sábado, 20 de agosto de 2011

Ciúme

O ciúme fede. O ciúme é um sentimento vil, amargo, que faz suar, que deixa a gente com aquele mal-estar no peito, que desanima, que pode ser o colesterol, mas se estiver tudo em ordem, então não há engano, é ciúme. É ruim. E é besta, porque ciúme sempre é besta. Não há ciúme inteligente, racional. O ciúme é mimado, bobo. E o problema é que todos sentem, por mais racionais que sejam, porque o ciúme é próprio da natureza humana. Algo a ver com a evolução, o instinto de guardar os genes do parceiro para si, a fim de não perdê-lo para a concorrência. Para não sentir ciúme, é preciso abdicar de sua humanidade; para não sentir ciúme, é preciso ser sobrehumano.

É assim que é o Vílson. O Vílson é um cara mirradinho, fala pouco, apesar de ser bem simpático, e é muito sereno. Vílson, claro, é um nome inventado, para preservar a fonte. E o Vílson namora uma gostosa, e o pior tipo de gostosa: a que sabe que é gostosa. A gostosa da namorada do Vílson sabe que é gostosa e adora ser visada, ficar de papo-furado com outros homens, rir, flertar e deixá-los loucos. E o pior, faz isso na frente do namorado. É bizarro ver o Vílson e a namorada com os amigos: o Vílson fica lá, sentado com os seus cinquenta e cinco quilos numa cadeira, bem sereno, enquanto a namorada faz a social. Você, um novato no grupo, não entende: os dois chegaram juntos, de mãos dadas, e agora a namorada nem dá bola pro Vílson. Você resolve tirar a dúvida:

- Aqueles dois são namorados, mesmo?

- Ela e o Vílson? Acho que são - responde o outro.

E a namorada do Vílson, só de risadinhas. Ela faz graça para o grupo, formado só por por homens mais fortes e altos que o Vílson e com olhares maliciosos que fariam qualquer garotinha inocente corar. A namorada do Vílson anuncia que foi pra praia no fim de semana e ficou com marquinha, querem ver? Todos concordam, e ela afasta a alça do sutiã para que vejam que, sim, lá está a marquinha. Um dos caras senta-se e pergunta se a namorada do Vílson quer sentar no seu colo, o que ela prontamente faz. Você leva a mão à boca:

- Esses aí não eram pra ser os amigos do cara?! - você pergunta, com um leve desespero na voz.

Seu amigo dá de ombros. Um dos caras elogia os cabelos da namorada do Vílson, passa a mão neles; ela dá um risinho. E o Vílson, apesar de sentado bem de frente da cena, parece se entreter observando o cadarço desamarrado. Você, compadecido, vai puxar papo, sei lá, consolar o cara. O Vílson é gente-fina, vocês conversam amenidades, ele não desvia o olhar por nem um momento para ver onde está a namorada. Você é surpreendido pela própria, que debruça-se no seu ombro para falar, com voz manhosa, que tem que ir embora, amanhã tem cursinho. Enquanto ela se despede dos garotos, você tem a impressão que um deles passa a mão na bunda dela.

Como explicar o comportamento apático do Vílson? Sua não somente inação, mas total desinteresse nos supostos rivais amorosos, que rodeiam sua garota como lobos em volta de carne seca? Só há uma explicação.

O Vílson atingiu o Nirvana.

Sim, o Vílson não é mais um de nós. Ele está em outro plano. Sua alma não se corrompe com preocupações terrenas como a baixa do dólar ou o ciúme. Os outros são somente punhados de pó perdidos na existência. Buda já dizia que as posses não são posses, pois um homem jamais possuirá nada na sua essência. Ninguém nunca o fez, mas tenho certeza que quem entrar no quarto do Vílson à noite vai vê-lo meditanto na posição de lótus, enquanto recita o mantra secreto do Bodhisattva, aquele mesmo que o quarto Dalai Lama utilizou quando tentou dormir numa caverna cheia de mosquitos, goteiras e música ambiente da Enya. Só isso explica a sua paz de espírito. Explica até o seu peso. Ninguém deve engordar se alimentando só de luz.

Atingir a iluminação é o único jeito de eliminar o ciúme. De outra forma, temos que aprender a conviver com ele, nem nos repreendendo, nem repreendendo a outra pessoa por coisas que só acontecem na nossa cabeça. Um pouquinho vai doer. Mas é uma dor administrável.

Agora, o que ninguém consegue saber é o que a namorada do Vílson viu nele, que é magricela, feio e sem dinheiro. Talvez, insatisfeita com apenas um homem, ela tenha ficado com uma opção que lhe permita ter vários ao mesmo tempo. Ou talvez ela tenha sido atraída pelos prazeres exóticos do sexo tântrico. Ah, os mistérios do Oriente...

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A mulher do Souza

     Ninguém sabia por que o Souza não trazia a mulher para as festas da firma. Talvez, sugeriam alguns, porque fosse gostosa, e o Souza sentisse ciúmes. O que só dava mais vontade de ver a esposa do Souza. Ou podia ser feia demais, ou tímida demais, ou, sei lá, ter cinco braços. Virou um tema de conversa. De vez em quando alguém levantava a pergunta:

     - E a mulher do Souza?

Era uma indagação genérica, não precisava ser formulada além disso. E a mulher do Souza? Ninguém sabia da mulher do Souza. Se a pergunta fosse para o Souza, ele desconversava.

     - Ah, pois é...

Dizia que ela não saía para eventos, que era complicado, que ela não gostava dessas coisas, que estava com caxumba. Ih, aí tem coisa, disse o Jorge. Ou a mulher não gosta dessas coisas, ou está com caxumba. Porque, quando alguém dá duas desculpas diferentes para a mesma coisa, é porque nenhuma delas é verdade, não é verdade? É verdade. Aí tem coisa.

     Tiveram uma ideia. Pediram para o seu Breno, o empregado mais velhinho da firma, que continuava trabalhando no setor de finanças apesar dos quase 90 anos e que estava de aniversário na próxima semana, requisitar especialmente para o Souza a presença de sua mulher no aniversário.

     - Sabe como é, seu Souza, talvez seja o meu último aniversário aqui na firma, então quero que todos compareçam com suas famílias.

     - Sim, sim...

     - Sabe, é importante para mim conhecer a família de todos vocês, com quem convivo há tantos anos, até porque pode não ter outra oportunidade...

     - Ok, ok, tudo bem.

     O Souza chegou atrasado na festa: inclusive, com a demora pensaram que ele não viria. Mas ele veio sim, estrategicamente na hora que o Jorge estava fazendo um discurso bonito sobre o Seu Breno e as suas décadas de coleguismo na empresa. O Souza entrou de fininho, pra não chamar atenção. Com a mulher. Olhares de todos os cantos se fixaram no casal. Quando viu os dois, o Jorge até abreviou o discurso para receber o Souza.

     - Grande Souza! Tudo certo? Essa deve ser a...

     - Sim, sim, é ela.

     E o Souza mal apresentou a mulher: disse duas palavras e deixou por isso. Como quem faz de má vontade. A esposa do Souza não era uma deusa, como se imaginava. Era bem mais ou menos. Alguns comentariam mais tarde que ela era feia, o que era um exagero, sem dúvidas. Só não era o espetáculo que todos imaginavam. Bom, ao menos a hipótese do Souza esconder a mulher para preservar sua beleza sobrenatural caiu por terra. A hipótese dos cinco braços também não se confirmou.

     Mas, então, qual seria o motivo da relutância em trazer a mulher a público? O Plínio, o Cruz e o Jorge resolveram pressionar. Enquanto a mulher do Souza estava conversando com outras mulheres de outros colegas, os três foram puxar papo com ele:

     - E a tua mulher, hein, Souza?

     - Pois é.

     - Pois é o quê?

     - Sei lá. Vocês que perguntaram.

     - Finalmente ela veio. Ó, se deu bem com o pessoal, tá conversando de boa. Socializou legal, não ficou tímida num canto, nem saiu descontrolada atirando brigadeiros nos convidados ou gritando em alemão. É uma boa mulher. Então por quê?

     - Por quê o quê?

     - Pra que isso? Essa relutância em trazê-la às festas?

     - Impressão de vocês...

     - Não força, Souza.

     - Sei lá...
 
    - Souza, não tente nos enrolar. É desrespeitoso. Abre o jogo.

     Tanto insistiram, que o Souza ficou acuado. Não tinha mais como esconder.

     - Tá bom, tá bom, eu falo! É que... é ridículo, mas é verdade.

     - O quê?

     - Vocês vão ver.

     Sabe aquela brincadeira conjugal de interpretar papéis? Para atiçar o relacionamento? Sim, todos sabiam. Pra ficar mais fácil pro Souza se soltar, o Plínio disse que brincava com a mulher de homem-das-cavernas, mas quando ele se empolgava e a puxava pelos cabelos, a mulher lhe dava um tapa e virava de lado na cama. O Souza o interrompeu. Queria falar, o assunto era sério. Agora sentia que a hora da verdade devia ser essa mesmo, precisava dividir seu drama com alguém. Pois bem. Depois do casamento o Souza e a mulher ficaram com medo de que o matrimônio esfriasse as coisas, então resolveram atiçar a relação experimentando um jogo de papéis. Ela seria a moça do interior, ingênua, uma atriz que veio para a cidade grande em busca da fama. Ele, um magnata da televisão que apadrinharia ela, mediante favores especiais. Uma brincadeira bem picante. O Plínio vibrou:

     - É isso aí, garotão!

     - Não, espera, deixa eu terminar.

     Fizeram a interpretação direitinho. Foram para um restaurante, fingiram que não se conheciam, ele chegou nela, ela contou a sua história de mocinha do interior em busca de sucesso, ele fez a proposta indecente e a levou para a sua casa. No caso, a casa dos dois, mas enfim. Chegaram lá, amaram-se, e então...

     - Então o quê?

     Então, depois do ato, cansados e com o sentimento de dever feito, ele olhou pra ela e ela olhou pra ele, e ele pensou: e agora? Sigo com a fantasia, ou ela para logo depois do sexo? Continuo fingindo que sou Jânus, o magnata da rede Ultrasat, e que ela é Dóroti, a menina inocente de Três Coroas que acaba de ser seduzida pelo seu poder sobre a mídia?

     - Estávamos nesses papeis desde o início da noite. Quando é que se sabe que acaba? Não tem nenhum diretor pra dizer corta, entende? Quando é que eu sei que corta?

     Estavam nesses papeis há cinco anos. Para ela, ele era Jânus. Para ele, ela era a inocente Dóroti. Quando Souza estavam longe dela ele podia ser o mesmo Souza de sempre, mas na presença um do outro eles se tratavam assim. O Souza evitava levar a mulher para sair junto com os amigos, e até mesmo com a família, para não causar constrangimentos.

     - Tá, e você nunca pensou em parar? - questionou o Plínio.

     - Pois é, mas parar do nada, depois de cinco anos?

     Os outros concordaram. Depois de continuar tanto tempo com a brincadeira, encerrar do nada seria admitir que os dois gastaram meia década fazendo uma coisa totalmente idiota. E outra: talvez nem houvesse mais casamento depois da encenação. Talvez o casamento só funcionasse por causa da encenação. Acabada a brincadeira, seriam dois idiotas completamente desconhecidos um do outro.

     - E eu nem sei mais o que ela faz da vida. Quando ela sai para trabalhar, ela diz que está indo para a gravação da novela. Mas no que ela trabalha realmente? Eu perdi toda a comunicação com a minha esposa de verdade. Eu nem sei como ela é, o que ela pensa, o que ela faz.

     - E você? Diz o quê pra ela?

     - Que eu trabalho com televisão. Disse que hoje era uma festa da produção do meu mais novo filme, um thriller policial que se passa dentro de uma empresa. A festa é num dos sets de filmagem. Viu? É ridículo!

     - É. Quer dizer, não é, é só estranho, mas...

     Mas nessa hora chega a mulher do Souza e se aproxima dele. Ele abre um sorriso galanteador, passa um braço em volta do ombro dela e diz, num tom de voz forçado:

     - E aí, beibe? Se divertindo?

     Ela fica imediatamente vermelha, e olha para baixo. Os colegas do Souza também ficam constrangidos. Souza não fala nada, mas faz uma cara para os outros de quem diz: "viram no que eu me meti?".

***

     Enterro do seu Breno. Dia chuvoso. Todo mundo assistindo o caixão ser baixado na terra, com capas de chuva, bem quietos. O Plínio, o Cruz e o Jorge lado a lado. Então o Souza aparece do lado do Cruz, meio encolhido.

     - E aí pessoal? Tudo bem?

     - Souza! Tá encolhido assim por quê? Tá com frio?

     - Não. Estou me escondendo da Dóroti. Quer dizer, da minha mulher. Não quero que ela me chame de Jânus na frente dos meus colegas. É embaraçoso demais.

     - Então por que você trouxe ela de novo?

     - Sei lá. Era tão importante para o velho esse negócio de família... me senti na obrigação.

     O padre estava fazendo uma oração. Ficaram uns momentos quietos.

     - Ainda está ruim com ela? - perguntou o Plínio.

     - Ô. O problema nem é não saber mais quem é a pessoa com quem você dorme. Isso eu já me acostumei. O problema são as coisas mais práticas, como o dinheiro. Nos primeiros dias, eu ainda me divertia interpretando o magnata da indústria televisiva. É bom pro ego, sei lá. Aí eu agia como se fosse um milionário, mesmo: comprava joias, dava presentes caríssimos pra ela. Só que o negócio fugiu do controle. Ela tem uma impressão errada da minha renda: às vezes estamos no shopping e ela me pede para comprar roupas caríssimas, assim, por impulso. Eu nunca disse não. Quase todo o meu dinheiro vai para pagar esta farsa. Daqui a pouco vou ter que vender a casa. O que vou dizer pra ela?

     - A sua mansão? Pombas, nós sempre discutíamos como você fazia pra pagar um casarão daqueles. Eu achava que você estava metido no narcotráfico, mas nunca comentei nada. - disse o Plínio. - Isso é insano. Tem que por um ponto final nisso.

     Começaram a discutir soluções. O Cruz veio com uma ideia boa, que, após alguns pitacos dos outros, se tornou um plano tático. Seria assim: Jânus chegaria para a mulher e diria que está com problemas. A tevê da qual ele é dono está para falir.

     - A Ultrasat? O conglomerado de comunicações mais poderoso do Pacífico Sul? Como?

     - Sei lá. Inventa uma desculpa. Põe a culpa na internet.

     Com o negócio falido, haveria uma contenção de gastos. De imediato, seriam cortados os supérfluos, como presentes e roupas. Aos poucos, a farsa iria se aproximar do mundo real.

     - Genial, pessoal! É isso o que eu vou fazer! - exclamou, feliz, o Souza.

     - E tem mais - disse o Jorge - a gente podia fazer o seguinte...

***

     Mansão do Souza. Batem na porta. A mulher do Souza atende. É o Cruz.

     - Bom dia. O seu marido está?

     - Ele está no banho. Por favor entre. Qual é o seu nome?

     - Sou Alberto Goldfrapp, do conglomerado midiático Satvision. Tenho negócios a tratar com Jânus.

     A mulher do Souza olha o Cruz com uma cara surpresa. O Cruz senta-se no sofá da sala, com um porte elegante que ele normalmente não possui. Está usando um casaco de pele, um chapéu panamá e carrega um charuto na boca. O Cruz não fuma charuto, mas todos concordaram que o charuto era essencial para o papel.

     - Ãhn... sobre o que seria, senhor... Goldtrapp?

     - Goldfrapp. Trouxe uns documentos para o senhor Jânus assinar. É sobre a venda da rede Ultrasat.

     A mulher senta-se no sofá, confusa. O Souza entra na sala, secando os cabelos - tinha tomado banho há pouco - e se depara com os dois. A mulher vira-se para ele.

     - Querido, este homem quer comprar do Jânus, quer dizer, de você... algo sobre uma venda...

     - Oh, querida - Souza finge estar abalado - não queria que você soubesse desse jeito. Sim, é terrível. A rede Ultrasat está falida.

     - O quê?

     - Falida. Completamente quebrada. É a internet. Sabe, esses jovens de hoje não assistem mais televisão. Como resultado, estou vendendo a rede para ser incorporada pela Satvision...

     - A preço de banana, diga-se de passagem - diz o Cruz.

     - Mas como isso é possível? - A mulher está completamente perdida.

     - É a lógica de mercado, beibe: os maiores comem os menores. Devia ter vendido a rede quando ela ainda valia alguma coisa. Agora, para pagar as despesas do meu último thriller policial me vi obrigado a vender a empresa. Ah, no negócio ainda perdemos a nossa casa.

     A mulher do Souza solta um "Oh!".

     - Mas não se preocupe, beibe. Já consegui um novo emprego numa empresa, como contador. O salário não é bom, então teremos que fazer cortes de gastos. Mas acho que essa mudança é uma oportunidade de dar uma renovada nas nossas vidas, que tal?

***

      Os colegas do Souza estavam muito orgulhosos do plano, que fora um sucesso. O Souza parecia bem mais disposto nos últimos dias. Disse que estava prestes a quitar todas as suas dívidas, e se sentia melhor de não ter que mentir sobre o seu emprego.

     Passaram algumas semanas, e certo dia notaram que nem o Souza, nem o Cruz foram trabalhar. Estranharam. O Souza chegou várias horas depois, atrasado. O que houve?, perguntaram o Jorge e o Plínio. Vocês não vão acreditar, disse o Souza.

     - Acordo hoje de manhã com barulho de movimento no meu quarto. É a minha mulher, fazendo as malas. Pergunto o que houve, e ela diz que vai embora. Que precisa correr atrás do sonho de ser atriz. "Que sonho?", eu perguntei. O sonho, oras! O sonho que agora eu, Jânus não era mais capaz de realizar. Aí eu enchi o saco. Disse chega, vamos parar com essa farsa, já não tem mais graça. Ela fez que não entendeu. "Que farsa?", ela perguntou, mas eu notei o desdém na voz. Ela disse que estava indo morar com Alberto Goldfrapp no Rio.

     - O Cruz! - exclamaram os dois colegas.

     - Exato. Ele é o novo tubarão da mídia e está muito mais apto a fazê-la feliz. E, antes de ir, ainda teve a coragem de me dizer que o nosso contrato acabou. A vagabunda!

     - Não esquenta, cara - disse o Jorge - ela não vale nada. O Cruz também. Eu sabia que ele não prestava. E mais, agora tenho certeza que era ele quem roubava os atilhos da minha mesa, o desgraçado.

     O Plínio disse que não era para o Souza se preocupar. Sairiam os três, naquela noite, para catar mulher. O Souza iria ver, disse o Plínio, que o mundo tá cheio de mulher louca para ficar com ele. Iriam apresentá-lo como um Don Juan. Don Juan não!, protestou o Souza. Chega de fingir. Seria o Souza, corno, falido e contador de uma empresa de médio porte.

     Tudo bem. Tudo iria ficar bem. Depois de um tempo o Souza começou a rir. E o riso se transformou numa gargalhada.

     - Quando a gente estava interpretando papéis, eu às vezes brincava que nós iríamos mudar para o Rio, e a minha mulher dizia que a única condição para isso é que comprássemos um apartamento de um andar inteiro no Leblon. O Cruz não sabe no que se meteu.

     E o Souza continuou gargalhando como um maníaco. Os amigos olharam um para o outro. É, talvez fosse preciso acabar com as farsas. Mas talvez o Souza precisasse forçar uma personalidade menos esquisitona se quisesse arranjar outra mulher. Só um pouquinho, pelo menos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Páscoa atrasada

     A Páscoa tem símbolos muito fortes, os quais todos nós aprendemos nas aulinhas de religião do colégio. De cabeça, agora, eu me lembro daquela vela grande, que tinha um nome especial mas eu não me recordo qual agora (círio pascal?), o coelho e o ovo. Eles, apesar de não estarem presentes na história de Cristo, têm um significado relacionado à ressurreição: o ovo, obviamente, representa a vida, e o coelho também, por sua enorme capacidade de reprodução. Tudo muito subjetivo, muito semiológico. O problema é quando se interpreta esses símbolos de forma literal. Daí, surgem aberrações como o Coelhinho da Páscoa.

     Peguei-me pensando no último domingo sobre o que é o Coelhinho da Páscoa. Ele une o ovo e o coelho, os dois maiores símbolos pascais (pascais?), numa representação literal, uma entidade física da Páscoa, mas que não faz sentido nenhum. O que se sabe sobre o Coelhinho da Páscoa é que ele é um coelho, sim, e aparece na Páscoa para esconder ninhos com ovos de chocolate nas residências onde há crianças. Só que coelho não bota ovo. Muito menos de chocolate. Na tentativa de criar um mascote para a data (acho que Jesus não era o suficiente), eles uniram dois símbolos que, juntos, não têm nenhuma coerência. Me pergunto até hoje como eu, que fui uma criança letrada e inteligente, pude cair por tanto tempo numa farsa tão sem sentido.

     Acho que os marqueteiros que inventaram o Coelhinho da Páscoa miraram-se no Papai Noel, representante do Natal, para criar o garoto-propaganda da Páscoa. Só que, enquanto o Papai Noel é um case de sucesso, o Coelhinho da Páscoa é uma falha de planejamento completa. É só perguntar para as crianças qual é o seu preferido. É claro que é o Papai Noel. O Papai Noel é muito mais coerente: ele tem uma residência, tem um emprego. Seu meio de locomoção, apesar de mal-explicado, é ao menos mencionado. Por fim, ele é humano. O Coelhinho da Páscoa nem um coelhinho é. É um ser antropomorfo, nem homem nem coelho. Já começa por aí. Nunca ficou clara a sua natureza, e nunca tentaram esclarecê-la. Mesmo um observador desatento não deixa de notar que não se trata de um coelho comum, pequeno, quadrúpede, e sim de um ser bípede, do tamanho de um homem, só que com cara de coelho. Isso abre margem para questionamentos mil: ele é o único de sua raça? Porque não se vê outros coelhos antropomorfizados por aí? O que ele faz no resto do ano? Se ele é meio-humano, meio-coelho, ele vive numa casa ou numa toca? E afinal, se ele é meio-humano, quer dizer que ele tem uma vida como a nossa, onde ele trabalha, paga as contas, etc?
    
     O Papai Noel nós sabemos, ele trabalha no Pólo Norte o ano todo fazendo os brinquedos, possivelmente patrocinado por megacorporações da indústria do entretenimento infantil, que veem no velhinho um meio de divulgar seus produtos e inclusive o autorizam a usar suas patentes. Todo mundo sabe disso. O Coelhinho da Páscoa nós não sabemos nem de onde ele tira os ovos. É ele quem os bota? Qual a explicação biológica para um coelho botar ovos de chocolate? E, se ele bota ovos, não deveria ser uma coelhinha? A máscara cai frente à primeira contestação. Cuidado, Coelhinho. As crianças de hoje estão ligeiras. Elas não se enganam com a sua farsa.

     Isso é um exemplo para o que não fazer ao criar um gimmick: não se deve fazer um pastiche sem critérios dos atributos ao qual se quer associar a marca. Neste caso, tentaram por todos os símbolos (bota o ovo! Bota o coelho!) num personagem só, e o resultado é um produto exagerado, não crível e que não gera empatia com o público. O Coelhinho da Páscoa é um erro. O Coelhinho da Páscoa é um insulto à capacidade crítica das crianças. O Coelhinho da Páscoa precisa de uma remodelagem urgente, sob o risco de cair no ridículo e estar fadado ao esquecimento.

***

     Ou então eu estou errado e esse texto é só para extravasar a decepção de não ter ganho nenhum ovo de chocolate domingo passado. Pode ser.

quarta-feira, 9 de março de 2011

A liberdade relativa

A História se move de modo lento, mas as coisas importantes acontecem muito rápido. Olhem o Muro de Berlim: levou uma noite para se erguer e uma noite para cair. Os bolcheviques levaram dez dias para abalar o mundo, como nos conta John Reed. E a Revolução Jasmim na Tunísia, ainda há pouco, derrubou em algumas semanas um regime de décadas de duração.


É interessante como estes pontos de mudança ocorrem depois de um longo período de mesmisse. É como se o povo de países como a Líbia, Egito e Tunísia estivessem enchendo uma barrinha de insatisfação, que ao se completar permitiria passar para o próximo nível. Alcançado o ponto máximo, é hora de seguir para a próxima fase. Só que ninguém sabe qual é. Dificilmente será uma democracia, no nosso conceito.

Walter Laqueur, um historiador sovietólogo, escreveu no seu livro “Fim de um Sonho” que o principal motivo para o povo russo ter se mantido apático durante a ditadura stalinista foi o seu conformismo herdado. Sim, pois antes do regime soviético os russo tiveram anos de monarquia czarista, e portanto não eram livres há gerações, se é que um dia o foram. Eles estavam acostumados a esperar as coisas melhorarem de situação, conscientes de que o poder para isso não estava com eles mas sim na boa vontade de alguém mais poderoso. Penso que no mundo árabe deve ser parecido: todos os países, ou ao menos a sua maioria, migraram de monarquias antigas para um longo período de ditaduras, que são também meio que monarquias, pois o Kadafi planeja botar o filho no poder e o Mubarak até mês passado pensava o mesmo. Eles não conhecem a liberdade. Para quem não é livre, é filho de pais não-livres e neto de gerações subordinadas, liberdade é artigo de luxo. É dispensável, até.

Estranho este conceito para nós, ocidentais. Liberdade não é a prioridade de todo mundo. Ou, ao menos, a liberdade democrática representada por eleições livres. Estas revoluções nascidas no mundo árabe não têm como motivo a luta por eleições livres, e sim uma mudança na conduta do governo. Se antes das revoltas pegarem fogo o Mubarak saísse para a sacada e anunciasse reformas profundas na economia e cortes na corrupção, seria capaz de os egípcios o deixarem mais trinta anos no poder. Não, não. O motivo dessas lutas é que o pão está caro, e não há empregos para pagar o pão. Uma situação diferente da Líbia, que tinha um desempenho decente comparado ao resto da região, mas ali ninguém sabe direito o que está acontecendo.

Eles não querem, necessariamente, uma democracia representativa. Se isso vier, é lucro. Tudo o que eles querem, aparentemente, é alguém comprometido a tirá-los do buraco, ditador ou não. Nos países em que não há oposição organizada, nem partidos políticos nem nada do gênero, chuto dois possíveis destinos: um, uma junta militar vai liderar um processo de transição, como ocorre no Egito, e essa transição vai durar o tempo que eles quiserem (o que é irônico, porque foi mais ou menos assim que Mubarak chegou ao poder), ou dois, vai subir ao poder o único grupo que sempre está organizado mesmo com a ausência de partidos políticos, que é o religioso. O que normalmente não significa liberdade.

De qualquer jeito, o negócio vai se assentar, durante décadas, até que a nova ditadura não sirva mais, e o povo, num rompante orgiástico, o coloque pra fora em duas semanas. Como sempre acontece.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cantigas I

Era uma casa muito engraçada. Não tinha teto, não tinha nada. Engraçado, pensou o João. Casa sem teto, onde já se viu? Até deu uma olhada no endereço: Rua dos Bobos, nº 0. Era ali mesmo. Aquela era a casa que comprara. Mas não podia ser. Resolveu telefonar para o Osmar. O Osmar era o corretor de imóveis que havia lhe indicado a compra. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Atendeu. Alô, Seu Osmar? João, como vai? Olá João! Curtindo a nova casa? Muito engraçada essa casa, seu Osmar. Passei para dar uma olhada e vi que a casa não tinha teto, não tinha nada. É claro que não tem nada, respondeu o seu Osmar, como se estivesse falando com uma criança. A compra foi de um imóvel não-mobiliado. Não é isso, seu Osmar. A casa não tem teto. Onde já se viu casa sem teto?
Opa. Seu Osmar estranhou. Você já entrou na casa? Não, nem eu nem ninguém pode entrar nela não, porque na casa não tinha chão. É só um buraco. Um grande buraco, seu Osmar. Minto, tem uma rede jogada no meu terreno. Estão usando a minha casa como depósito de lixo! Seu Osmar pensou rápido. Ora, João, veja pelo lado positivo. Uma casa sem chão, um ar rústico, não era o que você queria? E sem teto, dá para dormir sob o céu estrelado, na terra batida, ainda, caso você não queira mobiliá-la. João respondeu que dormir no chão de terra batida não era a sua ideia de rústico. Preferia até dormir na rede jogada no chão, mas nem isso ele podia, dormir na rede, sabe por quê, seu Osmar? Porque na casa não tinha parede. Não tinha parede para pendurar sua rede, suas pinturas nem sua coleção de botões que havia mandado emoldurar especialmente para a casa nova. Uma casa com paredes era o mínimo que ele exigia. Calma, seu João. Calma nada, seu Osmar! A situação está ficando insustentável, seu Osmar. Ele, João, não podia fazer pipi, porque penico não tinha ali. Penico, seu Osmar! Estava disposto a abdicar dos três banheiros que haviam lhe prometido na planta baixa por um reles penico, mas nem isso havia ali. Veio à nova casa pronto para inaugurar o banheiro e agora não estava mais conseguindo se segurar.

Primeiro, seu João, não desdenhe da casa, afinal, ela foi feita com muito esmero. Segundo, em nenhum lugar estava escrito que a casa tinha três banheiros. E depois, muitas pessoas matariam para ter uma casa como esta. Pense nas vantagens. A casa não tem paredes, mas por isso mesmo é superventilada e possui iluminação natural. E tem mais: a ausência de paredes proporciona um contato sem igual com os vizinhos. Maravilha, respondeu João, só que eu não quero ter esse contato com os meus vizinhos quando eu estiver no banheiro, que aliás inexiste, como a minha bexiga faz questão de lembrar.

Seu Osmar disse que não podia fazer nada. João já havia comprado a casa e assinado os termos sem olhar. João ficou fulo. Pegou um pedaço de pau e atirou no gato-to. Atirou para matar. Mas o gato-to não morreu. “Gato-to!”, admirou-se Dona Chica-ca, com o berro do gato. O que foi isso, perguntou seu Osmar, do outro lado da linha. É o berro do Gato-to, o gato da Chica-ca, minha vizinha. Como assim, Gato-to, Chica-ca? É que ela é de uma família de gagos, explicou João. Os pais a registraram como “Chica-ca” porque não conseguiam pronunciar o nome corretamente, e ela não consegue chamar o gato dela de outro jeito, então ficou “Gato-to” mesmo. Isso não faz nenhum sentido, disse o seu Osmar. Pois é, veja só a vizinhança que o senhor me arranjou, respondeu João.

Dona Chica-ca foi tirar satisfações com João. Seu João-ão, começou Chica-cá, mas João a interrompeu, disse que estava no meio de uma ligação importante e que sabia que o que fez foi errado, mas discutiriam isso depois. Estava cuidando da compra de sua casa. Aliás, muito engraçada-da, a sua casa-sa, disse Dona Chica-ca. Não tinha teto-to, não tinha nada-da. Gostei-tei. Meio rústico-co. Ok, disse João, apenas não fale “rústico” novamente, o cacófato é horrível. Seu Osmar, ouvindo tudo pelo telefone, sugeriu que João negociasse o imóvel com Dona Chica-ca, aí todos sairiam felizes. Faz sentido-do, Dona Chica-ca admirou-se-se. João deu uma olhada na fachada da casa de Dona Chica-ca e gostou do que viu. Os dois fecharam o negócio, um ficou com a casa do outro e no final o pau no Gato-to foi perdoado, até porque ele não morreu-rreu. Que bom-bom, disse João, se atrapalhando. Quando terminou de assinar os termos foi que João se lembrou de perguntar: tem banheiro na sua casa? Não, tem só penico-co. Aff.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A incorporação do Rei

     Nos anos oitenta, o Banco Central promovia olimpíadas entre as filiais de diferentes Estados. Sei disso porque meu pai me contou, orgulhoso, que fazia parte da seleção de futebol da filial gaúcha. Além de futebol, havia outros esportes, como vôlei e xadrez. Meu pai viajou para São Paulo para participar das finais dos jogos, junto com outros desportistas da área contábil. Entre eles, estava um enxadrista talentoso. Sabia jogar como ninguém, realmente imergia no jogo.
  
     Meu pai usou esse cara como exemplo para provar uma teoria: a de que o Ronaldinho amarelara na final da Copa de 98.

     - Impossível! Tu achas que um profissional como ele iria amarelar? - interpelou a minha mãe. - Esses jogadores estão acostumados com a pressão!

     Mas esse meu colega enxadrista amarelara, disse meu pai. Era talentoso, quase profissional, e amarelara. O fato de estar acostumado com o jogo só provou ser uma desvantagem, no final. Durante a viagem para São Paulo, este enxadrista começou a passar mal. Seus colegas ficaram preocupados:

     - O que foi, cara? Você está legal?

     O enxadrista estava debilitado, nervoso, desamparado. Vomitara o jantar. No final, admitiu: estava estressado. Estava preocupado demais em perder. E disse uma frase que até hoje meu pai se lembra:

     - Eu incorporei o Rei.

     Sim, pois, quando o enxadrista entrava numa partida, não era o Rei quem estava no tabuleiro, mas ele mesmo. Olhava para o tabuleiro e via, ao invés da pecinha do Rei, a sua própria miniatura, tremendo ante o avanço das peças inimigas. O Rei era o enxadrista e o enxadrista era o Rei. Sentia como se ele próprio caísse caso o Rei fosse derrubado. A mera imaginação de perder uma partida lhe dava calafrios. Talvez fosse uma espécie de tática, jogar o jogo como se sua vida dependesse disso, mas era algo que havia fugido do controle. Ele amarelara.

     - Tá, e se isso aconteceu com o meu colega, também pode ter acontecido com o Ronaldinho, hein? Hein?

     Tá, pai. Talvez.

***

      No filme Cisne Negro, em cartaz nos cinemas, a bailarina vivida por Natalie Portman incorpora o personagem homônimo do filme para executar a peça "O Lago dos Cisnes". Para dançar como a personagem Cisne Negro, ela passa a se comportar agressiva e lascivamente, ter alucinações de virar um pássaro e outras coisas desagradáveis. O filme foi um sucesso. Penso que algo poderia ser feito na mesma linha, um thriller psicológico com o xadrez no lugar do balé. "O Rei Negro". Ou "O Rei Branco", dependendo do lado do jogador. Como o colega de meu pai, o personagem principal seria um enxadrista paranoico que, ao se preparar para o jogo de sua vida, acaba incorporando características do Rei. Ele começa a ter alucinações com o chão de sua cozinha, quadriculado: passa a só conseguir andar um quadrado por vez. Abre o armário e enxerga todas as suas roupas pretas. Passa a mão pelos cabelos e sente uma cruz crescendo em seu couro cabeludo, mas, quando olha no espelho, ela não está lá.

     O filme vai num crescendo de tensão. O enxadrista quase é pego ao tentar matar pessoas vestidas com roupas brancas em posições adjacentes à sua na fila do banco. Fugindo da polícia, tenta se proteger atrás de um bispo, que não entende nada, mas fica com medo e resolve dar abrigo ao fugitivo. O bispo veste branco. Ele mata o bispo. Depois acorda no chão da cozinha e percebe que foi tudo alucinação.

    No dia da partida, ele foge do hospital onde a sua família o internou, com dificuldade, pois no estado em que está só consegue andar uma posição por vez. Finalmente chega ao local onde ocorrerá a batalha final. O enxadrista adversário já está lá. Ele se aproxima do tabuleiro, mas não consegue chegar perto. Há alguma força interferindo no movimento. Ele olha para o outro enxadrista, e percebe que este também incorporou o Rei. Os dois não conseguem se aproximar, pois dois Reis não podem ocupar espaços adjacentes. A partida é cancelada: a burocracia do xadrez vence o instinto autodestrutivo de competição.

***

     Ou, pensando bem, talvez seja melhor fazer só thrillers sobre balé, mesmo.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A minha amada

     Sinto saudades da minha amada. Não ouço nenhum som seu há quase dois meses, agora. Adorava quando ela cantava, às vezes só pra mim. Ela desafinava um pouco, mas eu não ligava. Amar é quando os defeitos não são defeitos, são apenas detalhes. E ser desafinada era um detalhe. Agora, nem isso mais. A melodia acabou. Nada.

     Sobram as reminiscências. Nossa relação começou quando eu tinha treze anos, quase catorze. Se eu sabia que iria ser ela, desde que a vi? Não. Seria mentira se dissesse que foi amor à primeira vista. Estava entre tantas outras, experimentei várias. Não tenho medo de dizer: várias passaram pela minha mão antes dela. Ela sabe. Ela entende, nunca foi de me cobrar por isso. Sabe que as que vieram antes foram apenas testes. Eu estava atrás da certa. Com ela foi real. Por que ela, e não alguma das outras? Certamente não por algum amor platônico: o amor se desenvolveu mais tarde. Na hora em que nos encontramos pela primeira vez, achei-a simpática, no máximo. Só mais tarde fomos realmente nos encontrar.

***

     Os primeiros contatos foram atrapalhados. Nem eu nem ela sabíamos o que estávamos fazendo. Passava a mão pelo seu braço, subia até o seu pescoço, roçava a parte de trás de sua cabeça. Tocava-a com a ponta dos dedos, desajeitadamente. Ela soltava gritinhos desafinados, querendo dizer que era por aí, mas eu não estava fazendo no lugar certo. Tentava de novo, mais pra cá, mais pra cá. Isso. Aos poucos fui pegando o jeito. Ninguém nasce mestre, ainda mais nessas coisas. Não sou exceção, mas acho que evoluí rápido. Aprendi quase tudo sozinho. Ou quase. Hoje em dia a internet dá um bocado de dicas, está tudo lá, um grande manual da perversão. Aos poucos já sabia como fazê-la gemer do jeito que eu queria. E ela o fazia, bem alto.

     Os vizinhos ouviam, é claro, mas não tinham coragem de reclamar. Mas eu via nos olhos deles, quando nos cruzávamos nos corredores do prédio, que eles se incomodavam. Era ciúmes, eu sabia. Ciúmes das nossas demonstrações sonoras de paixão. Uma vez a minha vizinha de baixo veio reclamar pessoalmente. Sem nem ruborizar, disse que seu escritório era embaixo do meu quarto, onde eu e meu amor nos encontrávamos todas as noites. Pior: quem recebeu as reclamações foi a minha mãe, que depois me passou, meio sem graça, a mensagem da vizinha. Não ligávamos: continuávamos com nossos encontros ruidosos.

***

     Nunca fui um cavalheiro no nosso relacionamento: se fui alguma coisa, era bem o oposto. Tinha dias que eu chegava da escola louco para surrá-la. E o fazia, sem compaixão nem piedade. Ela nunca reclamou, um dia sequer, mesmo depois de uma semana de surras diárias. Não me arrependo: de fato, desconfio que ela gosta. Ela gosta de ser surrada, de ser pega com força, de que eu arranhe nela. Com o tempo minha pegada foi ficando cada vez mais forte, e ela ali, aguentando e gemendo, gemendo e aguentando, mas gostando, isso sim.

     Nós nos bastávamos, certamente, mas eu sempre quis mais. Queria experimentar. Ela sabia qual era a minha vontade, sempre soube: fazer uma experiência grupal. Quando finalmente achei pessoas com quem poderia rolar uma experiência legal, lá estava ela, berrando e gemendo como sempre.

     Fizemos e refizemos a experiência várias vezes, quase todo mês nos encontrávamos com nossa turma de depravados. Esses encontros não podiam ser na casa de ninguém, então pagávamos um lugar e mandávamos ver. Entretanto, o grupo tinha ideias mais ambiciosas. Não, não, aquilo não era o suficiente: era preciso mais. Era preciso fazer em público. Havia lugares para isso, lugares onde as pessoas iam para ver performances grupais como as nossas, só que públicas. Não vou negar, quando foi apresentada a ideia, fui seu mais ferrenho apoiador. Talvez de todos lá eu fosse o mais doente. Já ela, eu não sei: nunca se manifestou sobre as minhas decisões. Quando eu dizia que queria fazer tal coisa, ela simplesmente ia, sem questionar. Na verdade, creio que é por um medo crescente de ser trocada. Ela sabe que não é a melhor, e que eu poderia achar uma substituta superior em todos os quesitos. Ela nunca me disse, mas acho que tem medo. Por isso talvez não tenha se manifestado em uma decisão de tamanha magnitude.

***

     O show estava marcado, haveria até palco para a nossa exibição, mas ela vacilou. Não se garantiria ali, na frente de todos. Eu a amava, mas ela não era comparável às outras, iria passar vergonha. O pior é que, por mais que eu gostasse dela, por mais que eu a amasse profundamente, eu sabia que era verdade. Ela não era realmente boa. Naquele dia, subi ao palco com uma substituta, empréstimo de um amigo meu. Ele não se importou: diferente da maioria dos caras, não parecia muito apegado à sua companheira; inclusive queria se desfazer da coitada. Tentou com que eu ficasse com ela. Houve até dinheiro envolvido. Seiscentos contos, e a dita cuja era minha.
     Olhei para a minha pretinha: pude sentir a sua tensão, era o seu maior pesadelo. Não troquei-a. E foi legítimo: apesar de o empréstimo de meu amigo ter seu valor, a substituta não tinha qualidades que a minha Pretinha possuía. Ela não era tão boa de agarrar, e, ainda por cima, gemia estranho. Passei a oferta. Não sei o que aconteceu com a outra: deve estar encalhada até hoje.

     Tal experiência ensinou-me que a minha pretinha, que eu esnobava tanto, que eu falava tão mal, tinha sim seu valor. Com nós dois mais confiantes, achei que seria uma boa fazermos uma nova tentativa. Subimos ao palco os dois juntos, e dessa vez fiz tudo com ela, e ela se desempenhou muito bem, por sinal. Não havia nada a temer. Tá bom que foi meio estranho, tanto para nós quanto para o público. Talvez o nosso desempenho como grupo, apesar de ser muito legal para nós, não seja muito agradável de se assistir. Ainda assim, a culpa não foi dela.
***
     E assim continuamos nosso casamento, até que aconteceu uma tragédia: ela emudeceu. Não emite mais som. Tentei descobrir o problema, mas foi inconclusivo. Diagnóstico dos especialistas: transformador da caixa queimada, necessita conserto. Ufa, pelo menos não foi nada com ela. Mas agora é isso: estou há dois meses sem ouvir o som da minha guitarra. Meus dedos estão sedentos por tocá-la de novo. Não que eu esteja num período de ensaios com o meu grupo, mas eu gostaria de passar meus dedos por suas cordas e ouvir o seu som mais uma vez, depois de tanto tempo.
     No desespero, dá para pedir a substituta do meu amigo. Não será traição, é só necessidade física. Ela compreenderá.