quarta-feira, 16 de junho de 2010

O mundo formal

     O problema é o seguinte: as pessoas se levam a sério demais. Esse é o problema. Vivem suas vidas de forma muito séria. Usam roupas. Eu queria saber quem foi o cara que inventou as roupas. Um burocrata, com certeza. A nudez é informal. Antes, todos vivíamos peladões, na boa, sem ter que corar cada vez que cruzávamos com um conhecido (cruzar, no sentido figurado). Na hora em que os homem resolveram usar roupas (e as mulheres também), acabou-se a informalidade. Antes era tudo pele e ninguém se incomodava, depois surgiu o tecido para separar a nossa pele da dos outros, e a nós também. Não podíamos mais ficar sem roupa, era mal visto. Daí para o uso obrigatório de calças no trabalho foi um pulo.

     Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.

     Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.

     A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.

     - Como vai a vida?

     - Bem, bem. Tá fazendo o quê?

     - Tô estudando Farmácia. E tu?

     - Fazendo cursinho. Puxado?

     - Anrã. E o teu?

     - Também.

     - Faltou mais alguma?

     - Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?

     - Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.

     - Tchau.

     - Tchau.

     São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.

     Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.

     Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.

     - Já disse que não, Adalberto.

     - Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...

     - Continuo dizendo que não.

     - Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.

     - Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?

     - Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...

     - Sei, sei...

     Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.

Um comentário:

  1. Bom saber que conversas aparentemente banais e rotineiras podem tornar-se inspiração ou significado... Afinal, estão sendo transmitidas de uma forma ou outra, ganhando sentido maior... FODA!!!

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