um momento para ver onde está a namorada. Você é surpreendido pela própria, que debruça-se no seu ombro para falar, com voz manhosa, que tem que ir embora, amanhã tem cursinho. Enquanto ela se despede dos garotos, você tem a impressão que um deles passa a mão na bunda dela.
Como explicar o comportamento apático do Vílson? Sua não somente inação, mas total desinteresse nos supostos rivais amorosos, que rodeiam sua garota como lobos em volta de carne seca? Só há uma explicação.
O Vílson atingiu o Nirvana.
Sim, o Vílson não é mais um de nós. Ele está em outro plano. Sua alma não se corrompe com preocupações terrenas como a baixa do dólar ou o ciúme. Os outros são somente punhados de pó perdidos na existência. Buda já dizia que as posses não são posses, pois um homem jamais possuirá nada na sua essência. Ninguém nunca o fez, mas tenho certeza que quem entrar no quarto do Vílson à noite vai vê-lo meditanto na posição de lótus, enquanto recita o mantra secreto do Bodhisattva, aquele mesmo que o quarto Dalai Lama utilizou quando tentou dormir numa caverna cheia de mosquitos, goteiras e música ambiente da Enya. Só isso explica a sua paz de espírito. Explica até o seu peso. Ninguém deve engordar se alimentando só de luz.
Atingir a iluminação é o único jeito de eliminar o ciúme. De outra forma, temos que aprender a conviver com ele, nem nos repreendendo, nem repreendendo a outra pessoa por coisas que só acontecem na nossa cabeça. Um pouquinho vai doer. Mas é uma dor administrável.
Agora, o que ninguém consegue saber é o que a namorada do Vílson viu nele, que é magricela, feio e sem dinheiro. Talvez, insatisfeita com apenas um homem, ela tenha ficado com uma opção que lhe permita ter vários ao mesmo tempo. Ou talvez ela tenha sido atraída pelos prazeres exóticos do sexo tântrico. Ah, os mistérios do Oriente...
É assim que é o Vílson. O Vílson é um cara mirradinho, fala pouco, apesar de ser bem simpático, e é muito sereno. Vílson, claro, é um nome inventado, para preservar a fonte. E o Vílson namora uma gostosa, e o pior tipo de gostosa: a que sabe que é gostosa. A gostosa da namorada do Vílson sabe que é gostosa e adora ser visada, ficar de papo-furado com outros homens, rir, flertar e deixá-los loucos. E o pior, faz isso na frente do namorado. É bizarro ver o Vílson e a namorada com os amigos: o Vílson fica lá, sentado com os seus cinquenta e cinco quilos numa cadeira, bem sereno, enquanto a namorada faz a social. Você, um novato no grupo, não entende: os dois chegaram juntos, de mãos dadas, e agora a namorada nem dá bola pro Vílson. Você resolve tirar a dúvida:
- Aqueles dois são namorados, mesmo?
- Ela e o Vílson? Acho que são - responde o outro.
E a namorada do Vílson, só de risadinhas. Ela faz graça para o grupo, formado só por por homens mais fortes e altos que o Vílson e com olhares maliciosos que fariam qualquer garotinha inocente corar. A namorada do Vílson anuncia que foi pra praia no fim de semana e ficou com marquinha, querem ver? Todos concordam, e ela afasta a alça do sutiã para que vejam que, sim, lá está a marquinha. Um dos caras senta-se e pergunta se a namorada do Vílson quer sentar no seu colo, o que ela prontamente faz. Você leva a mão à boca:
- Esses aí não eram pra ser os amigos do cara?! - você pergunta, com um leve desespero na voz.
Seu amigo dá de ombros. Um dos caras elogia os cabelos da namorada do Vílson, passa a mão neles; ela dá um risinho. E o Vílson, apesar de sentado bem de frente da cena, parece se entreter observando o cadarço desamarrado. Você, compadecido, vai puxar papo, sei lá, consolar o cara. O Vílson é gente-fina, vocês conversam amenidades, ele não desvia o olhar por nem um momento para ver onde está a namorada. Você é surpreendido pela própria, que debruça-se no seu ombro para falar, com voz manhosa, que tem que ir embora, amanhã tem cursinho. Enquanto ela se despede dos garotos, você tem a impressão que um deles passa a mão na bunda dela.
Como explicar o comportamento apático do Vílson? Sua não somente inação, mas total desinteresse nos supostos rivais amorosos, que rodeiam sua garota como lobos em volta de carne seca? Só há uma explicação.
O Vílson atingiu o Nirvana.
Sim, o Vílson não é mais um de nós. Ele está em outro plano. Sua alma não se corrompe com preocupações terrenas como a baixa do dólar ou o ciúme. Os outros são somente punhados de pó perdidos na existência. Buda já dizia que as posses não são posses, pois um homem jamais possuirá nada na sua essência. Ninguém nunca o fez, mas tenho certeza que quem entrar no quarto do Vílson à noite vai vê-lo meditanto na posição de lótus, enquanto recita o mantra secreto do Bodhisattva, aquele mesmo que o quarto Dalai Lama utilizou quando tentou dormir numa caverna cheia de mosquitos, goteiras e música ambiente da Enya. Só isso explica a sua paz de espírito. Explica até o seu peso. Ninguém deve engordar se alimentando só de luz.
Atingir a iluminação é o único jeito de eliminar o ciúme. De outra forma, temos que aprender a conviver com ele, nem nos repreendendo, nem repreendendo a outra pessoa por coisas que só acontecem na nossa cabeça. Um pouquinho vai doer. Mas é uma dor administrável.
Agora, o que ninguém consegue saber é o que a namorada do Vílson viu nele, que é magricela, feio e sem dinheiro. Talvez, insatisfeita com apenas um homem, ela tenha ficado com uma opção que lhe permita ter vários ao mesmo tempo. Ou talvez ela tenha sido atraída pelos prazeres exóticos do sexo tântrico. Ah, os mistérios do Oriente...
terça-feira, 26 de abril de 2011
Páscoa atrasada
A Páscoa tem símbolos muito fortes, os quais todos nós aprendemos nas aulinhas de religião do colégio. De cabeça, agora, eu me lembro daquela vela grande, que tinha um nome especial mas eu não me recordo qual agora (círio pascal?), o coelho e o ovo. Eles, apesar de não estarem presentes na história de Cristo, têm um significado relacionado à ressurreição: o ovo, obviamente, representa a vida, e o coelho também, por sua enorme capacidade de reprodução. Tudo muito subjetivo, muito semiológico. O problema é quando se interpreta esses símbolos de forma literal. Daí, surgem aberrações como o Coelhinho da Páscoa.
Peguei-me pensando no último domingo sobre o que é o Coelhinho da Páscoa. Ele une o ovo e o coelho, os dois maiores símbolos pascais (pascais?), numa representação literal, uma entidade física da Páscoa, mas que não faz sentido nenhum. O que se sabe sobre o Coelhinho da Páscoa é que ele é um coelho, sim, e aparece na Páscoa para esconder ninhos com ovos de chocolate nas residências onde há crianças. Só que coelho não bota ovo. Muito menos de chocolate. Na tentativa de criar um mascote para a data (acho que Jesus não era o suficiente), eles uniram dois símbolos que, juntos, não têm nenhuma coerência. Me pergunto até hoje como eu, que fui uma criança letrada e inteligente, pude cair por tanto tempo numa farsa tão sem sentido.
Acho que os marqueteiros que inventaram o Coelhinho da Páscoa miraram-se no Papai Noel, representante do Natal, para criar o garoto-propaganda da Páscoa. Só que, enquanto o Papai Noel é um case de sucesso, o Coelhinho da Páscoa é uma falha de planejamento completa. É só perguntar para as crianças qual é o seu preferido. É claro que é o Papai Noel. O Papai Noel é muito mais coerente: ele tem uma residência, tem um emprego. Seu meio de locomoção, apesar de mal-explicado, é ao menos mencionado. Por fim, ele é humano. O Coelhinho da Páscoa nem um coelhinho é. É um ser antropomorfo, nem homem nem coelho. Já começa por aí. Nunca ficou clara a sua natureza, e nunca tentaram esclarecê-la. Mesmo um observador desatento não deixa de notar que não se trata de um coelho comum, pequeno, quadrúpede, e sim de um ser bípede, do tamanho de um homem, só que com cara de coelho. Isso abre margem para questionamentos mil: ele é o único de sua raça? Porque não se vê outros coelhos antropomorfizados por aí? O que ele faz no resto do ano? Se ele é meio-humano, meio-coelho, ele vive numa casa ou numa toca? E afinal, se ele é meio-humano, quer dizer que ele tem uma vida como a nossa, onde ele trabalha, paga as contas, etc?
O Papai Noel nós sabemos, ele trabalha no Pólo Norte o ano todo fazendo os brinquedos, possivelmente patrocinado por megacorporações da indústria do entretenimento infantil, que veem no velhinho um meio de divulgar seus produtos e inclusive o autorizam a usar suas patentes. Todo mundo sabe disso. O Coelhinho da Páscoa nós não sabemos nem de onde ele tira os ovos. É ele quem os bota? Qual a explicação biológica para um coelho botar ovos de chocolate? E, se ele bota ovos, não deveria ser uma coelhinha? A máscara cai frente à primeira contestação. Cuidado, Coelhinho. As crianças de hoje estão ligeiras. Elas não se enganam com a sua farsa.
Isso é um exemplo para o que não fazer ao criar um gimmick: não se deve fazer um pastiche sem critérios dos atributos ao qual se quer associar a marca. Neste caso, tentaram por todos os símbolos (bota o ovo! Bota o coelho!) num personagem só, e o resultado é um produto exagerado, não crível e que não gera empatia com o público. O Coelhinho da Páscoa é um erro. O Coelhinho da Páscoa é um insulto à capacidade crítica das crianças. O Coelhinho da Páscoa precisa de uma remodelagem urgente, sob o risco de cair no ridículo e estar fadado ao esquecimento.
***
Ou então eu estou errado e esse texto é só para extravasar a decepção de não ter ganho nenhum ovo de chocolate domingo passado. Pode ser.
Peguei-me pensando no último domingo sobre o que é o Coelhinho da Páscoa. Ele une o ovo e o coelho, os dois maiores símbolos pascais (pascais?), numa representação literal, uma entidade física da Páscoa, mas que não faz sentido nenhum. O que se sabe sobre o Coelhinho da Páscoa é que ele é um coelho, sim, e aparece na Páscoa para esconder ninhos com ovos de chocolate nas residências onde há crianças. Só que coelho não bota ovo. Muito menos de chocolate. Na tentativa de criar um mascote para a data (acho que Jesus não era o suficiente), eles uniram dois símbolos que, juntos, não têm nenhuma coerência. Me pergunto até hoje como eu, que fui uma criança letrada e inteligente, pude cair por tanto tempo numa farsa tão sem sentido.
Acho que os marqueteiros que inventaram o Coelhinho da Páscoa miraram-se no Papai Noel, representante do Natal, para criar o garoto-propaganda da Páscoa. Só que, enquanto o Papai Noel é um case de sucesso, o Coelhinho da Páscoa é uma falha de planejamento completa. É só perguntar para as crianças qual é o seu preferido. É claro que é o Papai Noel. O Papai Noel é muito mais coerente: ele tem uma residência, tem um emprego. Seu meio de locomoção, apesar de mal-explicado, é ao menos mencionado. Por fim, ele é humano. O Coelhinho da Páscoa nem um coelhinho é. É um ser antropomorfo, nem homem nem coelho. Já começa por aí. Nunca ficou clara a sua natureza, e nunca tentaram esclarecê-la. Mesmo um observador desatento não deixa de notar que não se trata de um coelho comum, pequeno, quadrúpede, e sim de um ser bípede, do tamanho de um homem, só que com cara de coelho. Isso abre margem para questionamentos mil: ele é o único de sua raça? Porque não se vê outros coelhos antropomorfizados por aí? O que ele faz no resto do ano? Se ele é meio-humano, meio-coelho, ele vive numa casa ou numa toca? E afinal, se ele é meio-humano, quer dizer que ele tem uma vida como a nossa, onde ele trabalha, paga as contas, etc?
O Papai Noel nós sabemos, ele trabalha no Pólo Norte o ano todo fazendo os brinquedos, possivelmente patrocinado por megacorporações da indústria do entretenimento infantil, que veem no velhinho um meio de divulgar seus produtos e inclusive o autorizam a usar suas patentes. Todo mundo sabe disso. O Coelhinho da Páscoa nós não sabemos nem de onde ele tira os ovos. É ele quem os bota? Qual a explicação biológica para um coelho botar ovos de chocolate? E, se ele bota ovos, não deveria ser uma coelhinha? A máscara cai frente à primeira contestação. Cuidado, Coelhinho. As crianças de hoje estão ligeiras. Elas não se enganam com a sua farsa.
Isso é um exemplo para o que não fazer ao criar um gimmick: não se deve fazer um pastiche sem critérios dos atributos ao qual se quer associar a marca. Neste caso, tentaram por todos os símbolos (bota o ovo! Bota o coelho!) num personagem só, e o resultado é um produto exagerado, não crível e que não gera empatia com o público. O Coelhinho da Páscoa é um erro. O Coelhinho da Páscoa é um insulto à capacidade crítica das crianças. O Coelhinho da Páscoa precisa de uma remodelagem urgente, sob o risco de cair no ridículo e estar fadado ao esquecimento.
***
Ou então eu estou errado e esse texto é só para extravasar a decepção de não ter ganho nenhum ovo de chocolate domingo passado. Pode ser.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
A incorporação do Rei
Nos anos oitenta, o Banco Central promovia olimpíadas entre as filiais de diferentes Estados. Sei disso porque meu pai me contou, orgulhoso, que fazia parte da seleção de futebol da filial gaúcha. Além de futebol, havia outros esportes, como vôlei e xadrez. Meu pai viajou para São Paulo para participar das finais dos jogos, junto com outros desportistas da área contábil. Entre eles, estava um enxadrista talentoso. Sabia jogar como ninguém, realmente imergia no jogo.
Meu pai usou esse cara como exemplo para provar uma teoria: a de que o Ronaldinho amarelara na final da Copa de 98.
- Impossível! Tu achas que um profissional como ele iria amarelar? - interpelou a minha mãe. - Esses jogadores estão acostumados com a pressão!
Mas esse meu colega enxadrista amarelara, disse meu pai. Era talentoso, quase profissional, e amarelara. O fato de estar acostumado com o jogo só provou ser uma desvantagem, no final. Durante a viagem para São Paulo, este enxadrista começou a passar mal. Seus colegas ficaram preocupados:
- O que foi, cara? Você está legal?
O enxadrista estava debilitado, nervoso, desamparado. Vomitara o jantar. No final, admitiu: estava estressado. Estava preocupado demais em perder. E disse uma frase que até hoje meu pai se lembra:
- Eu incorporei o Rei.
Sim, pois, quando o enxadrista entrava numa partida, não era o Rei quem estava no tabuleiro, mas ele mesmo. Olhava para o tabuleiro e via, ao invés da pecinha do Rei, a sua própria miniatura, tremendo ante o avanço das peças inimigas. O Rei era o enxadrista e o enxadrista era o Rei. Sentia como se ele próprio caísse caso o Rei fosse derrubado. A mera imaginação de perder uma partida lhe dava calafrios. Talvez fosse uma espécie de tática, jogar o jogo como se sua vida dependesse disso, mas era algo que havia fugido do controle. Ele amarelara.
- Tá, e se isso aconteceu com o meu colega, também pode ter acontecido com o Ronaldinho, hein? Hein?
Tá, pai. Talvez.
***
No filme Cisne Negro, em cartaz nos cinemas, a bailarina vivida por Natalie Portman incorpora o personagem homônimo do filme para executar a peça "O Lago dos Cisnes". Para dançar como a personagem Cisne Negro, ela passa a se comportar agressiva e lascivamente, ter alucinações de virar um pássaro e outras coisas desagradáveis. O filme foi um sucesso. Penso que algo poderia ser feito na mesma linha, um thriller psicológico com o xadrez no lugar do balé. "O Rei Negro". Ou "O Rei Branco", dependendo do lado do jogador. Como o colega de meu pai, o personagem principal seria um enxadrista paranoico que, ao se preparar para o jogo de sua vida, acaba incorporando características do Rei. Ele começa a ter alucinações com o chão de sua cozinha, quadriculado: passa a só conseguir andar um quadrado por vez. Abre o armário e enxerga todas as suas roupas pretas. Passa a mão pelos cabelos e sente uma cruz crescendo em seu couro cabeludo, mas, quando olha no espelho, ela não está lá.
O filme vai num crescendo de tensão. O enxadrista quase é pego ao tentar matar pessoas vestidas com roupas brancas em posições adjacentes à sua na fila do banco. Fugindo da polícia, tenta se proteger atrás de um bispo, que não entende nada, mas fica com medo e resolve dar abrigo ao fugitivo. O bispo veste branco. Ele mata o bispo. Depois acorda no chão da cozinha e percebe que foi tudo alucinação.
No dia da partida, ele foge do hospital onde a sua família o internou, com dificuldade, pois no estado em que está só consegue andar uma posição por vez. Finalmente chega ao local onde ocorrerá a batalha final. O enxadrista adversário já está lá. Ele se aproxima do tabuleiro, mas não consegue chegar perto. Há alguma força interferindo no movimento. Ele olha para o outro enxadrista, e percebe que este também incorporou o Rei. Os dois não conseguem se aproximar, pois dois Reis não podem ocupar espaços adjacentes. A partida é cancelada: a burocracia do xadrez vence o instinto autodestrutivo de competição.
***
Ou, pensando bem, talvez seja melhor fazer só thrillers sobre balé, mesmo.
Meu pai usou esse cara como exemplo para provar uma teoria: a de que o Ronaldinho amarelara na final da Copa de 98.
- Impossível! Tu achas que um profissional como ele iria amarelar? - interpelou a minha mãe. - Esses jogadores estão acostumados com a pressão!
Mas esse meu colega enxadrista amarelara, disse meu pai. Era talentoso, quase profissional, e amarelara. O fato de estar acostumado com o jogo só provou ser uma desvantagem, no final. Durante a viagem para São Paulo, este enxadrista começou a passar mal. Seus colegas ficaram preocupados:
- O que foi, cara? Você está legal?
O enxadrista estava debilitado, nervoso, desamparado. Vomitara o jantar. No final, admitiu: estava estressado. Estava preocupado demais em perder. E disse uma frase que até hoje meu pai se lembra:
- Eu incorporei o Rei.
Sim, pois, quando o enxadrista entrava numa partida, não era o Rei quem estava no tabuleiro, mas ele mesmo. Olhava para o tabuleiro e via, ao invés da pecinha do Rei, a sua própria miniatura, tremendo ante o avanço das peças inimigas. O Rei era o enxadrista e o enxadrista era o Rei. Sentia como se ele próprio caísse caso o Rei fosse derrubado. A mera imaginação de perder uma partida lhe dava calafrios. Talvez fosse uma espécie de tática, jogar o jogo como se sua vida dependesse disso, mas era algo que havia fugido do controle. Ele amarelara.
- Tá, e se isso aconteceu com o meu colega, também pode ter acontecido com o Ronaldinho, hein? Hein?
Tá, pai. Talvez.
***
No filme Cisne Negro, em cartaz nos cinemas, a bailarina vivida por Natalie Portman incorpora o personagem homônimo do filme para executar a peça "O Lago dos Cisnes". Para dançar como a personagem Cisne Negro, ela passa a se comportar agressiva e lascivamente, ter alucinações de virar um pássaro e outras coisas desagradáveis. O filme foi um sucesso. Penso que algo poderia ser feito na mesma linha, um thriller psicológico com o xadrez no lugar do balé. "O Rei Negro". Ou "O Rei Branco", dependendo do lado do jogador. Como o colega de meu pai, o personagem principal seria um enxadrista paranoico que, ao se preparar para o jogo de sua vida, acaba incorporando características do Rei. Ele começa a ter alucinações com o chão de sua cozinha, quadriculado: passa a só conseguir andar um quadrado por vez. Abre o armário e enxerga todas as suas roupas pretas. Passa a mão pelos cabelos e sente uma cruz crescendo em seu couro cabeludo, mas, quando olha no espelho, ela não está lá.
O filme vai num crescendo de tensão. O enxadrista quase é pego ao tentar matar pessoas vestidas com roupas brancas em posições adjacentes à sua na fila do banco. Fugindo da polícia, tenta se proteger atrás de um bispo, que não entende nada, mas fica com medo e resolve dar abrigo ao fugitivo. O bispo veste branco. Ele mata o bispo. Depois acorda no chão da cozinha e percebe que foi tudo alucinação.
No dia da partida, ele foge do hospital onde a sua família o internou, com dificuldade, pois no estado em que está só consegue andar uma posição por vez. Finalmente chega ao local onde ocorrerá a batalha final. O enxadrista adversário já está lá. Ele se aproxima do tabuleiro, mas não consegue chegar perto. Há alguma força interferindo no movimento. Ele olha para o outro enxadrista, e percebe que este também incorporou o Rei. Os dois não conseguem se aproximar, pois dois Reis não podem ocupar espaços adjacentes. A partida é cancelada: a burocracia do xadrez vence o instinto autodestrutivo de competição.
***
Ou, pensando bem, talvez seja melhor fazer só thrillers sobre balé, mesmo.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
A minha amada
Sinto saudades da minha amada. Não ouço nenhum som seu há quase dois meses, agora. Adorava quando ela cantava, às vezes só pra mim. Ela desafinava um pouco, mas eu não ligava. Amar é quando os defeitos não são defeitos, são apenas detalhes. E ser desafinada era um detalhe. Agora, nem isso mais. A melodia acabou. Nada.
Sobram as reminiscências. Nossa relação começou quando eu tinha treze anos, quase catorze. Se eu sabia que iria ser ela, desde que a vi? Não. Seria mentira se dissesse que foi amor à primeira vista. Estava entre tantas outras, experimentei várias. Não tenho medo de dizer: várias passaram pela minha mão antes dela. Ela sabe. Ela entende, nunca foi de me cobrar por isso. Sabe que as que vieram antes foram apenas testes. Eu estava atrás da certa. Com ela foi real. Por que ela, e não alguma das outras? Certamente não por algum amor platônico: o amor se desenvolveu mais tarde. Na hora em que nos encontramos pela primeira vez, achei-a simpática, no máximo. Só mais tarde fomos realmente nos encontrar.
***
Os primeiros contatos foram atrapalhados. Nem eu nem ela sabíamos o que estávamos fazendo. Passava a mão pelo seu braço, subia até o seu pescoço, roçava a parte de trás de sua cabeça. Tocava-a com a ponta dos dedos, desajeitadamente. Ela soltava gritinhos desafinados, querendo dizer que era por aí, mas eu não estava fazendo no lugar certo. Tentava de novo, mais pra cá, mais pra cá. Isso. Aos poucos fui pegando o jeito. Ninguém nasce mestre, ainda mais nessas coisas. Não sou exceção, mas acho que evoluí rápido. Aprendi quase tudo sozinho. Ou quase. Hoje em dia a internet dá um bocado de dicas, está tudo lá, um grande manual da perversão. Aos poucos já sabia como fazê-la gemer do jeito que eu queria. E ela o fazia, bem alto.
Os vizinhos ouviam, é claro, mas não tinham coragem de reclamar. Mas eu via nos olhos deles, quando nos cruzávamos nos corredores do prédio, que eles se incomodavam. Era ciúmes, eu sabia. Ciúmes das nossas demonstrações sonoras de paixão. Uma vez a minha vizinha de baixo veio reclamar pessoalmente. Sem nem ruborizar, disse que seu escritório era embaixo do meu quarto, onde eu e meu amor nos encontrávamos todas as noites. Pior: quem recebeu as reclamações foi a minha mãe, que depois me passou, meio sem graça, a mensagem da vizinha. Não ligávamos: continuávamos com nossos encontros ruidosos.
***
Nunca fui um cavalheiro no nosso relacionamento: se fui alguma coisa, era bem o oposto. Tinha dias que eu chegava da escola louco para surrá-la. E o fazia, sem compaixão nem piedade. Ela nunca reclamou, um dia sequer, mesmo depois de uma semana de surras diárias. Não me arrependo: de fato, desconfio que ela gosta. Ela gosta de ser surrada, de ser pega com força, de que eu arranhe nela. Com o tempo minha pegada foi ficando cada vez mais forte, e ela ali, aguentando e gemendo, gemendo e aguentando, mas gostando, isso sim.
Nós nos bastávamos, certamente, mas eu sempre quis mais. Queria experimentar. Ela sabia qual era a minha vontade, sempre soube: fazer uma experiência grupal. Quando finalmente achei pessoas com quem poderia rolar uma experiência legal, lá estava ela, berrando e gemendo como sempre.
Fizemos e refizemos a experiência várias vezes, quase todo mês nos encontrávamos com nossa turma de depravados. Esses encontros não podiam ser na casa de ninguém, então pagávamos um lugar e mandávamos ver. Entretanto, o grupo tinha ideias mais ambiciosas. Não, não, aquilo não era o suficiente: era preciso mais. Era preciso fazer em público. Havia lugares para isso, lugares onde as pessoas iam para ver performances grupais como as nossas, só que públicas. Não vou negar, quando foi apresentada a ideia, fui seu mais ferrenho apoiador. Talvez de todos lá eu fosse o mais doente. Já ela, eu não sei: nunca se manifestou sobre as minhas decisões. Quando eu dizia que queria fazer tal coisa, ela simplesmente ia, sem questionar. Na verdade, creio que é por um medo crescente de ser trocada. Ela sabe que não é a melhor, e que eu poderia achar uma substituta superior em todos os quesitos. Ela nunca me disse, mas acho que tem medo. Por isso talvez não tenha se manifestado em uma decisão de tamanha magnitude.
***
O show estava marcado, haveria até palco para a nossa exibição, mas ela vacilou. Não se garantiria ali, na frente de todos. Eu a amava, mas ela não era comparável às outras, iria passar vergonha. O pior é que, por mais que eu gostasse dela, por mais que eu a amasse profundamente, eu sabia que era verdade. Ela não era realmente boa. Naquele dia, subi ao palco com uma substituta, empréstimo de um amigo meu. Ele não se importou: diferente da maioria dos caras, não parecia muito apegado à sua companheira; inclusive queria se desfazer da coitada. Tentou com que eu ficasse com ela. Houve até dinheiro envolvido. Seiscentos contos, e a dita cuja era minha.
Olhei para a minha pretinha: pude sentir a sua tensão, era o seu maior pesadelo. Não troquei-a. E foi legítimo: apesar de o empréstimo de meu amigo ter seu valor, a substituta não tinha qualidades que a minha Pretinha possuía. Ela não era tão boa de agarrar, e, ainda por cima, gemia estranho. Passei a oferta. Não sei o que aconteceu com a outra: deve estar encalhada até hoje.
Tal experiência ensinou-me que a minha pretinha, que eu esnobava tanto, que eu falava tão mal, tinha sim seu valor. Com nós dois mais confiantes, achei que seria uma boa fazermos uma nova tentativa. Subimos ao palco os dois juntos, e dessa vez fiz tudo com ela, e ela se desempenhou muito bem, por sinal. Não havia nada a temer. Tá bom que foi meio estranho, tanto para nós quanto para o público. Talvez o nosso desempenho como grupo, apesar de ser muito legal para nós, não seja muito agradável de se assistir. Ainda assim, a culpa não foi dela.
***
E assim continuamos nosso casamento, até que aconteceu uma tragédia: ela emudeceu. Não emite mais som. Tentei descobrir o problema, mas foi inconclusivo. Diagnóstico dos especialistas: transformador da caixa queimada, necessita conserto. Ufa, pelo menos não foi nada com ela. Mas agora é isso: estou há dois meses sem ouvir o som da minha guitarra. Meus dedos estão sedentos por tocá-la de novo. Não que eu esteja num período de ensaios com o meu grupo, mas eu gostaria de passar meus dedos por suas cordas e ouvir o seu som mais uma vez, depois de tanto tempo.
No desespero, dá para pedir a substituta do meu amigo. Não será traição, é só necessidade física. Ela compreenderá.
Sobram as reminiscências. Nossa relação começou quando eu tinha treze anos, quase catorze. Se eu sabia que iria ser ela, desde que a vi? Não. Seria mentira se dissesse que foi amor à primeira vista. Estava entre tantas outras, experimentei várias. Não tenho medo de dizer: várias passaram pela minha mão antes dela. Ela sabe. Ela entende, nunca foi de me cobrar por isso. Sabe que as que vieram antes foram apenas testes. Eu estava atrás da certa. Com ela foi real. Por que ela, e não alguma das outras? Certamente não por algum amor platônico: o amor se desenvolveu mais tarde. Na hora em que nos encontramos pela primeira vez, achei-a simpática, no máximo. Só mais tarde fomos realmente nos encontrar.
***
Os primeiros contatos foram atrapalhados. Nem eu nem ela sabíamos o que estávamos fazendo. Passava a mão pelo seu braço, subia até o seu pescoço, roçava a parte de trás de sua cabeça. Tocava-a com a ponta dos dedos, desajeitadamente. Ela soltava gritinhos desafinados, querendo dizer que era por aí, mas eu não estava fazendo no lugar certo. Tentava de novo, mais pra cá, mais pra cá. Isso. Aos poucos fui pegando o jeito. Ninguém nasce mestre, ainda mais nessas coisas. Não sou exceção, mas acho que evoluí rápido. Aprendi quase tudo sozinho. Ou quase. Hoje em dia a internet dá um bocado de dicas, está tudo lá, um grande manual da perversão. Aos poucos já sabia como fazê-la gemer do jeito que eu queria. E ela o fazia, bem alto.
Os vizinhos ouviam, é claro, mas não tinham coragem de reclamar. Mas eu via nos olhos deles, quando nos cruzávamos nos corredores do prédio, que eles se incomodavam. Era ciúmes, eu sabia. Ciúmes das nossas demonstrações sonoras de paixão. Uma vez a minha vizinha de baixo veio reclamar pessoalmente. Sem nem ruborizar, disse que seu escritório era embaixo do meu quarto, onde eu e meu amor nos encontrávamos todas as noites. Pior: quem recebeu as reclamações foi a minha mãe, que depois me passou, meio sem graça, a mensagem da vizinha. Não ligávamos: continuávamos com nossos encontros ruidosos.
***
Nunca fui um cavalheiro no nosso relacionamento: se fui alguma coisa, era bem o oposto. Tinha dias que eu chegava da escola louco para surrá-la. E o fazia, sem compaixão nem piedade. Ela nunca reclamou, um dia sequer, mesmo depois de uma semana de surras diárias. Não me arrependo: de fato, desconfio que ela gosta. Ela gosta de ser surrada, de ser pega com força, de que eu arranhe nela. Com o tempo minha pegada foi ficando cada vez mais forte, e ela ali, aguentando e gemendo, gemendo e aguentando, mas gostando, isso sim.
Nós nos bastávamos, certamente, mas eu sempre quis mais. Queria experimentar. Ela sabia qual era a minha vontade, sempre soube: fazer uma experiência grupal. Quando finalmente achei pessoas com quem poderia rolar uma experiência legal, lá estava ela, berrando e gemendo como sempre.
Fizemos e refizemos a experiência várias vezes, quase todo mês nos encontrávamos com nossa turma de depravados. Esses encontros não podiam ser na casa de ninguém, então pagávamos um lugar e mandávamos ver. Entretanto, o grupo tinha ideias mais ambiciosas. Não, não, aquilo não era o suficiente: era preciso mais. Era preciso fazer em público. Havia lugares para isso, lugares onde as pessoas iam para ver performances grupais como as nossas, só que públicas. Não vou negar, quando foi apresentada a ideia, fui seu mais ferrenho apoiador. Talvez de todos lá eu fosse o mais doente. Já ela, eu não sei: nunca se manifestou sobre as minhas decisões. Quando eu dizia que queria fazer tal coisa, ela simplesmente ia, sem questionar. Na verdade, creio que é por um medo crescente de ser trocada. Ela sabe que não é a melhor, e que eu poderia achar uma substituta superior em todos os quesitos. Ela nunca me disse, mas acho que tem medo. Por isso talvez não tenha se manifestado em uma decisão de tamanha magnitude.
***
O show estava marcado, haveria até palco para a nossa exibição, mas ela vacilou. Não se garantiria ali, na frente de todos. Eu a amava, mas ela não era comparável às outras, iria passar vergonha. O pior é que, por mais que eu gostasse dela, por mais que eu a amasse profundamente, eu sabia que era verdade. Ela não era realmente boa. Naquele dia, subi ao palco com uma substituta, empréstimo de um amigo meu. Ele não se importou: diferente da maioria dos caras, não parecia muito apegado à sua companheira; inclusive queria se desfazer da coitada. Tentou com que eu ficasse com ela. Houve até dinheiro envolvido. Seiscentos contos, e a dita cuja era minha.
Olhei para a minha pretinha: pude sentir a sua tensão, era o seu maior pesadelo. Não troquei-a. E foi legítimo: apesar de o empréstimo de meu amigo ter seu valor, a substituta não tinha qualidades que a minha Pretinha possuía. Ela não era tão boa de agarrar, e, ainda por cima, gemia estranho. Passei a oferta. Não sei o que aconteceu com a outra: deve estar encalhada até hoje.
Tal experiência ensinou-me que a minha pretinha, que eu esnobava tanto, que eu falava tão mal, tinha sim seu valor. Com nós dois mais confiantes, achei que seria uma boa fazermos uma nova tentativa. Subimos ao palco os dois juntos, e dessa vez fiz tudo com ela, e ela se desempenhou muito bem, por sinal. Não havia nada a temer. Tá bom que foi meio estranho, tanto para nós quanto para o público. Talvez o nosso desempenho como grupo, apesar de ser muito legal para nós, não seja muito agradável de se assistir. Ainda assim, a culpa não foi dela.
***
E assim continuamos nosso casamento, até que aconteceu uma tragédia: ela emudeceu. Não emite mais som. Tentei descobrir o problema, mas foi inconclusivo. Diagnóstico dos especialistas: transformador da caixa queimada, necessita conserto. Ufa, pelo menos não foi nada com ela. Mas agora é isso: estou há dois meses sem ouvir o som da minha guitarra. Meus dedos estão sedentos por tocá-la de novo. Não que eu esteja num período de ensaios com o meu grupo, mas eu gostaria de passar meus dedos por suas cordas e ouvir o seu som mais uma vez, depois de tanto tempo.
No desespero, dá para pedir a substituta do meu amigo. Não será traição, é só necessidade física. Ela compreenderá.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Resoluções
Eu nunca fiz resoluções de Ano-Novo. Sim, este post trata de resoluções, e é quase ano novo, mas não são resoluções de Ano-Novo: só coincidiram de serem feitas em Dezembro. Ainda assim, o fato de ser Ano-Novo pouco ou nada tem a ver com as minhas resoluções de Ano-Novo, digo, com as minhas resoluções. Na real, é uma só resolução. Feito esse esclarecimento, vamos a ela:
A minha resolução é fazer uma faxina na minha vida criativa. Cortar o que atrapalha. 2010 foi um ano disperso. Sabe quando você chega em casa, e tem a vontade de fazer várias coisas, e na confusão de escolher o que se faz primeiro, acaba não fazendo nada porque, de tanto pensar em fazer tanta coisa, tudo o que se quer é desopilar um pouco? Só um pouquinho, sabe? Só um tempo fora de si mesmo, de ficar com a cabeça trabalhando, trabalhando, sem conseguir expremer nada. Tem dias que eu chego em casa me sentindo uma laranja com pouco suco, da qual tentaram extrair uma jarra inteira.
Pois é, eu não fiz muito coisa nesse ano. Mas, em compensação, eu quase fiz muita coisa. Elas poderiam ter acontecido, a não ser pelo fato de que simplesmente não aconteceram.
Em busca do motivo desse nadismo crônico descobri que o problema foi justamente a vontade de fazer várias coisas novas. Queria tentar me aventurar por estilos diferentes, métodos de criação que não havia tentado. Ficava atento por novas referências. Precisava de um repertório renovado porque... porque precisava, oras! Pedra que rola não cria limo.
Essa vontade de inovar, descobri eu, é extremamente prejudicial. Exemplo: quem acompanha este blog sentiu a gutural diminuição no ritmo de postagens em comparação ao último ano. A verdade é que eu nunca parei de escrever. Nunca, antes de 2010, comecei tantos textos, e nunca deixei tantos textos incompletos. São pedaços, retalhos, alguns sem pé nem cabeça, alguns faltou a cabeça, alguns faltou o pé... esses quase foram publicados mas, mancando, tropeçaram. Falta de foco. Tantas idéias, mas não havia tempo para desenvolvê-las! Precisava produzir mais, mas... o quê? Em busca do novo, acabei não produzindo nada.
Algumas pessoas, no Ano-Novo, fazem promessas de cortar gorduras. Eu corto referências. Agora, só o básico. Sem inventar moda. Já chega de provar outras comidas e sair com um gosto ruim na boca. Tentei expandir meu universo para áreas nunca dantes navegadas, me forçar a fazer música, escrever, roteirizar coisas fora da minha zona de conforto, mas o resultado foi pífio. Não que sair da zona de conforto seja ruim, pelo contrário: é um exercício necessário à sobrevivência de qualquer artista. Mas isso tem que ser feito do jeito certo. Não adianta eu querer de cara sair criando, sei lá, uma MPB, se eu não me dispus a saber como ela funciona, se eu não me familiarizei com ela antes. Senão o máximo que farei é uma cópia malfeita. Descobri uma palavra: técnica. A técnica é o meio pelo qual se canaliza a expressão. Sem mestrar a técnica, corre-se o risco de perder toda a autenticidade quando o que se buscava era justamente novas linguagens para o autêntico.
Mas o que foi feito de tão diferente, que o leitor não viu? Pois é, nada! Eu não fiz nada, nem de igual nem de diferente. Faltou produzir. Faltou gerar material. Essa saída da zona de conforto foi tão... desconfortável, que a briga por gerar algo fora dos meus padrões de criação regulares era tão desgastante que, quando vinha alguma idéia nos novos moldes, ela era fraca, não valia o esforço de ser colocada no papel. O suco que saía era amargo demais para ser degustado. Então eu não botava nada no papel. Por isso que, nesse fim de ano, resolvi cortar as novas influências que não me levaram a lugar nenhum. Descobri que com menos se faz mais. Agora é back to basics. Hora de me reencontrar, criativamente falando.
O texto ficou confuso. Leiam tudo isso aí de novo que deve fazer mais sentido. Eu não vou reescrever.
***
Isso me remete à minha querida banda, a (até alguns meses atrás) 5 a Seco. 2010 era para ser o ano da 5 a Seco: com o novo estúdio próprio, os ensaios iriam ser mais numerosos que nunca. O que não era difícil, pois eles nunca foram numerosos. Ao invés disso, esse se revelou um ano de perdas para o grupo: perdemos um membro, que foi para a Califórnia e só volta Deus sabe quando, e perdemos metade do nosso nome. Sim, pois há, acreditem, uma outra 5 a Seco no Rio de Janeiro. Exatamente assim: 5 a Seco. Quais são as chances? Eles chegaram primeiro e, o fato que mais dói, eles são muito, muito, muito bons. Depois de alguma hesitação (foi sugerido mudar para “5 à Seco”, com um acento diferencial), o nome foi amputado, para a decepção de tantos que achavam graça nas piadinhas de cunho sexual feitas a ele. Agora é só 5. O numeral. Era isso ou mudar totalmente de nome.
O fato é que, 5 a Seco ou só 5, eu amo a minha banda. Nós temos três músicas prontas, umas quatro em trabalho e cerca de 49 jam-sessions com trinta minutos de duração cada que nunca foram aproveitadas. Ou seja, a média de produção de qualquer banda com dois anos. As pessoas olham torto para as nossas (pouquíssimas) apresentações. Elas não entendem a arte, obviamente. Tivemos que fazer alterações em O Velho Flautista, uma balada-épica de inspiração claramente Tolkienana, com um elegante dedilhado de violão clássico costurando os vocais poéticos da música, uma ode a um velho bardo que, sem ter mais o seu amor, transforma seu sentimento em uma linda canção que atrai o povoado ao seu redor. Haveria um segundo movimento, uma mudança de tempo para um ska pegado, com uma bateria a la Rodrigo Barba na era pré-Bloco do Eu Sozinho, que foi cortado devido a apelo popular. Dos próprios membros da banda. Eu achava tão legal. Acho que eles também não entendem. O inimigo vem de dentro, pelo visto.
Pois bem, o ponto é que eu havia perdido esse toque de criar as coisas que me agradem. Acabava pensando se aquilo que eu fazia era bom ou não, com base na interpretação de terceiros. E acabei esquecendo do princípio número 1 da arte, a meu ver, que é o que diz que ela nasce da expressão e do ponto de vista individual do artista. O primeiro passo para a boa arte é ser considerada boa por seu realizador, senão ela será fraca, ruim, não terá apoio do seu próprio progenitor. Não adianta eu criar um repertório que não me pertence. Se eu, o artista, não me sentir conectado com a minha produção, como eu vou querer que alguma outra pessoa o faça?
Então, de volta à minha banda: o que me faz gostar tanto dela é que criamos músicas para nós mesmos, e, se outras pessoas não a apreciarem, tudo bem. Dentro dela eu pude me manter autoral, mesmo no meu ano menos autoral de todos. Quero começar 2011 fazendo coisas que eu gosto, lendo coisas que eu quero ler, ouvindo coisas que eu ouço por prazer. Tocando músicas que só eu e o meu grupo entendemos. E recomendo que todo mundo faça isso, procure um repertório próprio, que possa chamar de seu. Mesmo que seja considerado tosco pra caramba pelos outros. É isso o que cria um diferencial criativo.
Feliz Ano-Novo a todos.
A minha resolução é fazer uma faxina na minha vida criativa. Cortar o que atrapalha. 2010 foi um ano disperso. Sabe quando você chega em casa, e tem a vontade de fazer várias coisas, e na confusão de escolher o que se faz primeiro, acaba não fazendo nada porque, de tanto pensar em fazer tanta coisa, tudo o que se quer é desopilar um pouco? Só um pouquinho, sabe? Só um tempo fora de si mesmo, de ficar com a cabeça trabalhando, trabalhando, sem conseguir expremer nada. Tem dias que eu chego em casa me sentindo uma laranja com pouco suco, da qual tentaram extrair uma jarra inteira.
Pois é, eu não fiz muito coisa nesse ano. Mas, em compensação, eu quase fiz muita coisa. Elas poderiam ter acontecido, a não ser pelo fato de que simplesmente não aconteceram.
Em busca do motivo desse nadismo crônico descobri que o problema foi justamente a vontade de fazer várias coisas novas. Queria tentar me aventurar por estilos diferentes, métodos de criação que não havia tentado. Ficava atento por novas referências. Precisava de um repertório renovado porque... porque precisava, oras! Pedra que rola não cria limo.
Essa vontade de inovar, descobri eu, é extremamente prejudicial. Exemplo: quem acompanha este blog sentiu a gutural diminuição no ritmo de postagens em comparação ao último ano. A verdade é que eu nunca parei de escrever. Nunca, antes de 2010, comecei tantos textos, e nunca deixei tantos textos incompletos. São pedaços, retalhos, alguns sem pé nem cabeça, alguns faltou a cabeça, alguns faltou o pé... esses quase foram publicados mas, mancando, tropeçaram. Falta de foco. Tantas idéias, mas não havia tempo para desenvolvê-las! Precisava produzir mais, mas... o quê? Em busca do novo, acabei não produzindo nada.
Algumas pessoas, no Ano-Novo, fazem promessas de cortar gorduras. Eu corto referências. Agora, só o básico. Sem inventar moda. Já chega de provar outras comidas e sair com um gosto ruim na boca. Tentei expandir meu universo para áreas nunca dantes navegadas, me forçar a fazer música, escrever, roteirizar coisas fora da minha zona de conforto, mas o resultado foi pífio. Não que sair da zona de conforto seja ruim, pelo contrário: é um exercício necessário à sobrevivência de qualquer artista. Mas isso tem que ser feito do jeito certo. Não adianta eu querer de cara sair criando, sei lá, uma MPB, se eu não me dispus a saber como ela funciona, se eu não me familiarizei com ela antes. Senão o máximo que farei é uma cópia malfeita. Descobri uma palavra: técnica. A técnica é o meio pelo qual se canaliza a expressão. Sem mestrar a técnica, corre-se o risco de perder toda a autenticidade quando o que se buscava era justamente novas linguagens para o autêntico.
Mas o que foi feito de tão diferente, que o leitor não viu? Pois é, nada! Eu não fiz nada, nem de igual nem de diferente. Faltou produzir. Faltou gerar material. Essa saída da zona de conforto foi tão... desconfortável, que a briga por gerar algo fora dos meus padrões de criação regulares era tão desgastante que, quando vinha alguma idéia nos novos moldes, ela era fraca, não valia o esforço de ser colocada no papel. O suco que saía era amargo demais para ser degustado. Então eu não botava nada no papel. Por isso que, nesse fim de ano, resolvi cortar as novas influências que não me levaram a lugar nenhum. Descobri que com menos se faz mais. Agora é back to basics. Hora de me reencontrar, criativamente falando.
O texto ficou confuso. Leiam tudo isso aí de novo que deve fazer mais sentido. Eu não vou reescrever.
***
Isso me remete à minha querida banda, a (até alguns meses atrás) 5 a Seco. 2010 era para ser o ano da 5 a Seco: com o novo estúdio próprio, os ensaios iriam ser mais numerosos que nunca. O que não era difícil, pois eles nunca foram numerosos. Ao invés disso, esse se revelou um ano de perdas para o grupo: perdemos um membro, que foi para a Califórnia e só volta Deus sabe quando, e perdemos metade do nosso nome. Sim, pois há, acreditem, uma outra 5 a Seco no Rio de Janeiro. Exatamente assim: 5 a Seco. Quais são as chances? Eles chegaram primeiro e, o fato que mais dói, eles são muito, muito, muito bons. Depois de alguma hesitação (foi sugerido mudar para “5 à Seco”, com um acento diferencial), o nome foi amputado, para a decepção de tantos que achavam graça nas piadinhas de cunho sexual feitas a ele. Agora é só 5. O numeral. Era isso ou mudar totalmente de nome.
O fato é que, 5 a Seco ou só 5, eu amo a minha banda. Nós temos três músicas prontas, umas quatro em trabalho e cerca de 49 jam-sessions com trinta minutos de duração cada que nunca foram aproveitadas. Ou seja, a média de produção de qualquer banda com dois anos. As pessoas olham torto para as nossas (pouquíssimas) apresentações. Elas não entendem a arte, obviamente. Tivemos que fazer alterações em O Velho Flautista, uma balada-épica de inspiração claramente Tolkienana, com um elegante dedilhado de violão clássico costurando os vocais poéticos da música, uma ode a um velho bardo que, sem ter mais o seu amor, transforma seu sentimento em uma linda canção que atrai o povoado ao seu redor. Haveria um segundo movimento, uma mudança de tempo para um ska pegado, com uma bateria a la Rodrigo Barba na era pré-Bloco do Eu Sozinho, que foi cortado devido a apelo popular. Dos próprios membros da banda. Eu achava tão legal. Acho que eles também não entendem. O inimigo vem de dentro, pelo visto.
Pois bem, o ponto é que eu havia perdido esse toque de criar as coisas que me agradem. Acabava pensando se aquilo que eu fazia era bom ou não, com base na interpretação de terceiros. E acabei esquecendo do princípio número 1 da arte, a meu ver, que é o que diz que ela nasce da expressão e do ponto de vista individual do artista. O primeiro passo para a boa arte é ser considerada boa por seu realizador, senão ela será fraca, ruim, não terá apoio do seu próprio progenitor. Não adianta eu criar um repertório que não me pertence. Se eu, o artista, não me sentir conectado com a minha produção, como eu vou querer que alguma outra pessoa o faça?
Então, de volta à minha banda: o que me faz gostar tanto dela é que criamos músicas para nós mesmos, e, se outras pessoas não a apreciarem, tudo bem. Dentro dela eu pude me manter autoral, mesmo no meu ano menos autoral de todos. Quero começar 2011 fazendo coisas que eu gosto, lendo coisas que eu quero ler, ouvindo coisas que eu ouço por prazer. Tocando músicas que só eu e o meu grupo entendemos. E recomendo que todo mundo faça isso, procure um repertório próprio, que possa chamar de seu. Mesmo que seja considerado tosco pra caramba pelos outros. É isso o que cria um diferencial criativo.
Feliz Ano-Novo a todos.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Cumprimentar ou não
Uma amiga do interior - mas que hoje mora e estuda em Porto Alegre - me perguntou hoje porque as pessoas da universidade não se cumprimentam. Disse ela que em sua cidade natal todo mundo dá um "oi" ou um "tudo bem?" quando cruza com um conhecido, mesmo que seja só um conhecido de vista. Quando a minha amiga passa por um colega e sorri, este rapidamente vira a cara, e ela não consegue entender o porquê.
Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!
***
Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.
Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.
Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.
Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.
***
Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.
***
Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.
Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.
Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!
***
Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.
Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.
Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.
Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.
***
Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.
***
Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.
Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.
domingo, 1 de agosto de 2010
Algo parecido com, mas não exatamente, uma parábola
O artigo do Marcos Rolim na Zero Hora de domigo (Maconha, porta de saída?) lembrou-me uma história de tempos atrás. O artigo fala da agora badalada pesquisa do psiquiatra Dartiu Xavier, feita no início dos anos 2000, sobre o tratamento à base de maconha para dependentes de crack. Apesar de um tanto antiga, só agora essa pesquisa tornou-se mais conhecida, depois que um grupo de neurocientistas, incluindo membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - um grupo sério de estudos psiquiátricos - posicionou-se publicamente criticando a atual legislação brasileira, que não considera a maconha uma substância medicinal nem recreativa. Para quem não sabe, a pesquisa do doutor Xavier consistiu em pedir para que cinquenta dependentes de crack experimentassem trocar a droga pela maconha. Trinta e quatro deles conseguiram deixar o crack de lado e posteriormente largaram até mesmo a maconha, ficando totalmente limpos.
Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.
Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.
Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.
Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.
Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo.
Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?
- Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.
- É, na pesquisa o doutor fez isso.
- Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.
- Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.
- Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.
- Hmm, acho que não. - disse o homem.
- Por que não?
- Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.
- Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?
- Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...
Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.
E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.
Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.
Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.
Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.
Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.
Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo.
Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?
- Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.
- É, na pesquisa o doutor fez isso.
- Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.
- Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.
- Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.
- Hmm, acho que não. - disse o homem.
- Por que não?
- Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.
- Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?
- Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...
Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.
E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
Deus e os designers
Muito mais difícil do que ser um bom físico é ser um bom designer. O bom físico entende das origens do Universo, das macroformações das galáxias, das microleis da matéria e das forças que fazem o mundo girar ao invés de quicar Infinito afora. O bom designer mestra o design. De tudo. Design é provavelmente o universo mais abrangente que existe. Não estamos falando apenas de design de móveis ou roupas ou automóveis, mas também de design de joias, livros, embalagens, interiores, webpages, e, além desses, design gráfico, de brinquedos, videogames, jogos de tabuleiro, armações de óculos...
Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.
***
Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.
***
Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.
Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.
- Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!
Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.
- Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.
- Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.
Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.
- Bravo! E o que mais?
- Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!
Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.
- Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!
- E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.
Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.
- Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.
- Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.
- Obrigado.
- Agora a parte chata...
- Sim.
- Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...
- Sim.
- ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.
- Então você quer que eu...
- Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.
- Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?
- Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?
- Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...
- Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?
- Não, tudo bem, eu faço...
- Viu? Ó, pode até deixar a orelha.
- Ok, ok.
Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.
Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.
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Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.
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Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.
Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.
- Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!
Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.
- Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.
- Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.
Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.
- Bravo! E o que mais?
- Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!
Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.
- Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!
- E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.
Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.
- Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.
- Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.
- Obrigado.
- Agora a parte chata...
- Sim.
- Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...
- Sim.
- ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.
- Então você quer que eu...
- Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.
- Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?
- Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?
- Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...
- Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?
- Não, tudo bem, eu faço...
- Viu? Ó, pode até deixar a orelha.
- Ok, ok.
Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
O mundo formal
O problema é o seguinte: as pessoas se levam a sério demais. Esse é o problema. Vivem suas vidas de forma muito séria. Usam roupas. Eu queria saber quem foi o cara que inventou as roupas. Um burocrata, com certeza. A nudez é informal. Antes, todos vivíamos peladões, na boa, sem ter que corar cada vez que cruzávamos com um conhecido (cruzar, no sentido figurado). Na hora em que os homem resolveram usar roupas (e as mulheres também), acabou-se a informalidade. Antes era tudo pele e ninguém se incomodava, depois surgiu o tecido para separar a nossa pele da dos outros, e a nós também. Não podíamos mais ficar sem roupa, era mal visto. Daí para o uso obrigatório de calças no trabalho foi um pulo.
Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.
Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.
A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.
- Como vai a vida?
- Bem, bem. Tá fazendo o quê?
- Tô estudando Farmácia. E tu?
- Fazendo cursinho. Puxado?
- Anrã. E o teu?
- Também.
- Faltou mais alguma?
- Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?
- Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.
- Tchau.
- Tchau.
São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.
Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.
Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.
- Já disse que não, Adalberto.
- Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...
- Continuo dizendo que não.
- Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.
- Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?
- Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...
- Sei, sei...
Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.
Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.
Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.
A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.
- Como vai a vida?
- Bem, bem. Tá fazendo o quê?
- Tô estudando Farmácia. E tu?
- Fazendo cursinho. Puxado?
- Anrã. E o teu?
- Também.
- Faltou mais alguma?
- Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?
- Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.
- Tchau.
- Tchau.
São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.
Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.
Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.
- Já disse que não, Adalberto.
- Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...
- Continuo dizendo que não.
- Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.
- Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?
- Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...
- Sei, sei...
Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
A linha
Fiquei revoltado e satisfeito com a matéria sobre zoofilia da Void. Revoltado porque é nojento. O satisfeito eu explico depois. Para quem não sabe, mês retrasado a Void publicou uma matéria ensinando como seduzir animais. Para o sexo. Isso. Primeiro ensinava os melindres para se dar bem com os animais domésticos, depois os da fazenda, e culminava com uma seção sobre como se divertir no oceano. Com sexo. Não tive a força de vontade necessária para ler tudo, mas tinha uma parte sensacional sobre como fazer amor com golfinhos. E digo fazer amor, porque a revista deixava sempre claro que não se tratava de abusar dos animaizinhos, e sim desfrutar de prazer conjunto. Menos mal.
Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.
E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.
Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.
Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.
O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.
Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.
E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.
Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.
Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.
O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Anedotas
Ninguém sabe como surgem nem para onde vão. Como os buracos negros, só que com graça. Mas é certo que a origem das anedotas é um mistério. Você certamente não conhece ninguém que criou uma. Você a ouviu de um amigo, que a ouviu de outro amigo, que a ouviu de quem mesmo? Não sabe. Leu em algum lugar. Piadas são de domínio popular. Nunca saberemos quem foi o gênio por trás da anedota do cachorro Nabunda. Possivelmente já morreu, e no anonimato. Enquanto isso, continuam reproduzindo a sua anedota em livrinhos de piada, que seriam bem menos rentáveis se tivessem que pagar direitos autorais pelas piadinhas.
E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:
- Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
- Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
- Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
- Tá! Então o Joãozinho...
- Sim...
- ....E um rabino gago...
- Sim...
- ...Em um avião. Já tem?
O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
- Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
- Argh!
Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.
E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.
E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.
- Você ouviu a do pontinho que...
- Não! Chega!!!
Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.
E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.
***
Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:
Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:
- Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.
- Em que você trabalha? - pergunta o outro?
- Num asilo. Médico gerontologista.
- Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.
- Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.
- Enfermeiro. Da área terminal.
O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:
- Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.
Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.
- Jornalista. Política nacional.
O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.
E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:
- Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
- Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
- Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
- Tá! Então o Joãozinho...
- Sim...
- ....E um rabino gago...
- Sim...
- ...Em um avião. Já tem?
O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
- Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
- Argh!
Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.
E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.
E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.
- Você ouviu a do pontinho que...
- Não! Chega!!!
Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.
E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.
***
Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:
Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:
- Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.
- Em que você trabalha? - pergunta o outro?
- Num asilo. Médico gerontologista.
- Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.
- Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.
- Enfermeiro. Da área terminal.
O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:
- Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.
Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.
- Jornalista. Política nacional.
O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.
sábado, 20 de março de 2010
As Águas de Março
Japoneses, por incrível que pareça, adoram bossa nova. Pagam fortunas para ver uma apresentação de João Gilberto, que, em um show na terra nipônica, foi aplaudido durante 25 minutos, talvez o aplauso mais longo da história. Prova de amor à nossa música. Talvez o melhor produto de exportação brasileiro, embora o Robin Williams possa achar que são as strippers e o pó. Mas eu divago.
O amor à bossa nova não vem, certamente, de uma identificação com a letra. Que o idioma japonês é muito diferente do português, todo mundo sabe. Nossa construção frasal não segue a mesma lógica e temos alguns milhares de caracteres a menos, só pra ficar nas disparidades mais óbvias. Mas, dentre todas as variantes do português, a do Brasil deve ser a mais estranha aos ouvidos orientais. Percebi o quanto durante uma conversa com uma estudante intercambista, Kana, sobre bossa nova. Estávamos falando de Águas de Março, e ela queria explicações sobre o nome:
- Águas de Março quer dizer água, como... eh... - e fez movimentos ondulatórios com as mãos.
- Como rio? - tentei.
- Rio! Sim sim sim!
- Ah... não. É "água" no sentido de chuva. Chuva. Tipo, que cai do céu, assim. - representei chuva com os dedos, de um modo que é meio difícil de descrever, mas vocês devem saber como é.
- Ah... sim sim.
- É porque março é último mês do verão, e no Rio de Janeiro é um mês chuvoso. Então, a chuva representa o fim do verão, que nem diz a letra. "São as águas de março fechando o verão". Chuva, fecha, verão - mais mímica.
- Ah... sim sim.
Mas eu não tinha certeza se ela tinha entendido.
- É uma música... difícil. - disse ela, referindo-se à letra.
E era mesmo. E parei pra pensar em como explicar o resto da música a ela. Mas não havia como. Porque Tom Jobim escreve que um jeito que não há como traduzir. A brasilidade está tão intríseca à música que não há como fazê-la ser entendida em nenhuma outra língua. Nem os outros países de idioma português devem entender o que é a peroba do campo, ou caingá, candeia. E que raios é um Matita Pereira?
Então, como algo escrito em um português oral mal compreendido até por mim pode tocar pessoas lá do outro lado do mundo? Eu respondo: porque o importante não é o sentido das palavras. É a musicalidade. É a melodia por trás delas, é o colchão sonoro que elas fazem para os nossos ouvidos. A sonoridade das palavras é muito mais importante do que o significado. Sem tirar o mérito de uma boa letra, mas ela é um complemento, é a cobertura do bolo, não o essencial. As palavras precisam ser melodiosas, precisam deliciar-nos, precisam ser saboreadas. Com ou sem sentido.
Já vi muita música ruim que poderia ser boa se o artista tivesse escolhido palavras diferentes. Talvez a letra até fosse bonita, mas não encaixava legal na sonoridade. O pior é quando a música fica com cara de poesia cantada. Isso existe aos montes, e continuará acontecendo, até que os letristas percebam que uma boa letra não é aquela que parece ter sido escrita por Camões, é aquela que é uma delícia de cantar. É o som antes do sentido, é o ritmo das sílabas, é a cadência sonora, é um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. É um belo horizonte. É uma febre terçã.
E é por colocar a melodia antes do sentido que Tom Jobim é amado no Brasil, no Japão, nos EUA, na Europa. Pois uma boa melodia é uma boa melodia em qualquer parte do mundo. Apesar de só ter sentido para nós - ou nem isso -, o projeto da casa, o corpo na cama, o carro enguiçado, a lama, a lama, vão soar bonito tanto aqui como na China. Ou no Japão, no caso.
O amor à bossa nova não vem, certamente, de uma identificação com a letra. Que o idioma japonês é muito diferente do português, todo mundo sabe. Nossa construção frasal não segue a mesma lógica e temos alguns milhares de caracteres a menos, só pra ficar nas disparidades mais óbvias. Mas, dentre todas as variantes do português, a do Brasil deve ser a mais estranha aos ouvidos orientais. Percebi o quanto durante uma conversa com uma estudante intercambista, Kana, sobre bossa nova. Estávamos falando de Águas de Março, e ela queria explicações sobre o nome:
- Águas de Março quer dizer água, como... eh... - e fez movimentos ondulatórios com as mãos.
- Como rio? - tentei.
- Rio! Sim sim sim!
- Ah... não. É "água" no sentido de chuva. Chuva. Tipo, que cai do céu, assim. - representei chuva com os dedos, de um modo que é meio difícil de descrever, mas vocês devem saber como é.
- Ah... sim sim.
- É porque março é último mês do verão, e no Rio de Janeiro é um mês chuvoso. Então, a chuva representa o fim do verão, que nem diz a letra. "São as águas de março fechando o verão". Chuva, fecha, verão - mais mímica.
- Ah... sim sim.
Mas eu não tinha certeza se ela tinha entendido.
- É uma música... difícil. - disse ela, referindo-se à letra.
E era mesmo. E parei pra pensar em como explicar o resto da música a ela. Mas não havia como. Porque Tom Jobim escreve que um jeito que não há como traduzir. A brasilidade está tão intríseca à música que não há como fazê-la ser entendida em nenhuma outra língua. Nem os outros países de idioma português devem entender o que é a peroba do campo, ou caingá, candeia. E que raios é um Matita Pereira?
Então, como algo escrito em um português oral mal compreendido até por mim pode tocar pessoas lá do outro lado do mundo? Eu respondo: porque o importante não é o sentido das palavras. É a musicalidade. É a melodia por trás delas, é o colchão sonoro que elas fazem para os nossos ouvidos. A sonoridade das palavras é muito mais importante do que o significado. Sem tirar o mérito de uma boa letra, mas ela é um complemento, é a cobertura do bolo, não o essencial. As palavras precisam ser melodiosas, precisam deliciar-nos, precisam ser saboreadas. Com ou sem sentido.
Já vi muita música ruim que poderia ser boa se o artista tivesse escolhido palavras diferentes. Talvez a letra até fosse bonita, mas não encaixava legal na sonoridade. O pior é quando a música fica com cara de poesia cantada. Isso existe aos montes, e continuará acontecendo, até que os letristas percebam que uma boa letra não é aquela que parece ter sido escrita por Camões, é aquela que é uma delícia de cantar. É o som antes do sentido, é o ritmo das sílabas, é a cadência sonora, é um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. É um belo horizonte. É uma febre terçã.
E é por colocar a melodia antes do sentido que Tom Jobim é amado no Brasil, no Japão, nos EUA, na Europa. Pois uma boa melodia é uma boa melodia em qualquer parte do mundo. Apesar de só ter sentido para nós - ou nem isso -, o projeto da casa, o corpo na cama, o carro enguiçado, a lama, a lama, vão soar bonito tanto aqui como na China. Ou no Japão, no caso.
sábado, 6 de março de 2010
Pensamentos sobre o Oscar
Amanhã começa a cerimônia do Oscar 2010 e todos já sabem quem é o favorito. Apesar de ser um remake de Pocahontas com aliens, Avatar promete ganhar nas principais categorias, pelo fato de ser um filme caro. Acho que é só por isso. Não tem nada de revolucionário em termos de roteiro ou construção de personagens. A parte da revolução fica por conta, é claro, das tecnologias usadas não apenas no filme normal, mas em sua versão 3D. Cada frame de Avatar levou 48 horas para ser trabalhado. Isso. Dois dias. E um segundo de filmagem tem 24 frames. Façam as contas. Não é de se impressionar que o filme levou 10 anos para ficar pronto.
A expectativa em torno de Avatar foi grande: por se tratar de uma superprodução, por ser o primeiro trabalho de James Cameron desde o mais bem sucedido filme da história, por demorar uma década para ser feito. Me ocorrem dois casos parecidos no cinema: Waterworld e Apocalypse Now. Apesar de Waterworld não possuir um diretor famoso como James Cameron, com certeza trata-se de um filme de orçamento gigantesco com um longo tempo de produção. Muito por causa de desastres nas filmagens, como a vez em que uma ilha artificial feita especialmente para o filme afundou, no maior fail da história do cinema, e foi necessário fazer outra. Apocalypse Now não difere muito: grandes gastos, problemas nas gravações, muita espera. Compartilha com Avatar a característica de ser dirigido por um grande diretor e com Waterworld os problemas de produção. A diferença é que Apocalypse Now foi um sucesso, e Waterworld naufragou nas bilheterias. Sem trocadilhos.
É certo que Avatar não é um fracasso, mas no futuro, quando seres azuis computadorizados fazendo acrobacias numa floresta computadorizada não impressionar mais ninguém, poderá acontecer de ele passar por uma reavaliação. Talvez chegue-se à conclusão de que os Na'vi não mereciam os prêmios que ganharam. Ou não? O fato de ser um marco tecnológico será o suficiente para mantê-lo relevante na história do cinema, como um daqueles clássicos indiscutíveis que não são mais questionados e apenas reverenciados pela revolução técnica? Você não pode dizer que Cidadão Kane é ruim, mesmo que no fundo ache que seja, pois logo um cinéfilo irá lembrá-lo que ele revolucionou a forma de se fazer cinema, enquanto aponta o dedo na sua cara. Avatar e suas tecnologias subiram o patamar e viraram um referencial para tudo o que virá agora, não na narrativa mas na forma de se experienciar um filme. Nesse aspecto, ele é mais importante do que o já citado e mais aclamado Apocalypse Now, e entra na mesma categoria de Cidadão Kane. Críticos de cinema, por mais que debochem do roteiro pouco criativo e da repetição de ideias, terão que se curvar às suas próprias regras e admiti-lo no panteão de filmes que moldaram a sétima arte. Estarão lá Cidadão Kane, E o Vento Levou, 2001: Uma Odisseia no Espaço e Avatar. Gostem ou não.
***
Disputando com Avatar pelo prêmio principal está Guerra ao Terror, o que é meio suspeito por duas razões: é um filme relativamente velho que não ganhou destaque no seu lançamento e é dirigido pela ex de Cameron. O tema Iraque, apesar de não estar em baixa, estava mais forte no lançamento do filme do que agora. Por que, então, um filme supostamente bom passou despercebido, a ponto de não ser lançado nos cinemas de diversos países? A bem da verdade, as críticas que tenho visto não são maravilhosas, reconhecem a qualidade do filme mas não o colocam no mesmo nível de alguns outros indicados. O que faz pensar que talvez essa coisa de Avatar versus Guerra ao Terror seja apenas para se aproveitar do fato dos diretores terem sido casados. Uma briga de casal para dar audiência é algo que faz sentido. O que não faz sentido é indicarem Amor Sem Escalas para Melhor Filme. Por cima do pano de fundo Crise Econômica, segue a fórmula de uma comédia romântica típica, como inúmeras outras que abarrotam os cinemas e atraem casais para as salas de exibição todos os fins de semana. É o filme mais fraco do diretor, o mesmo de Juno e Obrigado Por Fumar. Este último, na minha opinião, seu melhor filme, superior à Amor Sem Escalas e não mencionado no Oscar de seu ano. E a menina que faz o papel de coadjuvante é fraquíssima. Lembro que pensei ser a pior atuação que via em um bom tempo, e depois descobri que ela está concorrendo ao Oscar! É demais pra mim.
***
Sendo a disputa somente entre Avatar e Guerra ao Terror, e sendo só deles que se fala, não adiantou nada aumentar o número de indicados para Melhor Filme. Não se fala dos outros. Faltando um dia para a premiação, críticos de cinema são convidados para dar sua opinião sobre qual dos dois favoritos irá ganhar. Mas, quando perguntados sobre o seu favorito, a resposta é a mesma: Bastardos Inglórios. É, na opinião geral, o que deveria ganhar Melhor Filme, Diretor, Roteiro e o que mais tiver sido indicado, e não porque é revolucionário (até é), mas porque é muito bom. É bom demais. É muito melhor do que qualquer um dos outros dez indicados. Não tem tecnologia, não fala de um tema polêmico atual, é simplesmente mais prazeiroso de se assistir do que todos os outros. Faz brilhar os olhos de qualquer um que goste de filmes ou de uma boa história. E é o ápice de um grande diretor. Como dito na Zero Hora de hoje, se a Academia deixar de dar o Oscar a Tarantino amanhã à noite poderá cair no mesmo que cometeu com Scorcese: entregar um Oscar compensatório por um filme inferior do diretor muitos anos depois de seu melhor trabalho. Dar o Oscar à Bastardos Inglórios seria dar um tapa na cara da pressão da mídia em nome da qualidade e, de quebra, fazer o Oscar ganhar muito da credibilidade que perdeu ao longo dos anos. Não vai acontecer. Mas não custa torcer.
A expectativa em torno de Avatar foi grande: por se tratar de uma superprodução, por ser o primeiro trabalho de James Cameron desde o mais bem sucedido filme da história, por demorar uma década para ser feito. Me ocorrem dois casos parecidos no cinema: Waterworld e Apocalypse Now. Apesar de Waterworld não possuir um diretor famoso como James Cameron, com certeza trata-se de um filme de orçamento gigantesco com um longo tempo de produção. Muito por causa de desastres nas filmagens, como a vez em que uma ilha artificial feita especialmente para o filme afundou, no maior fail da história do cinema, e foi necessário fazer outra. Apocalypse Now não difere muito: grandes gastos, problemas nas gravações, muita espera. Compartilha com Avatar a característica de ser dirigido por um grande diretor e com Waterworld os problemas de produção. A diferença é que Apocalypse Now foi um sucesso, e Waterworld naufragou nas bilheterias. Sem trocadilhos.
É certo que Avatar não é um fracasso, mas no futuro, quando seres azuis computadorizados fazendo acrobacias numa floresta computadorizada não impressionar mais ninguém, poderá acontecer de ele passar por uma reavaliação. Talvez chegue-se à conclusão de que os Na'vi não mereciam os prêmios que ganharam. Ou não? O fato de ser um marco tecnológico será o suficiente para mantê-lo relevante na história do cinema, como um daqueles clássicos indiscutíveis que não são mais questionados e apenas reverenciados pela revolução técnica? Você não pode dizer que Cidadão Kane é ruim, mesmo que no fundo ache que seja, pois logo um cinéfilo irá lembrá-lo que ele revolucionou a forma de se fazer cinema, enquanto aponta o dedo na sua cara. Avatar e suas tecnologias subiram o patamar e viraram um referencial para tudo o que virá agora, não na narrativa mas na forma de se experienciar um filme. Nesse aspecto, ele é mais importante do que o já citado e mais aclamado Apocalypse Now, e entra na mesma categoria de Cidadão Kane. Críticos de cinema, por mais que debochem do roteiro pouco criativo e da repetição de ideias, terão que se curvar às suas próprias regras e admiti-lo no panteão de filmes que moldaram a sétima arte. Estarão lá Cidadão Kane, E o Vento Levou, 2001: Uma Odisseia no Espaço e Avatar. Gostem ou não.
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Disputando com Avatar pelo prêmio principal está Guerra ao Terror, o que é meio suspeito por duas razões: é um filme relativamente velho que não ganhou destaque no seu lançamento e é dirigido pela ex de Cameron. O tema Iraque, apesar de não estar em baixa, estava mais forte no lançamento do filme do que agora. Por que, então, um filme supostamente bom passou despercebido, a ponto de não ser lançado nos cinemas de diversos países? A bem da verdade, as críticas que tenho visto não são maravilhosas, reconhecem a qualidade do filme mas não o colocam no mesmo nível de alguns outros indicados. O que faz pensar que talvez essa coisa de Avatar versus Guerra ao Terror seja apenas para se aproveitar do fato dos diretores terem sido casados. Uma briga de casal para dar audiência é algo que faz sentido. O que não faz sentido é indicarem Amor Sem Escalas para Melhor Filme. Por cima do pano de fundo Crise Econômica, segue a fórmula de uma comédia romântica típica, como inúmeras outras que abarrotam os cinemas e atraem casais para as salas de exibição todos os fins de semana. É o filme mais fraco do diretor, o mesmo de Juno e Obrigado Por Fumar. Este último, na minha opinião, seu melhor filme, superior à Amor Sem Escalas e não mencionado no Oscar de seu ano. E a menina que faz o papel de coadjuvante é fraquíssima. Lembro que pensei ser a pior atuação que via em um bom tempo, e depois descobri que ela está concorrendo ao Oscar! É demais pra mim.
***
Sendo a disputa somente entre Avatar e Guerra ao Terror, e sendo só deles que se fala, não adiantou nada aumentar o número de indicados para Melhor Filme. Não se fala dos outros. Faltando um dia para a premiação, críticos de cinema são convidados para dar sua opinião sobre qual dos dois favoritos irá ganhar. Mas, quando perguntados sobre o seu favorito, a resposta é a mesma: Bastardos Inglórios. É, na opinião geral, o que deveria ganhar Melhor Filme, Diretor, Roteiro e o que mais tiver sido indicado, e não porque é revolucionário (até é), mas porque é muito bom. É bom demais. É muito melhor do que qualquer um dos outros dez indicados. Não tem tecnologia, não fala de um tema polêmico atual, é simplesmente mais prazeiroso de se assistir do que todos os outros. Faz brilhar os olhos de qualquer um que goste de filmes ou de uma boa história. E é o ápice de um grande diretor. Como dito na Zero Hora de hoje, se a Academia deixar de dar o Oscar a Tarantino amanhã à noite poderá cair no mesmo que cometeu com Scorcese: entregar um Oscar compensatório por um filme inferior do diretor muitos anos depois de seu melhor trabalho. Dar o Oscar à Bastardos Inglórios seria dar um tapa na cara da pressão da mídia em nome da qualidade e, de quebra, fazer o Oscar ganhar muito da credibilidade que perdeu ao longo dos anos. Não vai acontecer. Mas não custa torcer.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Melhores partes
A melhor cena de créditos iniciais é a de Watchmen. Sem dúvidas. Em uma sequência belíssima, eles contam tudo o que o espectador precisa saber sobre o pano de fundo da trama, através de instantes em que são tiradas fotos de eventos importantes. Sem usar uma única palavra, é mostrada a ascenção do primeiro grupo de super heróis e seu declínio, em meio a acontecimentos que levaram o mundo à tensão nuclear da Guerra Fria. O diretor também deixa pistas de que essa é uma realidade paralela à nossa, e que no mundo do filme algumas coisas aconteceram de forma diferente. O melhor exemplo para isso é a parte em que Andy Warhol mostra a sua famosa pintura das Marilyns, mas com um super-herói no lugar da diva. E, é claro, o pôster da terceira candidatura de Nixon em uma das sequências. Tudo isso embalado à "The Times They Are A-Changin'" de Bob Dylan. Ficou perfeito. E olha que eu nem gosto de Bob Dylan.
A melhor sequência de luta do cinema é aquela dos vários Agentes Smith em Matrix Reloaded. Mas ela só vale se você a viu num cinema em 2003. Na época, era o mais perfeito uso de computação gráfica já feito. Hoje os nossos olhos treinados conseguem ver quando era o Neo computadorizado e quando era o Keanu Reeves, mas na época, ah, na época tudo parecia real. Inclusive os golpes, as acrobacias e o Neo correndo nos agentes.Tudo isso numa telona de cinema. Era a prova de que qualquer loucura poderia ser filmada, desde que você tivesse o orçamento necessário. Eu vi tudo com um sorriso de ponta a ponta no rosto.
Os melhores 20 segundos iniciais de uma música são os de French Navy, do Camera Obscura. São a melhor parte. Eles resumem a música inteira. Se você não gostou dos 20 segundos iniciais, desista, você não vai gostar do resto. Agora, os 5 melhores segundos iniciais não são de French Navy, e sim de Blue Moon. Boom-da-bomm-bop-da-deem-da-deem-demm.
A melhor piada da literatura de humor está em O Guia do Mochileiro das Galáxias. Nesse livro, os personagens Arthur Dent e Ford Prefect são capturados por uma nave de alienígenas e estão numa cela, prestes a serem jogados no espaço. Arthur está desesperado. Pergunta: "nós vamos morrer?" Ford diz: "Nós vamos morrer. A não ser... espera, o que é isso?", e corre para um canto da nave. Arthur, esperançoso que o amigo tenha achado uma saída, pergunta: "o que é?". Ford responde: "isso é, isso é... não, esquece, isso não é nada. É, nós vamos morrer". A melhor sequência de humor também está nesse livro e é a sequência da baleia. Quem leu sabe.
A melhor cena drámatica em um filme é a da menininha em Crash. Um comerciante tem a sua loja depredada e e põe a culpa num homem que deveria ter consertado a tranca de sua porta. Ele vai até a casa desse homem com uma arma em punho, buscando vingança. Ao apontar a arma para ele, a filha do homem sai correndo e pula em seu colo. O comerciante se assusta e dispara. A trilha sonora chega ao clímax e por um momento você acha que tudo deu errado. Então, uma surpresa: a menina não tem um arranhão. Como por milagre, a bala sumiu antes de acertá-la. A menina diz para o pai não ter medo, pois ela está protegida. O pai a abraça forte. O comerciante olha para a cena de olhos arregalados e depois caminha para longe, perturbado o com o evento inexplicável. Que depois se explica no filme, mas mesmo assim não tira a força da cena. Não choro nem nunca chorei com um filme, mas confesso que quando vejo Crash sempre fico com um nó na garganta quando chega essa cena.
O melhor fim de música é o de Wet Sand, do Red Hot Chili Peppers. A música vai crescendo durante a sua duração. É calma e tranquila até o verso apoteótico final, onde ganha camadas de som e desemboca, depois do que só pode ser descrito como um rolo violento de bateria, no melhor solo de guitarra de John Frusciante. Mas o melhor solo ainda é o de Hotel California, do Eagles.
O melhor refrão é o de Some Might Say, do Oasis. Mas isso é gosto puramente pessoal. Existem milhares de refrões mais curtos e fáceis de cantar. Esse é enorme e difícil, o contrário do que um refrão padrão deve ser, afinal, é a parte para todo mundo cantar junto. Mas esse, sei lá. É muito bom. Ainda mais se você tenta cantar do jeito do Liam.
A melhor rima também é de Some Might Say: "and my dog's been itchin'/ itchin' in the kitchen once again". Rimar itchin' com kitchen é genial. Soa como se as palavras brincassem no seu ouvido. Itchin' in the kitchen. Experimentem falar. Outra que eu gosto é uma do Bob Marley: "tears in my eyes burn, tears in my eyes burn/ while I'm waiting, while I'm waiting for my turn". Waiting in Vain. Eu sei que o Bob fez umas letras políticas boas, mas foi nessa canção de amor que ele me surpreendeu como letrista. O personagem da música é um homem apaixonado, que espera sem desistir até seu amor ser correspondido. E essa frase ficou na minha cabeça, porque dá a dimensão da espera e da frustração. A repetição de palavras dá a ideia de espera e lentidão, num recurso muito bem usado por Bob Marley. Ou é coisa da minha cabeça, mesmo.
Eu sei que vocês tem uma lista bem melhor que a minha. Fiquem livres para criticar.
A melhor sequência de luta do cinema é aquela dos vários Agentes Smith em Matrix Reloaded. Mas ela só vale se você a viu num cinema em 2003. Na época, era o mais perfeito uso de computação gráfica já feito. Hoje os nossos olhos treinados conseguem ver quando era o Neo computadorizado e quando era o Keanu Reeves, mas na época, ah, na época tudo parecia real. Inclusive os golpes, as acrobacias e o Neo correndo nos agentes.Tudo isso numa telona de cinema. Era a prova de que qualquer loucura poderia ser filmada, desde que você tivesse o orçamento necessário. Eu vi tudo com um sorriso de ponta a ponta no rosto.
Os melhores 20 segundos iniciais de uma música são os de French Navy, do Camera Obscura. São a melhor parte. Eles resumem a música inteira. Se você não gostou dos 20 segundos iniciais, desista, você não vai gostar do resto. Agora, os 5 melhores segundos iniciais não são de French Navy, e sim de Blue Moon. Boom-da-bomm-bop-da-deem-da-deem-demm.
A melhor piada da literatura de humor está em O Guia do Mochileiro das Galáxias. Nesse livro, os personagens Arthur Dent e Ford Prefect são capturados por uma nave de alienígenas e estão numa cela, prestes a serem jogados no espaço. Arthur está desesperado. Pergunta: "nós vamos morrer?" Ford diz: "Nós vamos morrer. A não ser... espera, o que é isso?", e corre para um canto da nave. Arthur, esperançoso que o amigo tenha achado uma saída, pergunta: "o que é?". Ford responde: "isso é, isso é... não, esquece, isso não é nada. É, nós vamos morrer". A melhor sequência de humor também está nesse livro e é a sequência da baleia. Quem leu sabe.
A melhor cena drámatica em um filme é a da menininha em Crash. Um comerciante tem a sua loja depredada e e põe a culpa num homem que deveria ter consertado a tranca de sua porta. Ele vai até a casa desse homem com uma arma em punho, buscando vingança. Ao apontar a arma para ele, a filha do homem sai correndo e pula em seu colo. O comerciante se assusta e dispara. A trilha sonora chega ao clímax e por um momento você acha que tudo deu errado. Então, uma surpresa: a menina não tem um arranhão. Como por milagre, a bala sumiu antes de acertá-la. A menina diz para o pai não ter medo, pois ela está protegida. O pai a abraça forte. O comerciante olha para a cena de olhos arregalados e depois caminha para longe, perturbado o com o evento inexplicável. Que depois se explica no filme, mas mesmo assim não tira a força da cena. Não choro nem nunca chorei com um filme, mas confesso que quando vejo Crash sempre fico com um nó na garganta quando chega essa cena.
O melhor fim de música é o de Wet Sand, do Red Hot Chili Peppers. A música vai crescendo durante a sua duração. É calma e tranquila até o verso apoteótico final, onde ganha camadas de som e desemboca, depois do que só pode ser descrito como um rolo violento de bateria, no melhor solo de guitarra de John Frusciante. Mas o melhor solo ainda é o de Hotel California, do Eagles.
O melhor refrão é o de Some Might Say, do Oasis. Mas isso é gosto puramente pessoal. Existem milhares de refrões mais curtos e fáceis de cantar. Esse é enorme e difícil, o contrário do que um refrão padrão deve ser, afinal, é a parte para todo mundo cantar junto. Mas esse, sei lá. É muito bom. Ainda mais se você tenta cantar do jeito do Liam.
A melhor rima também é de Some Might Say: "and my dog's been itchin'/ itchin' in the kitchen once again". Rimar itchin' com kitchen é genial. Soa como se as palavras brincassem no seu ouvido. Itchin' in the kitchen. Experimentem falar. Outra que eu gosto é uma do Bob Marley: "tears in my eyes burn, tears in my eyes burn/ while I'm waiting, while I'm waiting for my turn". Waiting in Vain. Eu sei que o Bob fez umas letras políticas boas, mas foi nessa canção de amor que ele me surpreendeu como letrista. O personagem da música é um homem apaixonado, que espera sem desistir até seu amor ser correspondido. E essa frase ficou na minha cabeça, porque dá a dimensão da espera e da frustração. A repetição de palavras dá a ideia de espera e lentidão, num recurso muito bem usado por Bob Marley. Ou é coisa da minha cabeça, mesmo.
Eu sei que vocês tem uma lista bem melhor que a minha. Fiquem livres para criticar.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Ócio é negócio
Algo muito preocupante no mundo de hoje é a perda do ócio. As pessoas não têm mais tempo nem para perder tempo. Vivem todas ocupadas e correndo. Ah, como correm essas pessoas de hoje. Quem está sempre com pressa não tem tempo para pensar. E quem não pensa não cria. O ócio é produtivo. Acham que esta crônica nasceu do quê?
Dizem que Deus descansou no sétimo dia. Balela. Ele estava sem fazer nada desde o início da semana. Ninguém iria se propor a criar o Universo se não estivesse com muito tempo livre. Vai ver ele estava numa semana de folga, sem nada pra fazer, com a televisão pifada. Devemos o mundo ao ócio de Deus.
- Muito bem: haverão mares, e onde não houver mares haverá a terra, e montanhas, e eu acho que assim está bom.
Olha para a sua Criação por alguns minutos. Olha para o relógio. Suspira.
- Bom, acho que posso matar mais um tempinho criando Vida...
E fez as plantas, e os animais, e, num momento de maior divertimento, fez a girafa. E, na falta de um bom sitcom para ver na tevê, fez os homens e as mulheres e todos os seus problemas de relacionamento.
- Haha... esses hominídeos me matam.
- Deus - seu chefe bate na porta - Acabou a folga.
- Certo. Só deixa eu arrumar uns problemas aqui...
- Nada disso. Você já ficou uma semana aí brincando com essa merda. É hora do trabalho.
- Tá. Vou ter que deixar mal acabado, mesmo.
De tanto ir de lá pra cá, na famosa "correria", as pessoas só têm tempo de organizar seus pensamentos na hora do trânsito. E não digo só no trânsito de carro, mas trânsito de ações, qualquer espaço de tempo que envolva encaminhar-se para a próxima tarefa. Pode ser o tempo de esperar o ônibus, a sala de espera do dentista (alguém acha tempo para ir ao dentista?), a fila do cinema. Mas, ao invés de colocar a cabeça em ordem e aproveitar esses valiosos minutos de fazer nada, as pessoas ligam seus Ipods e botam os fones de ouvido. A música preenche o espaço dos pensamentos, mantém a cabeça ocupada, tira a necessidade de divagar. Divagar é importantíssimo. As grandes descobertas da Ciência nasceram da divagação, e esta, do ócio. Newton, ao descansar embaixo da macieira, estava matando tempo. Se não fosse o ócio de Newton, hoje desconheceríamos a gravidade e o cálculo. Não saberíamos como chegar à Lua, ou porque os seios caem com o passar dos anos. Mas hoje detemos esses importantíssimos conhecimentos, pois certo dia Newton estava viajando sem fazer nada embaixo de uma macieira. Se fosse hoje, ele estaria ouvindo um Ipod e nada disso teria acontecido.
O único período em que somos obrigados a realmente não fazer nada é na hora do banho. Lá não dá pra ler, como em outra atividade que pode ser feita no banheiro, e até dá para ouvir música, mas essa se mistura com o ruído da água e fica em segundo plano. E talvez seja por isso que as pessoas valorizam tanto a hora do banho. É o espaço de reencontro com o seu eu, de esvaziar a cabeça e reencontrar a unidade, ou qualquer dessas coisas que se lê em propagandas de yoga. Podem ver que até os mais ferrenhos ambientalistas não descartam um longo e demorado banho. Preferem compensar seu impacto sobre a natureza de outra forma, desde que não afete o ritual quase sacro de reservar aqueles preciosos minutos do dia pra ficar debaixo de um chuveiro.
Para quem acha que isso tudo é papo de vagabundo, eu quero dizer que o ócio ainda vai salvar o mundo. Sim, pois, com bilhões de pessoas no planeta e as indústrias e fábricas cada vez mais automatizadas, como garantir emprego para todo mundo? Redução da jornada de trabalho, oras! O trabalhador trabalha menos para que um outro possa também trabalhar, dividindo o serviço entre os dois. O salário iria ser menor, mas de que adianta grandes quantias de dinheiro se não temos tempo de gastá-las, não é mesmo? É meio difícil de implementar isso no Brasil, mas na Europa poderia dar certo. Na mesma linha, poderia-se criar o fim de semana de três dias. Sim, é mais justo trabalhar quatro dias e folgar três do que trabalhar cinco e descansar míseros dois. Conseguiria se resolver o problema do déficit de descanso e por tabela eliminar as odiáveis segundas-feiras. Que passariam a ser as terças, mas ninguém gosta das terças de qualquer jeito. Ô diazinho morto.
Uma empresa que já sacou que ócio é negócio é o Google. Ela disponibiliza uma sala de entretenimento para quem quiser tirar uns minutinhos de ócio durante o trabalho. Ócio, esse, que é obrigatório. Os funcionários são proibidos de trabalhar sem intervalos. O Google sabe que um empregado com mais tempo de folga é mais criativo, e trata-se da empresa mais bem sucedida da atualidade. Se eles fazem isso, é porque deve estar certo.
Pelo menos é isso o que eu vou dizer ao meu chefe se ele achar que eu ando ocioso no trabalho.
Dizem que Deus descansou no sétimo dia. Balela. Ele estava sem fazer nada desde o início da semana. Ninguém iria se propor a criar o Universo se não estivesse com muito tempo livre. Vai ver ele estava numa semana de folga, sem nada pra fazer, com a televisão pifada. Devemos o mundo ao ócio de Deus.
- Muito bem: haverão mares, e onde não houver mares haverá a terra, e montanhas, e eu acho que assim está bom.
Olha para a sua Criação por alguns minutos. Olha para o relógio. Suspira.
- Bom, acho que posso matar mais um tempinho criando Vida...
E fez as plantas, e os animais, e, num momento de maior divertimento, fez a girafa. E, na falta de um bom sitcom para ver na tevê, fez os homens e as mulheres e todos os seus problemas de relacionamento.
- Haha... esses hominídeos me matam.
- Deus - seu chefe bate na porta - Acabou a folga.
- Certo. Só deixa eu arrumar uns problemas aqui...
- Nada disso. Você já ficou uma semana aí brincando com essa merda. É hora do trabalho.
- Tá. Vou ter que deixar mal acabado, mesmo.
De tanto ir de lá pra cá, na famosa "correria", as pessoas só têm tempo de organizar seus pensamentos na hora do trânsito. E não digo só no trânsito de carro, mas trânsito de ações, qualquer espaço de tempo que envolva encaminhar-se para a próxima tarefa. Pode ser o tempo de esperar o ônibus, a sala de espera do dentista (alguém acha tempo para ir ao dentista?), a fila do cinema. Mas, ao invés de colocar a cabeça em ordem e aproveitar esses valiosos minutos de fazer nada, as pessoas ligam seus Ipods e botam os fones de ouvido. A música preenche o espaço dos pensamentos, mantém a cabeça ocupada, tira a necessidade de divagar. Divagar é importantíssimo. As grandes descobertas da Ciência nasceram da divagação, e esta, do ócio. Newton, ao descansar embaixo da macieira, estava matando tempo. Se não fosse o ócio de Newton, hoje desconheceríamos a gravidade e o cálculo. Não saberíamos como chegar à Lua, ou porque os seios caem com o passar dos anos. Mas hoje detemos esses importantíssimos conhecimentos, pois certo dia Newton estava viajando sem fazer nada embaixo de uma macieira. Se fosse hoje, ele estaria ouvindo um Ipod e nada disso teria acontecido.
O único período em que somos obrigados a realmente não fazer nada é na hora do banho. Lá não dá pra ler, como em outra atividade que pode ser feita no banheiro, e até dá para ouvir música, mas essa se mistura com o ruído da água e fica em segundo plano. E talvez seja por isso que as pessoas valorizam tanto a hora do banho. É o espaço de reencontro com o seu eu, de esvaziar a cabeça e reencontrar a unidade, ou qualquer dessas coisas que se lê em propagandas de yoga. Podem ver que até os mais ferrenhos ambientalistas não descartam um longo e demorado banho. Preferem compensar seu impacto sobre a natureza de outra forma, desde que não afete o ritual quase sacro de reservar aqueles preciosos minutos do dia pra ficar debaixo de um chuveiro.
Para quem acha que isso tudo é papo de vagabundo, eu quero dizer que o ócio ainda vai salvar o mundo. Sim, pois, com bilhões de pessoas no planeta e as indústrias e fábricas cada vez mais automatizadas, como garantir emprego para todo mundo? Redução da jornada de trabalho, oras! O trabalhador trabalha menos para que um outro possa também trabalhar, dividindo o serviço entre os dois. O salário iria ser menor, mas de que adianta grandes quantias de dinheiro se não temos tempo de gastá-las, não é mesmo? É meio difícil de implementar isso no Brasil, mas na Europa poderia dar certo. Na mesma linha, poderia-se criar o fim de semana de três dias. Sim, é mais justo trabalhar quatro dias e folgar três do que trabalhar cinco e descansar míseros dois. Conseguiria se resolver o problema do déficit de descanso e por tabela eliminar as odiáveis segundas-feiras. Que passariam a ser as terças, mas ninguém gosta das terças de qualquer jeito. Ô diazinho morto.
Uma empresa que já sacou que ócio é negócio é o Google. Ela disponibiliza uma sala de entretenimento para quem quiser tirar uns minutinhos de ócio durante o trabalho. Ócio, esse, que é obrigatório. Os funcionários são proibidos de trabalhar sem intervalos. O Google sabe que um empregado com mais tempo de folga é mais criativo, e trata-se da empresa mais bem sucedida da atualidade. Se eles fazem isso, é porque deve estar certo.
Pelo menos é isso o que eu vou dizer ao meu chefe se ele achar que eu ando ocioso no trabalho.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
A menina e a mensagem
Nove da noite de uma sexta-feira. Local: Capão da Canoa. Sozinho na cidade, pois todo mundo está no Planeta Atlântida, eu perambulo pelas ruas, bolando um post novo para o blog. Encontro uma lan house que me cobra caros 4 reais por uma hora de escrita. Acomodo-me no computador com o melhor teclado (que já não é lá essas coisas) e ponho-me a escrever. Momentos depois entra uma menina, 17, 18 anos. Espera para ser atendida pela mulher da lan house. Paro para observá-la. Prende minha atenção primeiro pela sua aparência, mas depois por parecer prestes a desabar no choro, acusada pelos sinais de tremulação na sua garganta e um visível esforço para conter as lágrimas. Pede para usar um dos computadores e senta-se próxima a mim.
Ocorrem-me mil pensamentos em por quê ela deve estar triste, e o porquê de procurar um computador numa hora de debilidade emocional. Precisa ver alguma coisa. Talvez checar o e-mail para ver se chegou alguma mensagem. De um homem. Namorado, ou talvez alguém que ela esteja muito a fim? Bingo: a menina abre o seu hotmail e lê uma extensa mensagem, da qual eu estou muito distante para decifrar qualquer coisa. De súbito, a cara de choro se transforma: expõe os dentes para a tela, num sorriso que de quando em quando se alarga ao ler uma ou outra frase. Por uma vez chego a vê-la balançar a cabeça de um lado para o outro enquanto sorri. A mensagem foi boa. A julgar pela sua súbita mudança de humor, a resposta foi ao mesmo tempo boa e inesperada. O cara gosta dela. Talvez tenha havido algum mal entendido, mas o e-mail esclareceu tudo. Deve ser isso, pelo menos.
Ela entra no orkut e responde um scrap, ainda sorrindo. Depois abre mais um e-mail, dessa vez mais curto. Do mesmo cara? Clica para responder. Dessa vez fica mais séria. Leva a mão ao rosto, pensando no que vai escrever. Está prestes a fazer algo que não há volta. Sua resposta decidirá o seu futuro, decidirá... o que mesmo? Não sei, mas deve ser algo bem importante. Escreve frases, às vezes dando pausas, às vezes abrindo mais um sorriso. Fica com a expressão nervosa. Clica em enviar, e depois leva as duas mãos à boca e se remexe na cadeira. Enviou. Agora não tem mais volta. É tomada por um nervosismo, mas um nervosismo bom, de quem sabe que acabou de fazer uma escolha importante, sem volta, mas que está feliz com isso. Ela respondeu para o cara o que sentia. Suspira. Depois volta a ler a mensagem mais curta. Pego-a em determinado momento olhando para o nada, com o mesmo sorriso bobo no rosto, deliciando-se com o efeito das palavras que leu. Depois abre o MSN. Talvez para falar com as amigas sobre o que acabou de fazer.
Seu tempo acaba. Pagou apenas por meia-hora de uso, tempo mínimo. Queria só checar o e-mail, mesmo. Paga bem feliz, e vai embora. Ela está de costas, mas, pelos passos quase saltitantes, penso que está sorrindo. Minha curiosidade me corroi. Pensei por um momento em ir atrás dela e perguntar o que houve, por que estava triste e por que mudou de humor. Obviamente não o fiz: o que ela iria responder para um estranho como eu? Possivelmente nada.
Mas se encontrá-la na rua, não me conterei. Ah, não. Me explicarei do jeito menos estranho possível e cruzarei os dedos para ela entender a minha necessidade voyeurística. Caso isso aconteça, não poderei contar aqui o que houve, pois o meu tempo está acabando. Em breve devo sair da lan house. No fim, nem consegui escrever o texto que pensei originalmente. Mas suspeito que pagarei os 4 reais com muito mais prazer do que se o tivesse escrito.
Ocorrem-me mil pensamentos em por quê ela deve estar triste, e o porquê de procurar um computador numa hora de debilidade emocional. Precisa ver alguma coisa. Talvez checar o e-mail para ver se chegou alguma mensagem. De um homem. Namorado, ou talvez alguém que ela esteja muito a fim? Bingo: a menina abre o seu hotmail e lê uma extensa mensagem, da qual eu estou muito distante para decifrar qualquer coisa. De súbito, a cara de choro se transforma: expõe os dentes para a tela, num sorriso que de quando em quando se alarga ao ler uma ou outra frase. Por uma vez chego a vê-la balançar a cabeça de um lado para o outro enquanto sorri. A mensagem foi boa. A julgar pela sua súbita mudança de humor, a resposta foi ao mesmo tempo boa e inesperada. O cara gosta dela. Talvez tenha havido algum mal entendido, mas o e-mail esclareceu tudo. Deve ser isso, pelo menos.
Ela entra no orkut e responde um scrap, ainda sorrindo. Depois abre mais um e-mail, dessa vez mais curto. Do mesmo cara? Clica para responder. Dessa vez fica mais séria. Leva a mão ao rosto, pensando no que vai escrever. Está prestes a fazer algo que não há volta. Sua resposta decidirá o seu futuro, decidirá... o que mesmo? Não sei, mas deve ser algo bem importante. Escreve frases, às vezes dando pausas, às vezes abrindo mais um sorriso. Fica com a expressão nervosa. Clica em enviar, e depois leva as duas mãos à boca e se remexe na cadeira. Enviou. Agora não tem mais volta. É tomada por um nervosismo, mas um nervosismo bom, de quem sabe que acabou de fazer uma escolha importante, sem volta, mas que está feliz com isso. Ela respondeu para o cara o que sentia. Suspira. Depois volta a ler a mensagem mais curta. Pego-a em determinado momento olhando para o nada, com o mesmo sorriso bobo no rosto, deliciando-se com o efeito das palavras que leu. Depois abre o MSN. Talvez para falar com as amigas sobre o que acabou de fazer.
Seu tempo acaba. Pagou apenas por meia-hora de uso, tempo mínimo. Queria só checar o e-mail, mesmo. Paga bem feliz, e vai embora. Ela está de costas, mas, pelos passos quase saltitantes, penso que está sorrindo. Minha curiosidade me corroi. Pensei por um momento em ir atrás dela e perguntar o que houve, por que estava triste e por que mudou de humor. Obviamente não o fiz: o que ela iria responder para um estranho como eu? Possivelmente nada.
Mas se encontrá-la na rua, não me conterei. Ah, não. Me explicarei do jeito menos estranho possível e cruzarei os dedos para ela entender a minha necessidade voyeurística. Caso isso aconteça, não poderei contar aqui o que houve, pois o meu tempo está acabando. Em breve devo sair da lan house. No fim, nem consegui escrever o texto que pensei originalmente. Mas suspeito que pagarei os 4 reais com muito mais prazer do que se o tivesse escrito.
sábado, 16 de janeiro de 2010
Expressões
Os esquimós supostamente possuem 70 palavras para descrever diferentes tipos de neve. O que faz sentido, pois é praticamente tudo o que eles veem durante o ano. Por conviver com neve o tempo inteiro, conseguem diferenciá-la em categorias. Eles devem ter palavras específicas para a neve mais molhadinha, quase água, para a neve mais dura, quase pedra, e algumas dezenas de jargões para tudo o que há entre esses extremos.
A nossa sociedade ocidental moderna não parece ser tão evoluída quanto a dos esquimós, em termos de riqueza gramatical, ao menos. Não temos 70 verbetes diferentes para neve, o que é desculpável já que ela não é parte essencial da nossa vida, mas poderíamos ter, por exemplo, verbetes para os diferentes tipos de expressões faciais com as quais nos comunicamos. Deve existir ao menos algumas dezenas de tipos diferentes de sorrisos, que vão do sorriso genuíno, mostrando-se as duas fileiras de dentes até quase a altura da gengiva, até o anti-sorriso, com as laterais da boca puxadas para baixo ao invés de para cima, na posição de meia lua invertida. Pouco lembrado, o anti-sorriso é usado justamente nas situações inversas às passíveis de um sorriso genuíno: ao receber uma notícia ruim, ao ver uma catástrofe iminente e ao ouvir que o Collor foi eleito senador, por exemplo. Geralmente é seguido de um barulho de sucção de ar entre os dentes, um substituto para uma interjeição como "ouch!", "quase!" ou "bah!". Não confundir com o barulho de sucção emitido por alguns machos ao verem uma fêmea com características corporais avantajadas. Som parecido, origens comportamentais diferentes.
Os gestos corporais e expressões faciais substituem o uso da palavra e são universais. Existem antes da linguagem, e alguns são inerentes ao instinto humano. Sombrancelhas arqueadas pra dentro vão ser entendidas como sinal de raiva em qualquer lugar. Um soco na cara também. Qualquer um, seja um chinês ou um aborígine, vai entender um soco na cara como um sinal de desprezo, e irá reagir igualmente, e responder com a mesma expressão universal de ódio, surpresa e dor, além de contraatacar, com a intenção assassina de desfigurar o oponente. É universal. A comunicação é uma coisa linda.
***
Os gestos e expressões corporais, mesmo depois da invenção da palavra, ainda são úteis. Muita gente ainda usa-os em situações específicas no lugar de palavras. Um muito usado é o olhar questionador, que o seu vizinho dá quando você pisa no pé dele em um elevador lotado ou que um cara em uma festa lança quando você esbarra acidentalmente nele e derruba bebida em sua roupa. É um olhar que mistura incompreensão e raiva. "O que foi isso garoto? O que acabou de acontecer aqui?", misturado com "e aí? Vai fazer o quê a respeito?". É um olhar que possivelmente atravessou os milênios, e era usado desde a pré-história, quando um homem das cavernas dava um golpe de tacape na cabeça de uma mulher e, já puxando-a pelos cabelos, esbarrava num outro homem das cavernas, que havia pego a mulher primeiro. E usava esse olhar contra o ladrão de mulher. "Qualé?". Sem dizer nada, ele questiona e espera uma resposta. Que também pode ser não verbal: uma mão levantada, com a palma virada para fora, como um "opa!" tardio, que também pode significar um "não me bate!", seguido de um polegar para cima. "Tudo certo". O polegar pra cima é uma afirmação, está tudo certo, não aconteceu nada. Quem declara que está tudo ok é você. Ok, não foi por mal. Agora com licença, vou seguir a minha vida. Quem questiona é o outro, mas quem dá a situação por resolvida é você, com o seu polegar. O que não poderia ser feito numa discussão verbal. Bem jogado.
A nossa sociedade ocidental moderna não parece ser tão evoluída quanto a dos esquimós, em termos de riqueza gramatical, ao menos. Não temos 70 verbetes diferentes para neve, o que é desculpável já que ela não é parte essencial da nossa vida, mas poderíamos ter, por exemplo, verbetes para os diferentes tipos de expressões faciais com as quais nos comunicamos. Deve existir ao menos algumas dezenas de tipos diferentes de sorrisos, que vão do sorriso genuíno, mostrando-se as duas fileiras de dentes até quase a altura da gengiva, até o anti-sorriso, com as laterais da boca puxadas para baixo ao invés de para cima, na posição de meia lua invertida. Pouco lembrado, o anti-sorriso é usado justamente nas situações inversas às passíveis de um sorriso genuíno: ao receber uma notícia ruim, ao ver uma catástrofe iminente e ao ouvir que o Collor foi eleito senador, por exemplo. Geralmente é seguido de um barulho de sucção de ar entre os dentes, um substituto para uma interjeição como "ouch!", "quase!" ou "bah!". Não confundir com o barulho de sucção emitido por alguns machos ao verem uma fêmea com características corporais avantajadas. Som parecido, origens comportamentais diferentes.
Os gestos corporais e expressões faciais substituem o uso da palavra e são universais. Existem antes da linguagem, e alguns são inerentes ao instinto humano. Sombrancelhas arqueadas pra dentro vão ser entendidas como sinal de raiva em qualquer lugar. Um soco na cara também. Qualquer um, seja um chinês ou um aborígine, vai entender um soco na cara como um sinal de desprezo, e irá reagir igualmente, e responder com a mesma expressão universal de ódio, surpresa e dor, além de contraatacar, com a intenção assassina de desfigurar o oponente. É universal. A comunicação é uma coisa linda.
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Os gestos e expressões corporais, mesmo depois da invenção da palavra, ainda são úteis. Muita gente ainda usa-os em situações específicas no lugar de palavras. Um muito usado é o olhar questionador, que o seu vizinho dá quando você pisa no pé dele em um elevador lotado ou que um cara em uma festa lança quando você esbarra acidentalmente nele e derruba bebida em sua roupa. É um olhar que mistura incompreensão e raiva. "O que foi isso garoto? O que acabou de acontecer aqui?", misturado com "e aí? Vai fazer o quê a respeito?". É um olhar que possivelmente atravessou os milênios, e era usado desde a pré-história, quando um homem das cavernas dava um golpe de tacape na cabeça de uma mulher e, já puxando-a pelos cabelos, esbarrava num outro homem das cavernas, que havia pego a mulher primeiro. E usava esse olhar contra o ladrão de mulher. "Qualé?". Sem dizer nada, ele questiona e espera uma resposta. Que também pode ser não verbal: uma mão levantada, com a palma virada para fora, como um "opa!" tardio, que também pode significar um "não me bate!", seguido de um polegar para cima. "Tudo certo". O polegar pra cima é uma afirmação, está tudo certo, não aconteceu nada. Quem declara que está tudo ok é você. Ok, não foi por mal. Agora com licença, vou seguir a minha vida. Quem questiona é o outro, mas quem dá a situação por resolvida é você, com o seu polegar. O que não poderia ser feito numa discussão verbal. Bem jogado.
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