segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Resoluções

     Eu nunca fiz resoluções de Ano-Novo. Sim, este post trata de resoluções, e é quase ano novo, mas não são resoluções de Ano-Novo: só coincidiram de serem feitas em Dezembro. Ainda assim, o fato de ser Ano-Novo pouco ou nada tem a ver com as minhas resoluções de Ano-Novo, digo, com as minhas resoluções. Na real, é uma só resolução. Feito esse esclarecimento, vamos a ela:

     A minha resolução é fazer uma faxina na minha vida criativa. Cortar o que atrapalha. 2010 foi um ano disperso. Sabe quando você chega em casa, e tem a vontade de fazer várias coisas, e na confusão de escolher o que se faz primeiro, acaba não fazendo nada porque, de tanto pensar em fazer tanta coisa, tudo o que se quer é desopilar um pouco? Só um pouquinho, sabe? Só um tempo fora de si mesmo, de ficar com a cabeça trabalhando, trabalhando, sem conseguir expremer nada. Tem dias que eu chego em casa me sentindo uma laranja com pouco suco, da qual tentaram extrair uma jarra inteira.

     Pois é, eu não fiz muito coisa nesse ano. Mas, em compensação, eu quase fiz muita coisa. Elas poderiam ter acontecido, a não ser pelo fato de que simplesmente não aconteceram.

     Em busca do motivo desse nadismo crônico descobri que o problema foi justamente a vontade de fazer várias coisas novas. Queria tentar me aventurar por estilos diferentes, métodos de criação que não havia tentado. Ficava atento por novas referências. Precisava de um repertório renovado porque... porque precisava, oras! Pedra que rola não cria limo.

     Essa vontade de inovar, descobri eu, é extremamente prejudicial. Exemplo: quem acompanha este blog sentiu a gutural diminuição no ritmo de postagens em comparação ao último ano. A verdade é que eu nunca parei de escrever. Nunca, antes de 2010, comecei tantos textos, e nunca deixei tantos textos incompletos. São pedaços, retalhos, alguns sem pé nem cabeça, alguns faltou a cabeça, alguns faltou o pé... esses quase foram publicados mas, mancando, tropeçaram. Falta de foco. Tantas idéias, mas não havia tempo para desenvolvê-las! Precisava produzir mais, mas... o quê? Em busca do novo, acabei não produzindo nada.

     Algumas pessoas, no Ano-Novo, fazem promessas de cortar gorduras. Eu corto referências. Agora, só o básico. Sem inventar moda. Já chega de provar outras comidas e sair com um gosto ruim na boca. Tentei expandir meu universo para áreas nunca dantes navegadas, me forçar a fazer música, escrever, roteirizar coisas fora da minha zona de conforto, mas o resultado foi pífio. Não que sair da zona de conforto seja ruim, pelo contrário: é um exercício necessário à sobrevivência de qualquer artista. Mas isso tem que ser feito do jeito certo. Não adianta eu querer de cara sair criando, sei lá, uma MPB, se eu não me dispus a saber como ela funciona, se eu não me familiarizei com ela antes. Senão o máximo que farei é uma cópia malfeita. Descobri uma palavra: técnica. A técnica é o meio pelo qual se canaliza a expressão. Sem mestrar a técnica, corre-se o risco de perder toda a autenticidade quando o que se buscava era justamente novas linguagens para o autêntico.

Mas o que foi feito de tão diferente, que o leitor não viu? Pois é, nada! Eu não fiz nada, nem de igual nem de diferente. Faltou produzir. Faltou gerar material. Essa saída da zona de conforto foi tão... desconfortável, que a briga por gerar algo fora dos meus padrões de criação regulares era tão desgastante que, quando vinha alguma idéia nos novos moldes, ela era fraca, não valia o esforço de ser colocada no papel. O suco que saía era amargo demais para ser degustado. Então eu não botava nada no papel. Por isso que, nesse fim de ano, resolvi cortar as novas influências que não me levaram a lugar nenhum. Descobri que com menos se faz mais. Agora é back to basics. Hora de me reencontrar, criativamente falando.

O texto ficou confuso. Leiam tudo isso aí de novo que deve fazer mais sentido. Eu não vou reescrever.

***

     Isso me remete à minha querida banda, a (até alguns meses atrás) 5 a Seco. 2010 era para ser o ano da 5 a Seco: com o novo estúdio próprio, os ensaios iriam ser mais numerosos que nunca. O que não era difícil, pois eles nunca foram numerosos. Ao invés disso, esse se revelou um ano de perdas para o grupo: perdemos um membro, que foi para a Califórnia e só volta Deus sabe quando, e perdemos metade do nosso nome. Sim, pois há, acreditem, uma outra 5 a Seco no Rio de Janeiro. Exatamente assim: 5 a Seco. Quais são as chances? Eles chegaram primeiro e, o fato que mais dói, eles são muito, muito, muito bons. Depois de alguma hesitação (foi sugerido mudar para “5 à Seco”, com um acento diferencial), o nome foi amputado, para a decepção de tantos que achavam graça nas piadinhas de cunho sexual feitas a ele. Agora é só 5. O numeral. Era isso ou mudar totalmente de nome.

     O fato é que, 5 a Seco ou só 5, eu amo a minha banda. Nós temos três músicas prontas, umas quatro em trabalho e cerca de 49 jam-sessions com trinta minutos de duração cada que nunca foram aproveitadas. Ou seja, a média de produção de qualquer banda com dois anos. As pessoas olham torto para as nossas (pouquíssimas) apresentações. Elas não entendem a arte, obviamente. Tivemos que fazer alterações em O Velho Flautista, uma balada-épica de inspiração claramente Tolkienana, com um elegante dedilhado de violão clássico costurando os vocais poéticos da música, uma ode a um velho bardo que, sem ter mais o seu amor, transforma seu sentimento em uma linda canção que atrai o povoado ao seu redor. Haveria um segundo movimento, uma mudança de tempo para um ska pegado, com uma bateria a la Rodrigo Barba na era pré-Bloco do Eu Sozinho, que foi cortado devido a apelo popular. Dos próprios membros da banda. Eu achava tão legal. Acho que eles também não entendem. O inimigo vem de dentro, pelo visto.

     Pois bem, o ponto é que eu havia perdido esse toque de criar as coisas que me agradem. Acabava pensando se aquilo que eu fazia era bom ou não, com base na interpretação de terceiros. E acabei esquecendo do princípio número 1 da arte, a meu ver, que é o que diz que ela nasce da expressão e do ponto de vista individual do artista. O primeiro passo para a boa arte é ser considerada boa por seu realizador, senão ela será fraca, ruim, não terá apoio do seu próprio progenitor. Não adianta eu criar um repertório que não me pertence. Se eu, o artista, não me sentir conectado com a minha produção, como eu vou querer que alguma outra pessoa o faça?

     Então, de volta à minha banda: o que me faz gostar tanto dela é que criamos músicas para nós mesmos, e, se outras pessoas não a apreciarem, tudo bem. Dentro dela eu pude me manter autoral, mesmo no meu ano menos autoral de todos. Quero começar 2011 fazendo coisas que eu gosto, lendo coisas que eu quero ler, ouvindo coisas que eu ouço por prazer. Tocando músicas que só eu e o meu grupo entendemos. E recomendo que todo mundo faça isso, procure um repertório próprio, que possa chamar de seu. Mesmo que seja considerado tosco pra caramba pelos outros. É isso o que cria um diferencial criativo.

    Feliz Ano-Novo a todos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A gravata amarela

     - Bom dia, seu Marcílio! Entre!

     - Bom dia, seu Juarez! A que devo a honra de ser chamado para a sua sala? É algo de bom ou ruim?

     - Que nada, seu Marcílio. Não precisa ficar preocupado. Você é o melhor funcionário da empresa. Suas vendas são maiores que a de todos os outros vendedores. Puxa vida, mês passado seu desempenho foi melhor que o do Gabardo e o do Pacheco, juntos.

     - Mas, cá entre nós, uma toupera vende mais que o seu Pacheco.

     - Rarará, é verdade. Enfim, piadas ofensivas à parte, você é o nosso funcionário modelo. Pontual. Eficiente. Sempre disponível.

     - Sim.

     - Mas... tem uma coisa, uma coisinha só, que eu gostaria que o senhor mudasse.

     - Sim?

     - É a sua gravata.

     - A minha gravata?

     - É.

     - O que tem a minha gravata?

     - Ela é amarela.

     - E...?

     - Não é profissional. É berrante demais. Eu vejo primeiro a sua gravata e depois você. Eu vejo um clarão amarelo e tenho que cobrir os olhos e perguntar: "quem está aí?", sabe? E você sempre usa essa gravata. Nada contra, até acho bonita para outras ocasiões, mas tente entender que usar uma gravata amarela no trabalho é uma atitute antiprofissional.

     - Você não gosta da minha gravata?

     - Não foi isso o que eu disse.

     - Com todo respeito, senhor Juarez, não é como se eu estivesse vindo trabalhar, digamos, de bermudas. Eu estou usando uma simples gravata. Além do mais, eu odeio gravatas, mas é obrigação usá-las, ok. Se eu tenho de usá-las, pelo menos uso de uma cor que eu gosto. Ela não piora meu desempenho, então não há problemas...

     - Mas o seu desempenho não é o caso, senhor Marcílio. O senhor é o profissional modelo, a não ser... por essa gravata! É só deixar de usá-la!

     - Não.

     - Não?

     - Eu cumpro prazos, faço vendas, uso terno no calor do verão e com o ar-condicionado estragado, ainda por cima. A gravata é o meu jeito de extravasar.

     - Você não vai tirar a gravata?

     - Não.

     - Bom, isso me obriga a adotar medidas drásticas...

     - Como o quê? Eu sou o melhor funcionário. Você não iria querer me perder. Esta reunião acabou.

     - Marcílio! Volte aqui!

     - Você mexeu num vespeiro, seu Juarez. Passar bem.

***

     - Pode entrar, seu Asdrúbal.

     - Bom dia, chefe. Vim reportar um comportamento inadequado do seu Marcílio. Ele está usando uma gravata com desenhos de personagens da Looney Tunes. Isso está causando um grande rebuliço no escritório.

     - É mesmo?

     - Sim. As pessoas perguntam se ele sabe o que está fazendo, se ele não tem medo de levar uma repreensão, mas ele insiste em dizer que está blindado. O seu Marcílio está zombando da empresa.

     - Sei...

     - Chefe, gostaria de sugerir um plano de ação...

     - Qual?

     - Demita o funcionário rebelde. Seu mau-comportamento irá se espalhar como um vírus. É preciso acabar com o câncer antes que ele germine. Dê o exemplo para o resto do escritório.

     - Eu não sei, o seu Marcílio é o nosso melhor funcionário.

     - Pense nisso como a amputação de uma perna para salvar o resto do corpo. E, caso o seu Marcílio faça falta, você pode me promover a chefe de vendas, já que as minhas vendas vêm crescendo a níveis...

     - Bom, acho melhor esperar para ver o que o Marcílio está tramando. Seu Asdrúbal, preciso que o senhor fique colado nele e me reporte todas as ações dignas de repreensão.

     - Sim, senhor. Considere cumprido.

     - E me traga um café. Esse está frio.

     - Sim, senhor. Num piscar de olhos.

     - Ah, duas colheres de açúcar, sim?

     - Com certeza, meu amo... digo, chefe.

***

     - Chefe, chefe!

     - O que foi, seu Asdrúbal?

     - O seu Marcílio... o resto do escritório... venha ver!

     O seu Juarez sai da sala com o seu Asdrúbal e vai para o grande escritório onde os vendedores trabalham. Todos estão usando gravatas numa profusão de cores absurda: vermelho, roxo, amarelo, laranja. A mandíbula do seu Juarez cai.

     - Quem é o responsável por isso!?

     - Seu Juarez, que prazer ver o senhor! Como vai?

     - Seu Marcílio, o que é isso na sua gravata?!

     - São pelos. Legal, não? Eles não se contentaram em desenhar uma mulher nua, também quiseram adicionar um efeito 3D...

     - Ora você. Eu vou, eu vou lhe...

     - Vai o quê? Estamos todos ouvindo.

     - Eu vou... seu Asdrúbal!

     - Sim, chefe!

     - Vamos para a minha sala!

     - Sim, senhor!

     Seu Juarez e seu Asdrúbal voltam para a sala de Juarez. Este se senta em sua mesa e põe as mãos no rosto.

     - É o pandemônio...

     - Chefe, para mim está claro o que o seu Marcílio está tramando. Ele quer derrubá-lo e pegar o seu cargo. Para isso, ele o está desacreditando na frente dos outros funcionários.

     - É pior que isso, é uma revolução... ele quer fazer uma revolução no escritório...

     - Faça o que eu disse: despeça-o enquanto ainda é tempo!

     - Eu não posso, Asdrúbal! Não vê? Ele iria embora como mártir! A bomba iria explodir toda na minha cara. Todos iam passar a me desobedecer. Um Poder só é Poder quando há pessoas que o obedecem. Seria o meu fim...

     - O que fazer?

     - Eu tenho que minar o poder das gravatas. Mas como? A não ser... já sei!

     Seu Juarez sai correndo de sua sala e adentra no escritório:

     - Escutem todos! À partir de amanhã, não é mais obrigatório o uso de gravatas no ambiente de trabalho! Rará, é isso mesmo! Ninguém mais é obrigado a vir engravatado para trabalhar! Por isso, podem tirar essa forca ao redor dos seus pescoços, a opressão terminou!

     Todos ouviram o seu Juarez em silêncio. Ele, arfante ao final do discurso, observou as caras neutras de seus funcionários. Então, todos voltaram ao trabalho.

     - Eu acho que eu consegui, Asdrúbal. Eu acho que eu consegui. Estou suando: me busque uma toalha.

     - Sim, mestre... digo, chefe.
    
***

     - Eu não acredito.

     No dia seguinte, todos os funcionários vieram usando bermudas e chinelos de dedos. E gravatas.

     - Eu não entendo, Asdrúbal... eu liberei as gravatas... por quê?

     - Essa é uma atitude totalmente não profissional, chefe. As bermudas então, nem se fala.

     - Eu sei, infeliz! Eu só... Opa, lá vem ele.

     Seu Marcílio entra na sala de seu Juarez, com suas bermudas, seu chinelo de dedo e sua gravata amarela.

     - Boa jogada, Juarez. Pena que falhou.

     - Seu maldito! Eu vou esganá-lo, seu infeliz!

     - Opa! Não toque em mim. Lembre-se que eu estou blindado. Fazer qualquer coisa comigo seria suicídio.

     - Por quê, Marcílio, por quê?

     - Por quê? Porque o senhor representa tudo o que ainda há de podre no sistema trabalhista! Toda a tirania dos chefes que acham que podem ditar o modo de vida de seus trabalhadores, o que fazer, quando comer, o que vestir. O senhor simboliza toda uma repressão sem sentido que nos faz ter de vir trabalhar em pleno verão, de terno preto e sapato, com a joça do ar-condicionado estragado! Por que você não manda consertá-lo? A sanidade mental dos seus funcionários não é importante?

     - Isso é por causa do ar-condicionado?

     - Vai muito além do ar-condicionado.

     - Mas eu cedi! Eu permiti que os funcionários viessem sem gravata! Não é isso o que você queria?

     - Ah, chefinho, a gravata é apenas um símbolo. Não é porque não precisamos mais ter uma corda em volta do pescoço que estamos livres de amarras. Ainda somos controlados por um senhor de terno preto e gravata no pescoço. A única forma de sermos livres é derrubando a ditadura corporativa dos homens de terno!

     - Eu não acredito... você realmente quer fazer uma revolução...

     - A classe operária tomará conta dos meios de produção! Basta de opressão! Viva Lênin! Viva Marx! Viva Che!

     - Asdrúbal! Tire ele daqui!

     - É pra já, chefe.

     - Ei, tire suas mãos de mim, seu discípulo de engravatado...

     Asdrúbal expulsa seu Marcílio e fecha a porta. Suspira.

     - Eu avisei, chefe. O caos está instaurado. Eu quero que saiba que estarei com você enquanto o navio afunda.

     - Cala a boca, Asdrúbal! Ainda não acabou. O seu Marcílio fez um grande teatrinho onde eu fui pintado como o monstro escravizador. Tenho que mostrar que sou como eles, que sou humano. Mas como? A não ser...

***

     No outro dia, o seu Juarez foi trabalhar de gravata amarela. O amarelo da gravata do seu Juarez era muito mais amarelo que o amarelo da gravata do seu Marcílio. O seu Juarez fez questão de cruzar pelo escritório várias vezes, de forma a exibir sua nova aquisição. E, sempre que passava pelos funcionários, fazia um elogio:

     - Bela gravata, seu Dutra!

     - Gostei da cor, seu Carvalho!

     - Legal o tom, seu Pacheco. Rosa. Progressivo.

     - É roxo, chefe.

     - Ainda assim. Muito bom. Continue fazendo... essa coisa de usar... isso.

     Seu Juarez comprou uma gravata amarela para cada dia da semana. Ele tinha as gravatas amarelas mais chamativas do escritório. Desconfiava-se que o seu Juarez pintova suas gravatas com marca-texto, para elas brilharem mais. Pouco a pouco, os funcionários foram deixando de usar as gravatas exóticas; dada algumas semanas, todos já estavam trabalhando novamente de terno. Agora que o chefe aderiu ao hábito, não tinha mais graça. O protesto perdeu a sua razão de ser. Até o seu Marcílio passou a usar uma gravata amarela mais sóbria. Seu Juarez venceu.

***

     O que não quer dizer que ele parou de usar as gravatas amarelas: seu Juarez acabou gostando do acessório. Seu Marcílio tinha razão: elas realmente davam um sentimento de liberdade, de extravasar. Por causa delas, seu Juarez ia de bom humor para o trabalho. Desse jeito, tratava melhor os funcionários, que rendiam mais e realizavam mais vendas. Logo, a divisão do seu Juarez bateu todas as vendas das outras divisões. Seu Juarez foi chamado para uma reunião com os cabeças da empresa:

     - Seu Juarez, em primeiro lugar, parabéns pelo ótimo desempenho apresentado nos últimos meses.

     - Obrigado.

     - A sua divisão é a que mais vende, muito mais que a divisão B ou a C juntas, por exemplo.

     - Bom, temos que ver que uma toupeira vende mais que a divisão C.

     - Rarará, é verdade. Gosto do seu espírito, seu Juarez. Por isso queremos elevá-lo a diretor regional da empresa.

     - Uau! É mesmo!?

     - Com certeza. Você é nosso melhor funcionário. Ninguém bate o seu desempenho em questão de gerência. Só que...

     - O quê?

     - Bom, gerente regional é um cargo que exige que se transmita confiança e profissionalismo. E, para que você assuma o cargo, tem uma coisinha que gostaríamos que o senhor mudasse...

     - O quê? O que é?

     - A sua gravata amarela.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A cultura do ódio

     Não sei se vocês sabem, mas existem certas restrições impostas a jornalistas em ano de eleições. Não dá, por exemplo, para emitir opinião sobre propaganda eleitoral. Tudo para equilibrar o jogo democrático, afinal, se a mídia quiser fazer uma panelinha para falar só os podres de um candidato e só o lado bom do outro certamente o resultado da eleição é afetado. Esse é o motivo pelo qual tenho evitado escrever sobre política, apesar de ser o momento mais propício. Sim, provavelmente nada aconteceria a um simples blogueiro, em um blog que nem tem lá muitas visualizações, mas lei é lei, né.

     Só que dessa vez eu resolvi quebrar o silêncio, e por um bom motivo. Antes eu evitava publicar as minhas opiniões até mesmo para ser imparcial, o que eu acho necessário em período de eleição (não sou contra as restrições aos jornais nesse período), mas agora eu resolvi falar porque o que tenho para criticar acontece não com um ou com outro, mas com TODOS os candidatos. Todos os dois.

     O que é essa campanha de ódio que estamos vendo na TV? Os últimos debates se resumiram a trocas de farpas entre os candidatos. Propostas, necas. O essencial não é mostrar-se o mais bem preparado, e sim pintar o outro como um monstro que levará o país a um retrocesso perigoso e potencialmente sem volta. Isso é mentira: nem Serra nem Dilma ousariam alterar bruscamente um projeto de governo tão popular quanto o atual, tenha ele suas raízes no governo FHC ou Lula. O fato é que nenhum dos dois irá mexer no Bolsa Família, na Petrobrás ou na legislação sobre o aborto, nem reprivatizar ou privatizar loucamente as empresas. São pontos polêmicos, cujas alterações desagradariam a grande parte da população e condenariam o governo do potencial presidente mexeriqueiro ao ostracismo. Muito perigoso. O ideal é deixar como está.

     Ainda assim os dois lados acusam seus opositores de radicalização, como se os planos de governo fossem opostos. E cria-se ódio e mais ódio, e factoides, e os factoides geram agressão, e a agressão gera mais agressão, e os candidatos ao invés de mandarem parar com o baixo nível se fazem de vítima por agressões com uma bolinha de papel e uma bexiga suspeita. O correto seria pedir para os eleitores baixarem a bola, mas o clima de acusações mútuas está a levar o Brasil para um cenário no qual não importa quem ganhe, metade da população não vai gostar. E vai espernear.

***

     Não precisava ser assim, mas a agressão colou. Colou porque é bom odiar. É bom se dizer anti-alguma coisa. Os políticos só estão a dar ao povo o que o povo quer. É ótimo poder xingar irracionalmente qualquer coisa. Um meio-motivo já basta. Não é necessário um quadro imparcial da situação, é bom saber os fatos só o suficiente para poder ter ódio de alguém, sem saber os motivos que o levaram a fazer aquilo. O FHC privatizou porque é do mal. Não foi para renovar empresas sucateadas e sim para dar dinheiro aos estrangeiros. O PT fez o mensalão porque é do mal, e não para conseguir apoio num Congresso engessado onde a maioria era oposição. Ouvir só um lado da história é bom, porque dá motivos para odiar sem ter que entender. Entender é secundário. Entender dá menos motivos para odiar.

     Por que e quando começou essa cultura do ódio? Do ódio por prazer? Será que sempre foi assim? E os hippies, será que no fundo, por baixo daquela capa de paz e amor, eles não amavam odiar? Os alemães têm uma palavra para se referir ao prazer que temos ao ver o outro se dando mal. Como quando rimos ao ver uma vídeo-cassetada. Não tenho ideia de como é a palavra, deve ser alguma coisa cheia de consoantes, mas o fato é que esse prazer na dor alheia existe de fato. Está registrado no dicionário. O prazer na dor é o combustível do ódio. Odiar é querer ver o outro se ferrar, e se sentir bem com isso. Na Alemanha ou em qualquer outro lugar.

     Não acho que esse amor pelo ódio seja uma característica inata e sim algo adquirido com a falta de amor. Pois veja bem, alguém rejeitado, que não se adequa ao que é esperado dele, deve se sentir muito bem ao ver que não é o único tratado assim. Quem é a grande maioria dos fãs dos vídeos do Felipe Neto? São pessoas bem resolvidas ou adolescentes e pós-adolescentes, vítimas de bullying ou indiferença, que precisam provar, até para si mesmos, que existem pessoas mais ridículas do que eles e, portanto, mais merecedoras de um estigma social? Poderiam ser elas os alvos desses vídeos, mas não são, e por isso elas podem rir à vontade.

     Não é ótimo rir quando o lado menos aceito dos outros é exposto na internet, um lugar onde todos podem gerar ódio e ninguém precisa assumir sua identidade? Na internet todo mundo paga de foda e ninguém o é, senão não perderiam tempo em discussões nas páginas de comentários do Youtube.

***

     Não, não: essa cultura do ódio é recente e parte das exigências que a estrutura social atual pede de seus membros. É uma estrutura que exige o alcance de patamares altíssimos, que apresenta modelos ideais impossíveis de se alcançar, que reforça a competição ao invés da cooperação. Há um perfil ideal extremamente restrito de cor, sexualidade, poder monetário, beleza, felicidade e disponibilidade de tempo impossível de ser implantado em sua totalidade em uma mísera pessoa. Ninguém o é, e todos adoram jogar isso na cara uns dos outros.

     Essa cultura surgida na estrutura econômica subiu para a superestrutura cultural e agora alcançou a política. Nunca, desde a redemocratização, houve tamanha corrente de ódio. Isso ameaça a democracia de um jeito muito óbvio: como pode um presidente odiado por metade da população governar um país? Será que destruiremos anos de construção de uma democracia forte por isso, ódio? Odiar não por o presidente ter um programa de governo ruim, mas simplesmente porque ele não é o outro candidato?

     Eu não vou pedir para que no domingo vocês votem com consciência. Votem sem ódio. Só isso. Boas eleições.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um anjo em minha vida

     O homem chega em casa, tira os sapatos, afrouxa o nó da gravata, pega um vinho, abre o vinho com o seu abridor especial, serve o vinho numa taça, pega um disco do Frank Sinatra, põe o disco do Frank Sinatra no toca-discos, liga o toca-discos, põe a agulha na faixa mais melancólica e se joga no sofá. Movimenta a taça com os dedos, de forma que o vinho faça ondulações circulares, põe os pés em cima da mesinha de centro, cruza os pés. Olha para o teto, sem parar de rodar o vinho em sua taça. Cantarola um dos versos de Sinatra. Depois ri, serve-se de mais vinho, coloca para voltar a música. Repete o processo mais algumas vezes, a música, o vinho, a risada, que agora é de embriaguez. Deixa passar a próxima faixa. É Fly me to the Moon. Ele meio que ouve a música, meio que olha para o teto. Sente que não consegue fazer os dois ao mesmo tempo, pelo menos não com a mesma concentração. Coloca a mão no rosto, esfrega um suor inexistente, olha para a varanda.

     Olha para a varanda.

     É agora.

     O homem caminha até a varanda, nem lenta, nem rapidamente. O homem sobe no parapeito. O homem de repente se dá conta do quão sublime é o momento. Sabia, havia mentalizado a grandiosidade e o impacto desse momento em sua vida, havia racionalizado tudo, mas emocionalmente a coisa só o atinge quando ele sobe no parapeito. Fecha os olhos, contendo o choro. Abre os braços, pende para frente. Um anjo cai em cima do homem.

     O homem empurra aquele corpo estranho surgido do nada para longe de si. Ele percebe que o corpo estranho tem asas, uma auréola, usa túnica branca e é um anjo, nessa ordem. O anjo, caído no chão, parece atordoado com o impacto. Vira a cabeça e vê o homem; ergue a palma da mão.

     - Não faça isso!

     Não é uma ordem, é um pedido urgente, uma apelação. Não faça isso. Não se mate. Por favor, não se mate. O homem sente um nó na garganta. Está diante do momento mais forte de sua vida.

     - Por que não?

     - Você é importante demais para morrer.

     O homem chora. O homem ajoelha-se no chão. Está com o rosto coberto pelas mãos. Abruptamente, levanta o rosto e grita, indignado.

     - Ah é? Se eu sou tão importante, porque Deus nunca veio me dizer isso? Por que Ele nunca demonstrou isso durante toda a minha vida, por que fez dela um vazio sem sentido?

     - A sua vida tem sentido, sim. Deus planeja grandes coisas com você.

     O anjo fala com voz calma, mas com urgência. Aproxima-se com cuidado para evitar movimentos bruscos que assustem o homem. O homem agora ouve o anjo e o ódio dá lugar à esperança.

     - É mesmo?

     O anjo assente com a cabeça.

     - Isso. Por que mais ele me mandaria para salvá-lo, se não fosse por se importar com você? Ele te ama!

     - Me ama?

     - Sim, você é um dos filhos mais queridos Dele, e ele quer vê-lo vivo! Ele tem grandes planos. Sua vida não passará mais em branco!

     - Mas tantos anos se passaram em branco! Tantas perdas, tantas decepções! Por quê? Por que devo continuar nessa espiral sem sentido?

     O homem faz menção de subir de novo no parapeito. O anjo sabe que captou a atenção do homem, e ele não se jogará, ainda. O anjo estende a mão.

     -Tolo! Você não vê que a confusão, a espiral sem sentido, só ganhará algum sentido com você vivo? Não vê que ela nunca adquirirá um sentido sem você? Não se dá conta da sua importância? Se você se matar, vai estragar tudo.

    O anjo fica ao lado do homem, com a mão estendida.

    - Por favor.

     O homem pega na mão do anjo e desce do parapeito. Abraça-o.

     - Isso. Muito bem. - diz o anjo.

     - Eu não acreditava, entende? Eu não acreditava mais em mim! Eu não acreditava...

     - Tudo bem, Daniel, tudo bem...

     - É sério, eu...

     O homem abre os olhos.

     - Quem?

     - Oi?

     - Você me chamou de Daniel?

     - Sim, por quê?

     - Eu não me chamo Daniel.

     O anjo solta o homem. O anjo tira um pequeno papel da túnica e lê o que está escrito. Estuda-o com cuidado.

     - Então, você não é o Daniel.

     - Não.

     - Aqui é o 603?

     - Não. É o 503.

     - Onde é o 603?

     - É o de cima. É onde mora o Daniel.

     - Ah.

     O homem olha, patético, para o anjo. Depois dá meia volta, senta no sofá e cruza as pernas em cima da mesinha de centro. Volta a rodopiar seu vinho. A expressão do homem é totalmente vazia. O anjo o segue.


     - Olha... 

     - Ricardo.

     - Olha Ricardo - diz o anjo -, Deus escreve por linhas tortas. Talvez tenha sido a Sua vontade que me fez cair aqui e não no apartamento do Daniel. Talvez este engano tenha ocorrido para que eu salvasse a sua vida.  


     - E foi?


     - Como?


     - Você é um emissário da divina providência. Logo, você sabe de todos os planos de Deus. Foi ou não foi de propósito?


     O anjo faz um silêncio.


     - ...Não.

     O anjo senta no sofá ao lado do homem. O homem lhe oferece vinho. 


     - Não posso - responde o anjo.


     - Anjos não podem ingerir álcool?


     - Não é isso. Estou no meio do expediente de trabalho.


     Por alguns minutos o anjo e o homem ficaram sentados lado a lado, o homem bebendo seu vinho e o anjo sem saber o que fazer. Sente-se culpado.O homem capta isso.


     - Olha - diz o homem - você pode ir. Não vou ficar brabo com você. Foi um engano, paciência.


     - Você vai se matar?


     O homem pensa.


     - Não - responde -. Não hoje.


     Ouve-se um grito do lado de fora. Um corpo passa pela varanda em direção à calçada. Homem e anjo ouvem um baque surdo. Os dois correm para a varanda. Espiam para baixo.

     - É o Daniel? - pergunta o anjo.

     - É.

     Um amontoado de gente envolve o corpo caído na calçada. Curiosos se aproximam. Uma mulher grita. O homem volta para o seu sofá, o seu vinho e o seu Sinatra. A música agora é Bad, Bad Leroy Brown. O anjo solta um palavrão. Senta-se no sofá.

     - Sabe o vinho?

     - Sim?

     - Agora eu quero.

     O homem assente e vai até a cozinha pegar uma garrafa. De lá, ouve o anjo gritar:

     - E traz uns salgadinhos também.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O bigodinho do Hitler

     Causou choque nos presentes o novo bigodinho do Dudu. Era aquele corte onde são tirados os pelos das extremidades, deixando barba só no meio do buço, igualzinho ao usado por Charles Chaplin ou por...

     - Hitler!

     - Não. Chaplin.

     - Cara, esse é o bigode do Hitler. Tira isso.

     - Não, é do Chaplin. E eu não vou tirar.

     O Dudu era um fã confesso dos filmes do Carlitos. Mas ninguém imaginava que a sua adoração chegasse a esse ponto. Quer dizer, ele tinha todos os filmes em dvd, e na sua parede estava pendurado aquele pôster clássico do Chaplin com o garotinho sentado ao lado, que o Dudu poderia muito bem ter comprado pronto na Wall Street Poster mas escolheu mandar fazer porque queria um modelo maior. Mas admirar um artista e imitá-lo fisicamente são coisas diferentes. Até então, todos achavam que a admiração do Dudu fosse saudável.

     - E por que não seria saudável? O que há de errado em copiar a marca de uma pessoa que você admira, ressucitar seus ideais, ainda mais tratando-se do maior gênio da comédia de todos os tempos?

     - O cara matou seis milhões de judeus e você chama o Hitler de gênio da comédia?

     - Hitler não! Chaplin! CHAPLIN!

     O bigodinho trazia problemas. Pessoas xingavam na rua. Não era raro jogarem coisas no Dudu. Quando ele precisava de uma informação, ninguém parava para lhe ajudar. Certa vez teve problema com um guarda.

     - Esse seu bigode aí...

     - O que tem?

     - É o bigode do Hitler. Não pode andar com ele.

     - Porque não?

     - Não sei, mas deve ser ilegal. Não pode usar.

     - Em primeiro lugar, é o bigode do Chaplin. Em segundo lugar, nã há lei que proíba porte de bigode. Qualquer bigode.

     -Você não vai tirar?

     - Como é que eu vou tirar um bigode no meio do shopping?

     - Tá bom, vou te dar essa chance hoje, mas não pode andar com isso aí não.

     - Pode sim!

     - Sei não, sei não...

     E o guarda ficou o tempo todo atrás do Dudu, olhando desconfiado.

     Quanto mais as pessoas tratavam o Dudu mal por causa de seu bigode, mais ele encontrava forças para usá-lo. Agora não era mais pelo Chaplin. Agora era por uma causa. A causa do bigodinho. O bigodinho era o teste social definitivo. Na visão de Dudu, as únicas pessoas dignas de atenção eram as que aceitassem o seu bigodinho. Quem o tratasse diferentemente por um simples trecho de pelo debaixo do nariz não merecia a sua consideração. Os amigos o suportavam porque o conheciam de longa data, mas faziam apelos para que o Dudu tirasse o bigodinho. Isso estava acabando com a sua vida social. O Dudu nem ouvia. Iria achar pessoas que o aceitassem do jeito que era.

      Como de fato achou, na Rebeca. A Rebeca era uma louraça linda que, contra todas as probabilidades, achava o bigodinho do Dudu não só bonito como, como um dia ela lhe confidenciou em particular, muito sexy. A Rebeca virou a namorada do Dudu, e ele fazia questão de sempre levá-la para tudo quanto era canto, para que todos pudessem ver que, olha lá, existem pessoas que veem muito além de um bigode polêmico. Ele gostava de jogar isso na cara dos amigos, que, com o advento da Rebeca, perderam as esperanças de fazer o Dudu raspar aquilo.

***

     O que explica a surpresa geral que foi quando o Dudu apareceu de cara limpa e, tão surpreendente quanto, sem a Rebeca. Quando perguntado sobre o assunto, tudo o que o Dudu dizia é que eles tinham razão, usar o bigodinho era perigoso demais. Pressionado para contar mais, ele disse que um dia a Rebeca chamou-o para o seu apartamento. Ele bateu a campainha, e a Rebeca gritou que a porta estava aberta. Dudu entrou no apartamento e achou Rebeca deitada nua na cama, com uma boina da Gestapo.

     - E aí?

     - E aí que eu hesitei. Mas resolvi ir em frente.

     A gota d'àgua foi quando, durante o sexo, a Rebeca começou a gritar "mein führer!" repetidamente. Aí não deu. Brochou na hora.

     - No mesmo dia resolvi tirar o bigodinho do Hitler.

     - Do Chaplin.

     - Não, não - suspirou ele, derrotado. - Do Hitler.

     Apesar do Dudu ficar bem deprimido, os amigos estavam felizes que aquela bobagem acabara. Agora o Dudu estava quase normal. Era só questão de tirar o pôster do Chaplin do quarto.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cumprimentar ou não

     Uma amiga do interior - mas que hoje mora e estuda em Porto Alegre - me perguntou hoje porque as pessoas da universidade não se cumprimentam. Disse ela que em sua cidade natal todo mundo dá um "oi" ou um "tudo bem?" quando cruza com um conhecido, mesmo que seja só um conhecido de vista. Quando a minha amiga passa por um colega e sorri, este rapidamente vira a cara, e ela não consegue entender o porquê.

     Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!

***
   
     Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.

     Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.

     Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.

     Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.

***

     Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.

***

     Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
     
     A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.

     Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Algo parecido com, mas não exatamente, uma parábola

     O artigo do Marcos Rolim na Zero Hora de domigo (Maconha, porta de saída?) lembrou-me uma história de tempos atrás. O artigo fala da agora badalada pesquisa do psiquiatra Dartiu Xavier, feita no início dos anos 2000, sobre o tratamento à base de maconha para dependentes de crack. Apesar de um tanto antiga, só agora essa pesquisa tornou-se mais conhecida, depois que um grupo de neurocientistas, incluindo membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - um grupo sério de estudos psiquiátricos - posicionou-se publicamente criticando a atual legislação brasileira, que não considera a maconha uma substância medicinal nem recreativa. Para quem não sabe, a pesquisa do doutor Xavier consistiu em pedir para que cinquenta dependentes de crack experimentassem trocar a droga pela maconha. Trinta e quatro deles conseguiram deixar o crack de lado e posteriormente largaram até mesmo a maconha, ficando totalmente limpos.

     Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.

     Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.

     Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.

      Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.

     Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo. 

      Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?

     - Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.

     - É, na pesquisa o doutor fez isso.

     - Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.

     - Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.

     - Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.

     - Hmm, acho que não. - disse o homem.

     - Por que não?

     - Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.

      - Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?

      - Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...

     Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.

     E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A ocorrência

     - Muito bem, pode relatar o que aconteceu.

     - Bom, o assalto foi ontem à tarde. Eu estava fazendo meu cooper...

     - Espera, espera. Que horas foi o assalto?

     - Às quatro e meia, quase cinco.

    - "Cidadão foi assaltado às 5 horas da tarde de 22/06/2010". Na rua...?

     - Na verdade foi na esquina da Torquato Jr. com a Marilene Silva.

    - "na esquina da Rua Torquato Júnior com a Marilene Silva.".

     - Isso. Ãh... só que Júnior é abreviado. Fica jota-erre.

     - Como? Assim?

     - É. Jota-erre. E ponto. E ali no horário também não se escreve assim. É cinco-agá. Cinco, o numeral.

     - Tá bom, tá bom.

     - Foi mal. É que eu sou escritor.

      - Tudo bem.

      - Sabe, fico pescando os erros.

     - Certo. Então, o que você disse que estava fazendo?

     - Estava correndo, fazendo o meu cooper.

     - "O cidadão estava correndo para se exercitar."

     - Não, não. Põe cooper, mesmo. É mais curto e eficiente.

     - Tá.

     - Na escrita, menos é sempre mais.

     - Entendi. Você estava lá, fazendo o seu cooper. Aí chegou o ladrão?

     - Isso.

     - Chegou como? Já abordou você direto, com arma e tudo?

     - Não, fingiu que queria só saber as horas. Quando eu parei para lhe informar corretamente, ele grudou em mim e disse que tinha uma faca, e que ia me furar com ela se eu não passasse a minha carteira e celular.

      - "O ladrão abordou o cidadão pedindo as horas e depois disse que era um assalto. O ladrão disse que tinha uma faca e que iria furar o cidadão se ele não entregasse a carteira e o celular.". É isso?

     - É.

     - Quer corrigir alguma coisa?

     - Não. Bem, é que...

     - O que é?

     - Não, deixa. Você vai me achar um chato.

     - Fala.

     - Não, é que você usou "ladrão" duas vezes seguidas. Não é bom repetir palavras. Sabe, fica feio pra quem lê.

     - O que eu faço?

     - Tenta pôr "meliante" no lugar do segundo "ladrão".

     - "O meliante disse que tinha uma faca e que ia furar o cidadão se ele não..."

     - Quer saber? Só coloca "ele". Está se referindo ao sujeito da última frase. O leitor irá entender.

     - "Ele disse que tinha uma faca...". Ok, ok. Mais alguma coisa?

     - Deixa eu ler. Ãh... É, a frase está meio mal construída. Reescreve assim: "Ele ameaçou furar o cidadão com uma faca caso este não entregasse a carteira e o celular".

     - "...Carteira e celular.". Pronto. E depois?

     - Depois eu passei as minhas posses e ele fugiu.

     - Como? Saiu andando para onde?

     - Desceu a Torquato Jr. e disse para eu seguir o meu caminho.

     - "Depois de pegar a carteira e o celular do cidadão, o ladrão..."

     - Já usamos ladrão. Bota "larápio".

     - "...O larápio disse para o cidadão seguir o seu caminho e desceu a Torquato Júnior.".

    - Júnior é jota-erre. E bota um "então" antes do "desceu".

    - Como era o ladrão?

    - Tipo, mais ou menos da minha altura, mas mais forte, tinha uma barba rala, pele negra...

     - "O assaltante..."

     - Isso. Boa.

     - "...Tem uma altura de mais ou menos um metro e setenta, é negro e..."

     - Não, não... quer saber? Deixa que eu escrevo.

     - O quê?!

     - Me dá licença? Assim... isso. Ó, a barba rala é uma coisa da aparência que pode ser mudada, já a altura e a cor não. É melhor colocar ela em uma frase separada do resto. Assim: "O assaltante é um negro de cerca de 1,70m. Tem a cabeça raspada e uma barba rala. É forte: sua estrutura corporal avantajada compensa o relativo pouco tamanho.". Mais alguma coisa?

     - Hein?

     - Tenho que colocar mais alguma informação?

     - Não. Assim já está bom.

     - E as roupas? Eu não falo das roupas?

     - Não é necessário, eles mudam de roupa todos os assaltos...

     - Ah, qual é? Como o personagem vai ficar crível sem uma descrição decente de aparência? Vou botar assim: "Trajava um casaco da Adidas preto, possivelmente falsificado, e uma calça de abrigo da mesma cor. Seus tênis eram velhos Kichutes desbotados como o brilho fosco de seus olhos. Sua expressão era terrível; sua voz, socos em forma de som.". Pronto. Acho que é isso. Relê tudo aí.

     - Ãhn...

     - Acho que está bom, né? Bom, agora é só salvar e botar no arquivo. Próximo!

     - Ei, você não pode...

     - Olá rapaz, o que houve?

     - Oi. Eu fui assaltado ontem...

     - Foi quando? De dia ou de noite?

     - De noite.

     - "Era uma noite sombria, na qual transitava, incauto, o nosso protagonista. Mal sabia ele que..."

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Nojento

     O Zeca era chato. Pra caramba.

     - Zeca, dá um gole da sua Coca?

     - Não.

     - Por quê?

     - Você vai beber do bico e vai babar tudo.

     - Cara, você é chato. Pra caramba. Ao menos dá o restinho.

     - Vou pensar.

     Não adiantava os amigos chamarem o Zeca de afrescalhado, ele dizia que era mesmo. Assim:

     - Afrescalhado? Sou mesmo.

     E tomava outro gole de sua Coca. Sem dividir.

     Não parava por aí. Pra tocar em tudo na casa do Zeca tinha que se lavar as mãos primeiro: nos livros, no controle do videogame, no computador.

     - No computador, Zeca?

     - No computador, sim. Sabe quantas bactérias ficam alojadas nas teclas por causa de mãos sujas? Sabe quantas?

     O Zeca sabia. E dá-lhe estatísticas pra cima das visitas, que se sentiam menos inclinadas a visitá-lo outras vezes.

     Mas o Zeca gostava muito de uma menina, a Lia. Não só ele; todo mundo desejava a Lia para si. A Lia era uma deusa. Longos cabelos lisos e loiros, longas pernas, longos cílios protegendo olhos loucamente verdes. Talvez não dê pra usar o adjetivo "loucamente" nesse caso, mas é o que melhor cabe. Os olhos de Lia eram loucamente verdes e deixavam os outros loucos. Isso e o conjunto da obra, claro.

     O Téo era um que sonhava constantemente com os olhos da Lia:

     - A, a Lia... por ela eu faria tudo. Me casava, contraía matrimônio, jurava eterna lealdade, deixava de ver o próximo filme do Batman...

     - Eu também. Faria qualquer coisa. - disse o Zeca.

     - Sério? Até dividir a mesma Coca comigo? No bico?

     - Argh!

     Mas aconteceu o seguinte: o Zeca descobriu que a Lia tinha mania de limpeza. Lavava as mãos pra tudo e não dividia canudinho. Chegou à conclusão de que ela era a mulher perfeita pra ele. Assim:

     - Ela é a mulher perfeita pra mim!

     E começou a conversar com a Lia todos os dias. Os amigos observavam os dois, pensando em como a Lia suportava o Zeca. Mas a verdade é que a Lia se identificava com ele. Por isso, foi dando abertura pro Zeca, até que um dia disse a seguinte frase:

     - Ai, Zeca... nunca achei alguém que me entendesse tão bem como você!

     Esse foi o sinal que Zeca esperava. Ao voltar pra casa, passou a noite pensando em tudo o que diria pra Lia no dia seguinte. Diria que estivera sempre à procura de alguém como ela, e que agora não a deixaria escapar. Prometeria amor eterno, confiança, fidelidade. E realmente, no dia seguinte, disse tudo isso.

     - ...E agora que eu te achei, Lia, não vou te deixar escapar de jeito nenhum! - Finalizou.

     Lia estava emocionada. Estava torcendo para que um dia ele lhe dissesse essas coisas. Aceitou. Se abraçaram. Ela olhou nos olhos dele e ele nos olhos loucamente verdes dela. Fez carícias no seu cabelo. Ele encostou seu rosto no dela. Podiam sentir a respiração um do outro. Zeca foi deslizando o rosto, aproximando sua boca da de Lia. Lia foi deslizando o corpo para longe de Zeca. Zeca não entendeu.

     - Ai, não Zeca...

     Zeca continuou não entendendo. Ela explicou:

     - Não gosto de beijo.

     E voltou a lhe abraçar, como se nada tivesse acontecido. Zeca não a abraçou. Repetiu o que ela disse:

     - Você... não gosta de beijo.

     - É, bobinho.

     - Beijo assim, tipo, beijo, beijo de língua.

     - Isso. Ui. É nojento.

     - Como assim, nojento?

     - Como assim o quê? A gente misturar salivas, eu deixar a língua de outro entrar na minha boca, eu - argh! - botar a minha língua na boca de outra pessoa, encostá-la nos dentes de outro, vai saber se acho um pedaço de comida? Iiuh, pra mim não, obrigada.

    E continuou abraçando-o. Zeca demorou um pouco pra se ligar que tinha que abraçá-la, também. Fez isso lentamente, como se não soubesse exatamente o que tinha entre os braços. E o pior foi isso: depois de uns minutos abraçados, Lia falou sussurrando em seu ouvido:

     - E não se preocupa, quem não vai te deixar escapar de jeito nenhum sou eu...

     ***

     Zeca encontrou os amigos mais tarde, no bar. Todos fizeram uma festa quando ele entrou: cantaram alto, se levantaram para abraçá-lo, parabenizaram-no.

     - Foi o Tadeu quem contou - explicou o Téo - viu você e a Lia no maior love hoje...

     - Sacana de sorte, hein? Vai ter tudo aquilo pra ti, magrão! - disse o Tadeu.

     Entre vivas e cantos, o Zeca sentou na mesa muito quieto. Ouvia os amigos ao longe, comentando como queriam estar no lugar do Zeca, que ele era um privilegiado, o que não fariam por uma noite com a Lia... meu Deus, pensou Zeca, se a Lia achava beijar nojento, o que dizer então de...

     O Zeca pegou a Coca que o Téo estava bebendo e tomou um gole. Do bico. O Téo olhou pra ele surpreso. E o Zeca disse uma frase que o Téo na hora não entendeu:

     - Já que essa é a única saliva que eu vou poder compartilhar...

     E ficou de cara amarrada pelo resto da noite.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Deus e os designers

     Muito mais difícil do que ser um bom físico é ser um bom designer. O bom físico entende das origens do Universo, das macroformações das galáxias, das microleis da matéria e das forças que fazem o mundo girar ao invés de quicar Infinito afora. O bom designer mestra o design. De tudo. Design é provavelmente o universo mais abrangente que existe. Não estamos falando apenas de design de móveis ou roupas ou automóveis, mas também de design de joias, livros, embalagens, interiores, webpages, e, além desses, design gráfico, de brinquedos, videogames, jogos de tabuleiro, armações de óculos...

     Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.

***
  
     Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.

***

     Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.

     Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.

     - Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!

     Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.

     - Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.

     - Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.

     Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.

     - Bravo! E o que mais?

     - Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!

     Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.

     - Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!

     - E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.

     Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.

     - Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.

     - Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.

     - Obrigado.

     - Agora a parte chata...

     - Sim.

     - Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...

     - Sim.

     - ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.

    - Então você quer que eu...

    - Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.

     - Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?

     - Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?

     - Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...

     - Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?

     - Não, tudo bem, eu faço...

     - Viu? Ó, pode até deixar a orelha.

     - Ok, ok.

     Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O mundo formal

     O problema é o seguinte: as pessoas se levam a sério demais. Esse é o problema. Vivem suas vidas de forma muito séria. Usam roupas. Eu queria saber quem foi o cara que inventou as roupas. Um burocrata, com certeza. A nudez é informal. Antes, todos vivíamos peladões, na boa, sem ter que corar cada vez que cruzávamos com um conhecido (cruzar, no sentido figurado). Na hora em que os homem resolveram usar roupas (e as mulheres também), acabou-se a informalidade. Antes era tudo pele e ninguém se incomodava, depois surgiu o tecido para separar a nossa pele da dos outros, e a nós também. Não podíamos mais ficar sem roupa, era mal visto. Daí para o uso obrigatório de calças no trabalho foi um pulo.

     Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.

     Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.

     A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.

     - Como vai a vida?

     - Bem, bem. Tá fazendo o quê?

     - Tô estudando Farmácia. E tu?

     - Fazendo cursinho. Puxado?

     - Anrã. E o teu?

     - Também.

     - Faltou mais alguma?

     - Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?

     - Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.

     - Tchau.

     - Tchau.

     São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.

     Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.

     Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.

     - Já disse que não, Adalberto.

     - Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...

     - Continuo dizendo que não.

     - Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.

     - Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?

     - Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...

     - Sei, sei...

     Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.

domingo, 30 de maio de 2010

A reunião

     AMBIENTE: sala de reuniões de uma produtora de vídeos pornô. Estão reunidos ao redor da mesa todos os funcionários da empresa: produtores, editores, roteiristas, atores e atrizes. Na ponta, o presidente da produtora. O chefe. Ele está irritado.

     CHEFE: - Quero mostrar uma coisinha pra vocês.

     CHEFE abre um gráfico no Powerpoint de seu laptop e mostra-o a todos. Uma linha descendente.

     CHEFE: - Este é o crescimento da indústria de vídeos pornô no mundo.

     ATOR 1 levanta a mão para falar.

     ATOR 1: - Hã, chefe, acho que essa linha mostra uma queda, e não um crescimento...

     CHEFE bate com o punho na mesa. Responde gritando.

     CHEFE: - É claro que mostra uma queda, seu energúmeno! É porque a indústria não está crescendo! Se ela estivesse crescendo, eu estaria feliz! Eu pareço feliz? Não! E, se ela não está crescendo, está diminuíndo! E alguém sabe porque a indústria está diminuindo?

     ATOR 1 levanta a mão de novo, mas pensa melhor e resolve baixá-la. CHEFE respira fundo, e ele mesmo explica.

     CHEFE: - É por causa da internet. Temos que competir com a maldita internet. E eu não falo só de pirataria. Agora, com esses sites de vídeos em stream, qualquer um pode fazer seus próprios filminhos e mandar para o mundo. O cara só precisa de uma câmera, uma ou duas mulheres bêbadas e um tripé e voilá, pode se chamar de produtor pornô.

     CHEFE abre o navegador de seu laptop e acessa um site de vídeos adultos em stream. Clica num vídeo qualquer e mostra-o para todos.

     CHEFE: - Olhem isso. Olhem isso! É péssimo. Completamente amador. A mulher nem está maquiada! E esse enquadramento, parece que o cara colocou a câmera em qualquer lugar. E esses gemidos, meu Deus! Que gemidos são esses? Não se geme assim num filme.

     PRODUTOR 1: - Aonde você quer chegar?

     CHEFE: - Eu quero que vocês olhem as visualizações. Mil e duzentas. É mais do que o total de vendas do nosso último filme, "Eu Sei Com Quem Vocês Fizeram no Verão Passado". Um lixo desses. E olha que eu peguei um vídeo ao acaso. Tem uns piores e com mais visualizações. As nossas vendas estão em queda porque os nossos consumidores migram daqui para estes sites. Estão trocando a nossa produção especializada por qualquer filminho, porque é de graça.

     PRODUTOR: - Tá, mas o que você sugere? E porque você chamou toda a equipe para a reunião?

     ATOR 2: - É, eu estava na academia! O que eu tenho a ver com vendas e números? Isso é com o pessoal da, do... das vendas e números!    

     CHEFE: - O que eu sugiro, meus amigos, é trabalhar com o mercado. Claro, qualquer um pode fazer um vídeo pornô e lançar na web de graça, mas só nós podemos fazer um filme. Sempre haverá um público que quer mais qualidade, que não se rende a qualquer filmezinho de webcam. Esse é o nosso público. O público especializado. É nele que temos que investir forte. E, se qualidade é o que eles querem, qualidade é o que terão.

     O CHEFE aponta para o pessoal da equipe técnica.

     CHEFE: - Equipe técnica! Precisamos das melhores câmeras do mercado. Só quero filmar em Full HD agora. Aqueles vídeos quadriculados da internet não poderão competir com a nossa moderna aparelhagem. Quero que os espectadores possam ver cada penugem das coxas de nossa atrizes, uma por uma.

     TÉCNICO-CHEFE: - Chefinho, isso vai custar caro...

     CHEFE: - Não quero saber! Cada gasto é um investimento. E pesquisem essa tecnologia 3D. Quando houver TVs 3D, quero ser o primeiro a fazer filmes pornôs para elas. Total imersão! Quero que o espectador sinta cada fluido corporal de nosso elenco. É isso o que vai vender no futuro!

     CHEFE aponta para a equipe de roteiros.

     CHEFE: - Roteiristas! Não gostei do seu último trabalho. Muito raso. Eu quero uma história. Eu quero rir, eu quero chorar, eu quero me emocionar. Chega de mulheres traídas que resolvem dar o troco na mesma moeda e professoras sacanas. Eu quero originalidade.

     ROTEIRISTA 1: - Como assim? "Sacana e Boa de Cama" foi um grande filme!

     ROTEIRISTA 2: - É! E "Escola da Cama" foi muito criativo! Quer dizer, a menina recatada é transferida para uma escola nova. Aí ela descobre que é uma escola de sexo, e aprende com seus professores como deixar de ser tão inibida, com lições práticas e em grupo. É perfeito!

     CHEFE: - Não, eu quero mais do que isso... Eu quero aprofundamento... De onde veio essa menina? Por que ela é tão recatada? Como era a sua vida antes de vir para a escola? Lacunas, lacunas... E o dilema da personagem? Ela é tirada de seu meio e colocada em um ambiente completamente oposto. E seus conflitos, e suas fobias, onde estão? Ela poderia confessar tudo isso para a sua colega de quarto, que a ajudaria a aceitar sua nova realidade, fazendo-a se abrir aos poucos, primeiro figurativa e depois literalmente. É a cena emblemática, o simbolismo da nova realidade liberal penetrando no âmago da sociedade conservadora burguesa, talvez com a ajuda de brinquedinhos. É isso o que eu quero. Eu quero o equivalente a Dostoiévski se ele escrevesse sacanagem.

     ATRIZ 1: - E nós, chefe? Quer que botemos mais silicone?

     CHEFE: - Não só isso, minha cara. Eu quero acreditar na interpretação de vocês. No seu último papel como Mulher das Cavenas Sacana, você não convencia ninguém. Faltou entrar no personagem. O público quer acreditar no que está vendo, e o primeiro passo é vocês todos acreditarem no que estão fazendo. Por isso, gastei uma boa grana pra trazer o melhor professor de teatro de São Paulo para dar um curso intensivo. Eu quero ver interpretações dignas de Oscar. E para a direção...

     Um estagiário levanta a mão. O CHEFE se supreende.

     CHEFE: -Sim?

     ESTAGIÁRIO: - Com licença, mas acho que o senhor está se enganando.

     Todos os presentes olham-se com cara de espanto. Burburinhos. CHEFE olha para ESTAGIÁRIO com cara de incredulidade.

     CHEFE: - Como é que é?

     ESTAGIÁRIO: - Eu acho que o senhor está se enganando. O público não está interessado em qualidade de vídeo ou roteiros bons. O público quer sexo.

     CHEFE não consegue mudar de cara. Sua mão começa a tremer ligeiramente.

      CHEFE: - Masmasmas claro que sim! Imagens nítidas, segurança de encontrar qualidade, tudo isso contribui para a fidelização do...

     ESTAGIÁRIO: - Não é isso que o público está procurando. O público não está interessado em qualidade técnica, ele quer o sexo. O melhor sexo que conseguir encontrar.

      CHEFE: - Mas temos atrizes profissionais nos nossos elencos, elas vão estudar atuação para...

     ESTAGIÁRIO: - A única diferença das suas profissionais para as amadoras são as plásticas. O termo "profissional" é uma enganação. Escola de atores? Por que a audiência iria preferir o fake se ela pode assistir ao real? A credibilidade é muito maior quando sabemos que a pessoa está fazendo aquilo por amor ao sexo e não pelo dinheiro.

      CHEFE bate na mesa com a mão. Começa a perder a compostura.

      CHEFE: -Ora, jovenzinho! Como ousa chamar o meu elenco de enganação? Essas mulheres sabem trepar como nenhuma outra!

     ESTAGIÁRIO: - Ah, e você acha que é realmente difícil de achar alguém por aí que, sem especialização nenhuma, consiga trepar melhor que a maioria das suas mulheres? Claro que a maioria nunca chegará aos pés delas, mas algumas... ah, algumas possuem a prática. Algumas realmente sabem o que estão fazendo, mesmo sem especialização nenhuma. Elas possuem as manhas, elas treinaram para isso. Elas têm a vivência. Vai dizer que elas não merecem as 1200 visualizações, só porque não são "profissionais"?

     CHEFE: - Agora já chega. Você está demitido. Demitido! Saia já desta sala!

     ESTAGIÁRIO se levanta da cadeira e sai da sala. CHEFE respira fundo para se acalmar. Senta novamente.

     CHEFE: -Então, agora é a hora de falar do lado ruim: cortes de gastos. Primeiro, acabou a bolsa-academia. Sinto muito, mas agora vocês vão ter que malhar em casa. Quanto ao auxílio nas plásticas...

***

     E essa é a minha opinião sobre o diploma de Jornalismo.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A linha

     Fiquei revoltado e satisfeito com a matéria sobre zoofilia da Void. Revoltado porque é nojento. O satisfeito eu explico depois. Para quem não sabe, mês retrasado a Void publicou uma matéria ensinando como seduzir animais. Para o sexo. Isso. Primeiro ensinava os melindres para se dar bem com os animais domésticos, depois os da fazenda, e culminava com uma seção sobre como se divertir no oceano. Com sexo. Não tive a força de vontade necessária para ler tudo, mas tinha uma parte sensacional sobre como fazer amor com golfinhos. E digo fazer amor, porque a revista deixava sempre claro que não se tratava de abusar dos animaizinhos, e sim desfrutar de prazer conjunto. Menos mal.

     Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.

     E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.

     Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.

     Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.

     O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.