segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A mais bonita

O Leo e o Dinho riram muito, quando o Barba declarou que era "levemente bonito".
- Tão rindo do quê? - perguntou o Barba, ofendido.
- Ah, cara, é que foi engraçado isso... - respondeu o Dinho, rindo.
- O quê? Que eu disse que sou levemente bonito? o que tem de engraçado?
- É. Sei lá, meu. Foi engraçado, ouvir você se achar o bonitão.
- Não foi isso que eu disse. Não sou nenhum Brad Pitt, mas também não sou feio. Sou levemente bonito. Tenho uma beleza agradável.
O Dinho sufocou um riso. O Barba bateu com a mão na mesa.
- E querem saber? Posso não ser irresistível, mas sou mais bonito que vocês dois!
- Ah, claro - ironizou o Dinho - essa sua barriguinha aí, inclusive, é super sexy.
- Bem delineada, numa forma perfeita de bola - continuou o Leo - a Alinne Moraes das barrigas.
- Vou provar pra vocês. Amanhã vamos perguntar às meninas.
Os outros não deram bola, pensando que o Barba ia esquecer. Mas no dia seguinte estavam eles com a Cacá, a Sandra e a Duda, e o Barba perguntou a elas qual dos três era o mais bonito. O Barba era assim. Implicava com pouca coisa.
- Não sei... - tentou se esquivar a Duda.
- Não se incomodem, não precisam dizer quem é o mais feio, só apontar o mais bonito - instruiu o Barba.
As meninas relutaram um pouco. Não queriam que ninguém se sentisse mal. Os próprios homens do grupo disseram para o Barba deixar pra lá, mas o Barba fazia questão de ouvir a resposta. Elas finalmente aceitaram, debateram entre si por um rápido momento e responderam:
- O Leo.
O Leo comemorou, e aproveitou para zoar o Barba. Mas não acabou. Logo depois, a Cacá disse:
- E nós? Qual a mais bonita de nós três?
O Dinho pressentiu o perigo e tratou de responder logo:
- Ah, vocês três são bonitas iguais. Daí é questão de gosto.
- É - concordou o Leo - não dá pra dizer que uma é mais bonita que a outra.
Dizer que um homem é mais bonito que o outro é uma coisa. Agora, com mulheres, é diferente. Dizer que uma das três era mais bela que as outras seria instaurar o caos entre elas e entre o grupo como um todo. Melhor se esquivar da pergunta.
O Leo já estava prestes a emendar outro assunto quando o Barba interrompeu:
- Peraí, deixa eu pensar bem.
Os outros dois seguraram a respiração. Se o Barba fosse esperto, tivesse um pingo de sabedoria, ele iria encerrar o assunto ali. Diria que também não sabia qual era a mais bonita, e seguiria adiante, emendando uma discussão sobre o BBB ou o Haiti. Mas o Barba era metódico. Se irritava quando as pessoas se atrasavam cinco minutos para um compromisso. Fazia um escarcéu se esqueciam de lhe dar a nota fiscal. E odiava quando alguma pergunta ficava sem resposta. Era assim. Implicava com pouca coisa.
Por um longo tempo, ele ficou pensativo, olhando para as três. Que já não estavam mais sorrindo, estavam sérias. A resposta do Barba seria definitiva. Se ele dissesse que uma era a mais bonita, era porque esta era a mais bonita. Não havia margem para dúvidas. E elas também já estavam pensando nas implicações daquilo. Como viveriam, sabendo que uma era superior às outras?
Finalmente, o Barba decretou:
- Não sei, não sei dizer.
O Leo e o Dinho respiraram aliviados. Já estavam quase azuis, de segurar a respiração. Logo apressaram-se em mudar de assunto, e a conversa seguiu um rumo animado. Sobre o BBB. Mas, durante o resto do tempo, o Barba ficou quieto, pensativo.

***

O Leo e o Dinho já tinham até esquecido da situação, mas não o Barba. Certo dia, ele disse ao Dinho, meio que do nada:
- Não consigo me decidir.
- Sobre o quê? - perguntou o Dinho, aéreo.
- Sobre qual delas é a mais bonita.
- Sobre qual das... ah, você ainda está pensando nisso?
- Depois daquilo a Sandra me ligou. Falou qualquer coisa, primeiro, depois disse que queria saber quem eu achava que era a mais bonita, de verdade. Achou que eu não dissera nada na hora para não magoá-las.
- E aí?
- Daí que eu disse pra ela a verdade. Que eu não sei qual é a mais bonita. Eu penso, penso e não consigo me decidir. Ela não se convenceu. Falou mais qualquer coisa e desligou. Depois que eu me toquei que ela nunca tinha ligado pra mim antes. Foi a primeira vez.

***

- A Cacá tem o rosto mais bonito. - ponderou o Barba
- Anrã - concordou o Leo.
- Lindo mesmo. De um anjo. Olhos azuis... e, é claro, tem um corpo de modelo.
- Isso. Alta e magra. Eu gosto.
- E não de um jeito que ela pareça desengonçada.
- Não, não.
- Ao contrário, ela tem um porte elegante. Sexy. Ela caminha ereta, com seus cabelos loiros esvoaçantes. Por outro lado, a Duda...
- Ah, a Duda...
- A Duda é gostosa. É baixinha, e certamente não é magrela. Ela tem onde pegar. Ela tem conteúdo, se você me entende.
- Entendo. E nos lugares certos.
- Nos lugares certos. É isso. Ela e a Cacá são meio que opostos. A Cacá é loira e alta, e a Duda é uma morenaça cheia de curvas...
- É a diferença entre bonita e gostosa. A Cacá é bonita, e a Duda é gostosa.
- Não.
- Não?
- A Duda é linda, também. Tem um rostinho tão angelical quanto a Cacá. E o corpo só colabora para o resultado final. Agora, a Sandra...
- A Sandra fica no meio termo.
- Isso. A Sandra é estatura média, nem baixinha nem alta, gostosinha, bonitinha.
- Não é nem um nem outro. É mais sem graça que as outras.
- Será? Talvez esse meio termo seja a resposta. Ela pega o melhor das duas e combina numa versão econômica. É o pacote misto.
- Então é ela? Ela é a mais bonita?
- Não sei, não sei...

***

- Alô?
- Alô, Barba?
- Oi?
- É a Duda, tudo bem?
- Oi, Duda.
- Escuta, estou ligando pra saber se você não viu meu celular por aí. Acho que eu esqueci na casa do Leo. Você não pegou?
- Não. Não sei de nada.
- Tá. E de mais tudo bem?
- Olha, estou com uma ferida no pé meio feia, mas o médico disse que...
- Escuta, tava me lembrando daquele dia em que a gente estava falando sobre quem era a mais bonita do grupo e tal, se lembra?
- Ãhn...
- Por acaso, assim, só de curiosidade, você chegou a alguma conclusão depois daquilo?
- Não, não.
- Não? Nenhuma? Nem uma ideia?
- Ainda não.
- Ah, tá certo então. Era isso. Tchau!
- Espera! Se você perdeu o celular, como é que você está me ligando...
Mas ela já tinha desligado.

***

Na mesa do bar, o Barba anunciou para o Leo e o Dinho a sua ideia.
- Só há um jeito de saber qual delas é a mais sexy, a mais bonita, a mais gostosa. Eu preciso ver as três de lingerie.
Desta vez, o Leo e o Dinho não riram porque sabiam que ele falava sério.
- Vejam bem, uma mulher de lingerie é uma mulher na sua beleza plena - dissertou o Barba, como um professor de Biologia explicando o funcionamento do paramécio - na sua forma mais sexy. Nas suas formas reais, melhor dizendo. Não dá pra dizer que uma mulher é mais bela que a outra sem vê-las de lingerie antes. A lingerie é a prova final.
E, para dar um exemplo, pediu para todos fazerem um exercício.
- Imaginem a Cacá de lingerie vermelha.
Suspiros e gemidos enquanto cada um imaginava a Cacá de lingerie vermelha. Era uma visão perfeita, uma visão dos céus.
- Agora imaginem a Duda de lingerie...
Pausa. Os outros dois fecharam os olhos para imaginar. O Barba completou:
- ...preta.
Mais gemidos e suspiros. O Barba estava certo. Era o apogeu da beleza feminina. Mas como ele planejava vê-las assim? Escondido? O Barba fez que não com a cabeça.
- Vou pedir a elas.
Antes que o Leo e o Dinho se exaltassem muito chamando-o de louco e maluco, o Barba levantou a mão, pedindo silêncio, e falou:
- Na última vez que a Sandra me ligou, eu falei da minha ideia pra ela. Ela me chamou de tarado, de maluco, de tudo isso, e eu esperei pacientemente ela acabar. Depois disse, calmamente, que era o único jeito. Que, sem isso, eu nunca poderia dar uma resposta satisfatória e que ela viveria para sempre sem saber quem é a mais bela do grupo. Disse também que eu era o mais qualificado para decidir isso. Só eu examinaria-as sob todos os aspectos possíveis, só a minha decisão seria cem por cento segura.
Os amigos ouviam-no quietos. Conheciam o Barba. O metódico Barba. Só ele possuía a credibilidade necessária para dar tal veredito. Ele estava certo.
- Ela parou de falar por um segundo, pensando, e finalmente, contrariada, disse que eu tinha razão. E que cooperaria comigo. Afinal, não conseguiria viver sem saber a resposta. Só falta eu conseguir a aprovação das outras duas. E isso, creio, não será tão difícil.
O Barba terminou então de beber a sua cerveja, pagou a conta e disse que precisava fazer seus "contatos". Quando ele foi embora, o Leo disse para o Dinho que o Barba era um cara estranho, mas que, de alguma forma, era o seu ídolo. Queria ser igual a ele.
- É - concordou o Dinho - a não ser por aquele mato que ele tem na cara.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O "tchan"

O Edgar mal chegou no círculo e já foi bombardeado com a pergunta:

- O que é o "tchan" pra ti?

Ele nem pestanejou:

- São as nádegas.

Comoção na roda. Como assim, as nádegas?

- As nádegas, ora. Os glúteos. O derrière. A bunda.

- Tá, mas da onde você tirou isso?

- Ora, a música não diz? "Segura o tchan, agarra o tchan, segura o tchan-tchan-tchan-tchan-tchan". Agarra o "tchan". Agarre a bunda da outra pessoa. Passe a mão. Pensei que era algo subentendido.

- Não é "amarra o tchan?" - questionou alguém da roda.

- Sei lá. É?

- Acho que é, sim. É "amarra o tchan". Pelo menos todo mundo aqui tá trabalhando em cima dessa versão.

- Tá, mas pra quê isso?

- Estamos tentando descobrir, afinal, o que é o "tchan". Subitamente percebemos que passamos boa parte da nossa infância cantando para segurar o tchan, amarrar o tchan, ou agarrar, sei lá, e nem sabemos o que ele é. É algo que está no inconsciente coletivo, mas ninguém nunca se perguntou o que raios é o "tchan".

- Minha teoria - começou o Dido, o mais filosófico de todos - é a de que o "tchan" significa a infinitude. Compadre Washington, quando concebeu a letra da canção, estava querendo dizer que ela é algo perene, fugaz, e que é preciso segurá-la, subjugá-la, até. Em sua profunda sabedoria, ele quis passar uma lição a todos os jovens de que ela, apesar disso, é algo tangível, e ordena que é preciso capturá-la antes que escape pela nossas mãos. Já o Caco acha que é uma égua.

É preciso dizer que antes do Edgar chegar eles já tinham discutido todos os assuntos possíveis: futebol, televisão, a vida de cada um, uma breve passada por política e mais um pouco de futebol. Depois passaram para as questões mais sombrias, o sentido da vida, religiões, Deus, o apocalipse, a existência da alma. Quando encerraram todas as discussões, alguém comentou, só pra preencher o silêncio, que nunca entendera bem o que significava o "tchan". Alguém entendera? Ninguém entendera. Deram-se conta de que esta também era uma discussão maior. O que é o "tchan"? Como ninguém sabia? Era preciso descobrir. Era de suma importância saber o que é o "tchan". O fato de ninguém saber o que é o "tchan" não era só incômodo, era perturbador. Era uma questão que precisava ser respondida com urgência, porque, porque... sei lá. Mas o sentido da vida podia esperar.

A teoria da égua estava ganhando força no grupo. Uma égua fugida, que precisava ser laçada. Claro que isso abria margem para interpretações de caráter chulo, também. A égua era uma metáfora da mulher arredia, que precisa ser domada, inclusive sexualmente. A mulher vista pelo homem como se fosse um animal. O "tchan" da música era a égua que também era a mulher. A metáfora da metáfora. Genial.

- Não pode ser "surpresa"? Tchan parece uma onomatopeia.

- Desenvolve.

- Sabe, aquele som de revelação. Tipo "tchan-tchan-tchan!". O som que precede uma surpresa.

- Sim, então segurar o "tchan" seria controlar as revelações da vida, as suas surpresas, sermos nós mesmos os escritores da nossa trajetória, sem sobressaltos, rumo à infinitude que precisa ser...

- Não é a infinitude, Dido. Desiste.

Finalmente, um deles tem a ideia de puxar um celular com internet e jogar o termo no Google. Nada de notável aparece. Wikipédia, Translator, não há menções sobre a origem do nome. Eles continuam procurando na rede, mas é em vão. O maior reservatório de conhecimentos do mundo, a internet, não saber dizer o que é o "tchan". Depressão geral. Subitamente, a vida parece mais vazia. Não há explicação para o "tchan". Para todos, parece que será mais difícil acordar amanhã sabendo que não se sabe o que é o "tchan". Enquanto desconheciam suas respectivas ignorâncias sobre o termo, tudo bem. É como viver sem saber que se morre. Agora tinham uma preocupação a mais, um fardo para carregar. Uma pergunta para assombrá-los.

- Você não acha isso perturbador, Edgar?

- Eu? Não.

- Como não?

- Eu sei o que é o "tchan".

Como assim? O grupo fica confuso e ao mesmo tempo agitado. Se sabe o que é, porque não disse? E diga logo, poxa!

- São as nádegas - responde.

Barulhos de repreensão. Ainda com isso? A teoria das nádegas já tinha sido derrubada. Mas o Edgar balançava a cabeça, dizendo que não:

- Ninguém sabe o que é o "tchan". Vocês, qua ficaram a noite toda debatendo, não sabem. O autor da música não devia saber, quando compôs ela. Só achou o som da palavra legal, sei lá. Então o "tchan" é o que a gente quiser. E ninguém pode dizer que está errado, porque ninguém pode provar o contrário. Se não existe certo, então todos estamos certos. Certo?

O pessoal olhava impressionado para o Edgar. Que raciocínio impressionante! E eles achavam que ele nem estava tão ligado no problema. No final, a sua resposta era mesmo a certa.

Mas não tinha terminado. Pra finalizar, o Edgar bradiu o dedo para o grupo e ameaçou:

- E tem mais! Desde criança que eu acho que "tchan" é "bunda", cresci com a certeza de que "tchan" é "bunda", construí minha vida ao redor da certeza de que "tchan" é "bunda", e não vão ser vocês que vão dizer que eu estou errado!

E pelo resto da noite ficou quieto, mal-humorado. A discussão acabou. Duvidaram do Edgar, mas no fim, talvez ele fosse o mais correto.

Depois, o Dido diria que, no fundo, a explicação do Edgar era mais ou menos aquilo o que ele quis dizer com o lance da infinitude.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O casamento

Casamento, sei não. Hoje em dia não parece uma coisa muito sábia de se fazer. Não me tirem para antiromântico, mas é fato que 50% deles acaba em divórcio, às vezes antes de se pagar todos os gastos da cerimônia. O cara se divorcia e continua pagando o casamento. Que é uma coisa bonita, é preciso se dizer: a noiva de vestido, o noivo suando de nervoso no seu terno, os convidados suando de calor dentro da Igreja mal ventilada, as mulheres com a maquiagem derretendo, um espetáculo. O padre prega os valores esquecidos da sociedade cristã, o amor, a família, essas coisas, e congratula os noivos por estarem dispostos a trilharem seus caminhos juntos no seio de Deus, da união conjugal e das prestações divididas. Mas, uma coisa temos que combinar: reunião de familia é uma coisa que dá confusão. Imagine, então, reunir duas famílias inteiras no mesmo lugar. É fórmula certa para o desastre.



A noiva se atrasa duas horas para a cerimônia. Um tio chato cutuca uma parente que ele não tem intimidade e diz:
- Que demora hein? Essa Karina é uma noiva!
E desata a rir da própria piada. A parente nem mexe os lábios. Do outro lado da Igreja, o vovô, que caiu no sono, é acordado por uma das filhas.
- Pai, acorda! O senhor tá dormindo!
- HEIN? JÁ ACABOU?
- Psst! Fala baixo, papai! - surrura a filha. O vovô é meio surdo, e não tem noção do volume da voz.
Finalmente a noiva chega. Todos se poem de pé para recebê-la. O músico contratado toca no seu violino a marcha nupcial. Antes disso, dá play num aparelho de som, que toca a gravação dos outros instrumentos da orquestra em formato MIDI. A noiva olha para o seu pai, ao seu lado, sorri e começa a andar, confiante. Logo é puxada para trás, pois seu véu ficou preso na dobradiça da porta da Igreja. Ela tenta puxá-lo, nunca desistindo do sorriso. Não consegue desprendê-lo. A gravação da música está no final. No ensaio do casamento, ela deveria levar cinquenta segundos para chegar ao altar. Com pressa, ela joga o véu no chão e vai correndo até lá. Chega, sorri para o noivo, e nota que esqueceu o pai lá atrás. Este, meio perdido, caminha discretamente até o seu lugar.
O padre se prepara para falar. É gago:
- M-m-m-m-meus q-queridos a-amig-gos e m-minhas q-queridas a-a-a-amig-gas! - diz o padre - es-t-tam-mos aqui re-reunid-dos p-p-para celebra-brar a união d-destes dois jov-vens. E-eles esc-colheram comp-part-tilhar as suas vid-das, ab-braç-çando tod-da a s-sss-sua comp... c-comp... compl... c-c-complex-xi-xi...
Faz uma pausa.
- C-c-complexidades - completa.
O padrinho da noiva, o priminho de 12 anos, boceja. Olha para a madrinha que está ao seu lado, filha de uma amiga da noiva. Da sua idade. Bem bonitinha. Não sabe se conseguirá vê-la mais tarde na festa, então não dá pra perder tempo. Resolve usar a sua linha inicial padrão:
- Vens sempre aqui?
O padre continua seu discurso, lenta mas decididamente. De repente, um celular toca. Surpresa: é o do noivo. O padre para, sem saber o que fazer. Em anos realizando matrimônios, isso nunca acontecera antes. O noivo pega o celular, mais perdido que o padre: como foi esquecê-lo ligado? A noiva o olha com uma mistura de raiva, questionamento e incredulidade. Ela espia o visor do celular. Uma tal de Milene chamando. O noivo sente que todos estão aguardando alguma resolução sua em relação ao celular. Tendo que pensar sob pressão, não consegue raciocinar, e acaba fazendo a primeira coisa que lhe vem à cabeça: atende a ligação.
- Alô?
A noiva abre a boca numa exclamação muda. Às suas costas, o noivo ouve o burburinho dos convidados e percebe o erro que fez.
- Oi... não... não posso falar agora... não... se lembra que eu disse que era hoje... não. Tchau. - coloca o celular no bolso. Silêncio na Igreja, exceto pelo vovô, que aplaude entusiasticamente.
- Não papai... o que está fazendo? - sussura a sua filha, puxando os seus braço para que pare.
- HEIN? ELE NÃO DISSE "SIM"?
- Não! E pare de gritar!
- HEIN?!
O padre parece desconcertado com a confusão:
- P-p-puxa, onde f-foi q-que eu p-p-parei? - fica um tempo tentando se lembrar - bom, o j-jeito é c-começar tudo de nov-vo! Mm-meus q-queridos amig-gos e minhas q-queridas amig-gas!...
Suspiros generalizados de frustração na Igreja.
A noiva fala discretamente ao noivo, sem mexer os dentes:
- Que te deu na cabeça?
- Oi?
- Não vira pra mim. Continua olhando pro padre e fingindo que tá tudo bem.
- Sei lá. Tocou o telefone e eu atendi, oras. Instinto.
- Quem era? Fala baixo e continua sorrindo.
- Como quem era?
- Quem era, Marcos?
- Era um colega. Um colega do trabalho.
- Colega, é? Que não está na cerimônia?
- Não é um colega íntimo, tá? Pombas!
- Não vira pra mim! Age normalmente. E esse colega não sabia do seu casamento, não?
- Sei lá...
Todos assistem ao mesmo discurso monótono do padre pela segunda vez. Menos o priminho e a madrinha, que estão no seu próprio mundo.
- Pois é, as pessoas se impressionam quando eu digo que sou emancipado aos 15 anos, mas eu digo que é normal, qualquer pessoa que já morou sozinho em sete países como eu tem que ser...
- Nossa, Gabriel... você é o máximo!
Era a hora:
- Não. Você é o máximo, Carlinha. E muito linda.
- Aii... - a menina enrubesce.
- Quer ficar comigo?
A menina sorri. Responde com um beijo. Burburinho na Igreja. Olha lá, aqueles dois lá na frente estão se beijando! Em plena cerimônia!
- Esses adolescentes. É tudo motivo para se pegarem - reclama uma tia solteirona.
- É O QUÊ? QUEM FEZ O QUÊ?
- Não, pai! - sussurra rispidamente a filha do vovô - ela está falando do Gabriel, que está beijando a menina lá na frente!
- O... O GABRIEL?
- Fala baixo!
- DEIXA O GURI! ELE É NOVO, TEM MESMO QUE DAR UNS PEGAS NAS MENININHAS!
As fileiras da frente viram a cabeça para ver quem está gritando. A filha do vovô esconde a cara.
Chega a hora das alianças. Música incidental: o violinista começa a tocar algo que parece Wagner, a não ser por uma batida eletrônica sintetizada que sai da caixa de som. Quem entra com as alianças é Fifi, o cachorro pug da noiva, com os anéis em uma almofadinha amarrada em suas costas. Durante o ensaio, treinaram o Fifi para caminhar até o altar, mas hoje ele parecia não se lembrar de nada. Parou ao lado de um dos bancos e fez xixi na perna do vovô, que não notou, pois caíra no sono de novo.
Enquanto aguardava o cachorro, a noiva continuou sua conversa:
- Quem é a Milene?
- Como?!
- Eu vi no seu celular. Quem ligou foi a Milene. Quem é a Milene?
- Ah... sim... pois é... Milene é a minha colega de trabalho.
- Você disse um colega de trabalho. No masculino.
- Ah... sim, porque... porque às vezes eu me confundo sabe... porque a... a Milene... ela já foi ele, sabe?
- Como?
- É... faz parte da nova política do banco... essa coisa, sabe, de, de... contratar as minorias... transexuais, hispânicos, essas coisas... que calorão aqui, né?
- Você não espera que eu acredite nisso, né Marcos?
- Como não? Eu até já te falei dele... dela! Se lembra quando eu tava furioso porque um colega meu atrasou os relatórios do mês e fiquei chamando ele de bichinha? Você pensou que era desaforo, mas era literal, era a Milene! Psst! Chegaram as alianças!
- K-Karina! - começou o padre - v-você ac-c-ceita Mmm-Marcos como s-ss-sseu legí-gítimo espos-so, na ss-ssaúde ou na doenç-ça, na alegr-gria ou n-na tristeza, na pr-praia ou na ss-ssserra, torce-cendo para o Inter ou o Gr-Grêmio?
Ela olha para o noivo com um olhar que só ele percebe, e diz, com a expressão fechada:
- Sim.
O vovô solta um grito de comemoração.
- Calma, papai! Ainda falta ele dizer sim! - sussurra a filha.
- E vv-você, M-Marcos - continua o padre - vvv-você ace-ceita K-Karina c-c-como ss-ssua legít-tima espos-ss-sa, na ss-ssaúde ou n-na doenç-ça, na alegria o-ou n-na...
- Aceito, aceito - responde o Marcos, para salvar tempo.
Ele coloca a aliança no dedo dela e ela enfia-a com força no dedo dele, para machucá-lo.
- Ouch! Karina!
- Vai reclamar?
- Assim não dá! Nem começamos a nossa vida juntos e você já está assim? Será que eu já não provei que você é a única mulher da minha vida? Não estou aqui, neste momento, jurando na frente de nossa familías, o meu amor incondicional por você? Eu aceitei me casar porque eu te amo, e só a você. Ninguém mais. - ele pega nas mãos dela - Afinal, meu bem, casamento serve pra isso. Pra mostrar o nosso amor para o mundo. Para fazer votos de amor eterno. Eu quero viver o resto da minha vida contigo. Só contigo.
Ela ainda faz uma cara contrariada por uns segundo, como se avaliasse as palavras do noivo, mas por fim sorri.
- V-vocês pp-podem se beijar - avisa o padre.
O casal se beija, sob os aplausos dos presentes.
- Te amo, Marcos - diz ela.
- Te amo, Milene.
Muitas coisas acontecem na sequência. O músico contratado começa a tocar a marcha nupcial, enquanto Karina dá um safanão na cara de Márcio, e sai do altar em direção à saída. O casal de padrinhos mirins, no meio de um beijo intenso, derruba a caixa de som, acabando com a música e desmascarando o músico, que na verdade nem violino tocava. Este olha para todos surpreso, como se fosse pego nu. O vovô levanta de pé e aplaude, depois é puxado pela filha. Uma das madrinhas desmaia com o calor. Na ênfase para socorrê-la, empurram o noivo, que cai no chão. O cachorro pula em cima dele e suja seu terno. Que coisa, pensa o noivo. Devia ter seguido aquele primeiro instinto, aquele pensamento que veio logo após ver o custo total da cerimônia: casamento, só no cartório.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Ócio é negócio

Algo muito preocupante no mundo de hoje é a perda do ócio. As pessoas não têm mais tempo nem para perder tempo. Vivem todas ocupadas e correndo. Ah, como correm essas pessoas de hoje. Quem está sempre com pressa não tem tempo para pensar. E quem não pensa não cria. O ócio é produtivo. Acham que esta crônica nasceu do quê?
Dizem que Deus descansou no sétimo dia. Balela. Ele estava sem fazer nada desde o início da semana. Ninguém iria se propor a criar o Universo se não estivesse com muito tempo livre. Vai ver ele estava numa semana de folga, sem nada pra fazer, com a televisão pifada. Devemos o mundo ao ócio de Deus.

- Muito bem: haverão mares, e onde não houver mares haverá a terra, e montanhas, e eu acho que assim está bom.

Olha para a sua Criação por alguns minutos. Olha para o relógio. Suspira.

- Bom, acho que posso matar mais um tempinho criando Vida...

E fez as plantas, e os animais, e, num momento de maior divertimento, fez a girafa. E, na falta de um bom sitcom para ver na tevê, fez os homens e as mulheres e todos os seus problemas de relacionamento.

- Haha... esses hominídeos me matam.

- Deus - seu chefe bate na porta - Acabou a folga.

- Certo. Só deixa eu arrumar uns problemas aqui...

- Nada disso. Você já ficou uma semana aí brincando com essa merda. É hora do trabalho.

- Tá. Vou ter que deixar mal acabado, mesmo.



De tanto ir de lá pra cá, na famosa "correria", as pessoas só têm tempo de organizar seus pensamentos na hora do trânsito. E não digo só no trânsito de carro, mas trânsito de ações, qualquer espaço de tempo que envolva encaminhar-se para a próxima tarefa. Pode ser o tempo de esperar o ônibus, a sala de espera do dentista (alguém acha tempo para ir ao dentista?), a fila do cinema. Mas, ao invés de colocar a cabeça em ordem e aproveitar esses valiosos minutos de fazer nada, as pessoas ligam seus Ipods e botam os fones de ouvido. A música preenche o espaço dos pensamentos, mantém a cabeça ocupada, tira a necessidade de divagar. Divagar é importantíssimo. As grandes descobertas da Ciência nasceram da divagação, e esta, do ócio. Newton, ao descansar embaixo da macieira, estava matando tempo. Se não fosse o ócio de Newton, hoje desconheceríamos a gravidade e o cálculo. Não saberíamos como chegar à Lua, ou porque os seios caem com o passar dos anos. Mas hoje detemos esses importantíssimos conhecimentos, pois certo dia Newton estava viajando sem fazer nada embaixo de uma macieira. Se fosse hoje, ele estaria ouvindo um Ipod e nada disso teria acontecido.
O único período em que somos obrigados a realmente não fazer nada é na hora do banho. Lá não dá pra ler, como em outra atividade que pode ser feita no banheiro, e até dá para ouvir música, mas essa se mistura com o ruído da água e fica em segundo plano. E talvez seja por isso que as pessoas valorizam tanto a hora do banho. É o espaço de reencontro com o seu eu, de esvaziar a cabeça e reencontrar a unidade, ou qualquer dessas coisas que se lê em propagandas de yoga. Podem ver que até os mais ferrenhos ambientalistas não descartam um longo e demorado banho. Preferem compensar seu impacto sobre a natureza de outra forma, desde que não afete o ritual quase sacro de reservar aqueles preciosos minutos do dia pra ficar debaixo de um chuveiro.

Para quem acha que isso tudo é papo de vagabundo, eu quero dizer que o ócio ainda vai salvar o mundo. Sim, pois, com bilhões de pessoas no planeta e as indústrias e fábricas cada vez mais automatizadas, como garantir emprego para todo mundo? Redução da jornada de trabalho, oras! O trabalhador trabalha menos para que um outro possa também trabalhar, dividindo o serviço entre os dois. O salário iria ser menor, mas de que adianta grandes quantias de dinheiro se não temos tempo de gastá-las, não é mesmo? É meio difícil de implementar isso no Brasil, mas na Europa poderia dar certo. Na mesma linha, poderia-se criar o fim de semana de três dias. Sim, é mais justo trabalhar quatro dias e folgar três do que trabalhar cinco e descansar míseros dois. Conseguiria se resolver o problema do déficit de descanso e por tabela eliminar as odiáveis segundas-feiras. Que passariam a ser as terças, mas ninguém gosta das terças de qualquer jeito. Ô diazinho morto.

Uma empresa que já sacou que ócio é negócio é o Google. Ela disponibiliza uma sala de entretenimento para quem quiser tirar uns minutinhos de ócio durante o trabalho. Ócio, esse, que é obrigatório. Os funcionários são proibidos de trabalhar sem intervalos. O Google sabe que um empregado com mais tempo de folga é mais criativo, e trata-se da empresa mais bem sucedida da atualidade. Se eles fazem isso, é porque deve estar certo.

Pelo menos é isso o que eu vou dizer ao meu chefe se ele achar que eu ando ocioso no trabalho.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A menina e a mensagem

Nove da noite de uma sexta-feira. Local: Capão da Canoa. Sozinho na cidade, pois todo mundo está no Planeta Atlântida, eu perambulo pelas ruas, bolando um post novo para o blog. Encontro uma lan house que me cobra caros 4 reais por uma hora de escrita. Acomodo-me no computador com o melhor teclado (que já não é lá essas coisas) e ponho-me a escrever. Momentos depois entra uma menina, 17, 18 anos. Espera para ser atendida pela mulher da lan house. Paro para observá-la. Prende minha atenção primeiro pela sua aparência, mas depois por parecer prestes a desabar no choro, acusada pelos sinais de tremulação na sua garganta e um visível esforço para conter as lágrimas. Pede para usar um dos computadores e senta-se próxima a mim.
Ocorrem-me mil pensamentos em por quê ela deve estar triste, e o porquê de procurar um computador numa hora de debilidade emocional. Precisa ver alguma coisa. Talvez checar o e-mail para ver se chegou alguma mensagem. De um homem. Namorado, ou talvez alguém que ela esteja muito a fim? Bingo: a menina abre o seu hotmail e lê uma extensa mensagem, da qual eu estou muito distante para decifrar qualquer coisa. De súbito, a cara de choro se transforma: expõe os dentes para a tela, num sorriso que de quando em quando se alarga ao ler uma ou outra frase. Por uma vez chego a vê-la balançar a cabeça de um lado para o outro enquanto sorri. A mensagem foi boa. A julgar pela sua súbita mudança de humor, a resposta foi ao mesmo tempo boa e inesperada. O cara gosta dela. Talvez tenha havido algum mal entendido, mas o e-mail esclareceu tudo. Deve ser isso, pelo menos.
Ela entra no orkut e responde um scrap, ainda sorrindo. Depois abre mais um e-mail, dessa vez mais curto. Do mesmo cara? Clica para responder. Dessa vez fica mais séria. Leva a mão ao rosto, pensando no que vai escrever. Está prestes a fazer algo que não há volta. Sua resposta decidirá o seu futuro, decidirá... o que mesmo? Não sei, mas deve ser algo bem importante. Escreve frases, às vezes dando pausas, às vezes abrindo mais um sorriso. Fica com a expressão nervosa. Clica em enviar, e depois leva as duas mãos à boca e se remexe na cadeira. Enviou. Agora não tem mais volta. É tomada por um nervosismo, mas um nervosismo bom, de quem sabe que acabou de fazer uma escolha importante, sem volta, mas que está feliz com isso. Ela respondeu para o cara o que sentia. Suspira. Depois volta a ler a mensagem mais curta. Pego-a em determinado momento olhando para o nada, com o mesmo sorriso bobo no rosto, deliciando-se com o efeito das palavras que leu. Depois abre o MSN. Talvez para falar com as amigas sobre o que acabou de fazer.
Seu tempo acaba. Pagou apenas por meia-hora de uso, tempo mínimo. Queria só checar o e-mail, mesmo. Paga bem feliz, e vai embora. Ela está de costas, mas, pelos passos quase saltitantes, penso que está sorrindo. Minha curiosidade me corroi. Pensei por um momento em ir atrás dela e perguntar o que houve, por que estava triste e por que mudou de humor. Obviamente não o fiz: o que ela iria responder para um estranho como eu? Possivelmente nada.
Mas se encontrá-la na rua, não me conterei. Ah, não. Me explicarei do jeito menos estranho possível e cruzarei os dedos para ela entender a minha necessidade voyeurística. Caso isso aconteça, não poderei contar aqui o que houve, pois o meu tempo está acabando. Em breve devo sair da lan house. No fim, nem consegui escrever o texto que pensei originalmente. Mas suspeito que pagarei os 4 reais com muito mais prazer do que se o tivesse escrito.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Um homem extraordinário

Fórum Social Mundial, quinto dia. Fim de tarde, procuro alguma palestra para assistir antes de dar o trabalho por encerrado e me encaminhar ao show na prainha do Gasômetro. Acho um painel quase vazio, com uns cinco palestrantes falando para menos de dez pessoas. Resolvo dar uma força. Sento ao lado de um homem, aparentemente um trabalhador simples, provavelmente de algum sindicato, para assistir.
- Sobre o que é o painel? - pergunto a ele.
- Eles estão falando sobre o orçamento participativo - me responde o homem. - é o melhor painel que eu vi nesse fórum, é uma pena que não tenha mais gente.
O homem assiste compenetrado, mas visivelmente ansioso.
- Se eu tivesse uma caneta para anotar essas coisas... - me fala.
Pouco depois, senta-se perto de nós uma mulher. O homem continua atento ao discurso dos palestrantes, e me compadeço de sua necessidade de anotar o que estava sendo dito. Peço para a mulher uma caneta emprestada e, após, pergunto se posso dividi-la com o homem. Este fica muito empolgado com a possibilidade de fazer as suas anotações. Aberta a possibilidade de diálogo comigo, a mulher aponta para um dos palestrantes e me pergunta:
- Esse é quem eu estou pensando?
Era Cézar Busatto, ex-deputado. Confirmo seu nome e a mulher fala, com indignação na voz:
- E o que ele está fazendo aqui?
Não conheço muito do Busatto, mas sei que ele não é exatamente alinhado com a posição ideológica do Fórum. Mas não era a primeira vez que o achava num lugar onde estava aparentemente deslocado. Vi-o no Festival de Publicidade de Gramado ano passado. Na ocasião, ele conduziu um painel sobre o uso da internet na campanha de Obama, onde entrevistou via videoconferência uma americana que participara da campanha do presidente. Não tinha feito um bom papel. Seu inglês era pobre, e não raro traduzia a pergunta de um dos integrantes da mesa de debate de forma errônea para a americana. Tive que sair no meio da entrevista, por vergonha alheia. Do lado de fora, havia uma banquinha vendendo um livro do Busatto sobre sua participação como voluntário na campanha do Obama. Muito conveniente, pensei.
Corta de volta para o Fórum. O próprio Busatto, na sua vez de discursar, diz que algumas pessoas poderiam estranhar sua presença, antes de falar acaloradamente sobre o orçamento participativo. No começo, o homem ao meu lado parece gostar do discurso. Depois, muda de opinião.
- Vê como ele fica brandindo o dedo enquanto fala? Pra quê fazer isso? É uma postura agressiva. É como se fosse um chicote que ele sacode contra a gente.
Ele também percebeu que o Busatto não tem nada a ver com o orçamento participativo, que está lá meio que "de penetra". Percepção notável, que ficou mais notável ainda quando descobri que o homem vinha de Uberlândia e desconhecia totalmente o ex-deputado. Possuía um senso aguçado para ler as pessoas. Comenta comigo os palestrantes como quem assiste a personagens de novela:
- Essa mulher aí é boa. Ela fala com sinceridade e parece realmente preocupada com o orçamento participativo. Aliás, reparou que o professor que está conduzindo o painel não mencionou nada sobre abri-lo para perguntas? Acho que ele não quer que o povo se manifeste. Olha, aquele ali notou, olha como ele fica lembrando o professor de que haverá uma rodada de perguntas, mas o professor não menciona nada. A propósito, você não vai querer usar a caneta?
- Não, não. - respondi - na verdade, peguei mais para o senhor usar do que pra mim.
O homem sorri e me dá um tapinha amigável nas costas. Olho para o papel dele e noto que há um diagrama ao invés de frases. Estranho. O mistério é solucionado pouco depois. O homem inclina-se para a minha direção e começa uma longa explicação.
- Deixa eu te mostrar umas coisas que eu estava pensando - e aponta para o diagrama. - Nós temos quatro problemas na formação do nosso pensamento. O primeiro deles é a educação, a escola. A escola nos ensina que os habitantes das Américas eram os índios. Eram nada. Índio é quem vem da Índia. Quando Cabral chegou aqui (acho que nesse ponto ele quis dizer Colombo) ele achou que tinha chegado nas Índias e chamou a população de índio. Esse erro é até hoje ensinado nas salas de aula. Assim como o poder. Quem governa o Brasil?
- O presidente? - Tentei. Ele faz uma negativa, sorrindo.
- Não. O povo. O presidente é apenas um representante do povo. Ele está lá para nós. Ele não tem poder. Quem tem poder é o povo. E a escola ensina que quem tem poder é o governo.
E passa para o próximo item:
- Outro problema é a mídia e como ela apresenta as informações. Por exemplo, quando o jornal diz que todos os americanos votaram na eleição dos Estados Unidos. Mentira. Eu não votei. Eu sou americano, não sou? Nasci nas Américas. Não é só estadounidense que é americano, mas é isso o que a mídia passa. E se a mídia passa isso, como se vai convencer o povo do contrário?
Assenti. Ele segue em frente:
- Agora, o terceiro problema é o da Igreja. Esse é o mais enraizado, e o mais difícil de resolver. Pois as pessoas dizem que Jesus Cristo é o Senhor. Senhor de quê? De escravos. De nós. Mas o próprio Jesus diz: "Senhor é o meu Pai". Ele não é nosso Senhor, tanto que ele diz na Bíblia que veio à Terra para "servir e ser servido". Quem serve é o escravo, e quem é servido é o senhor. Ele não é servo nem mestre, é igual a nós. Mas as pessoas insistem em chamá-lo de Senhor!
Faltava o último item:
- Nessa coisa de relações de poder, que eu discuti no primeiro item, entra a discussão do governar. Tem político que diz que governa "para o povo". Isso está errado. O certo é governar "com o povo", pois o povo é quem o elegeu, e o povo é quem tem o poder. Quem gostava de governar "para o povo" eram os militares. Agora, existe um outro tipo de governo, que é o governo "do povo", onde o povo entra diretamente no ato de governar. Portanto, temos o governo "do povo", "com o povo" e "para o povo", todos diferentes entre si, mas as pessoas acham que é a mesma coisa.
Concordo:
- É um bom ponto.
- Bom sai de sua boca. - responde ele, tão rapidamente que eu achei que ele tinha se ofendido com o meu comentário e estava retrucando. Então explica-se: - você achou o que eu disse bom, mas você diz que é bom, porque o bom saiu de você. Se você não fosse bom, o bom não sairia de sua boca.
Aquela explicação me desarma. Não sei o que dizer em resposta. O homem parece ficar sem graça. Sorri e se explica:
- Não repare em mim não. Eu sou muito assim de pegar as palavras e buscar de onde elas saíram. Faço muito isso.
Jogo de palavras não é algo que se espera de um trabalhador simples sabe-se lá de onde. Penso estar diante de um homem extraordinário, uma daquelas figuras que se encontra uma vez na vida. Voltamos a observar os palestrantes. O homem está preocupado, pois quer ler a sua tese quando abrirem espaço para perguntas. Mas o condutor do debate não parece mencionar que há tal espaço no debate. Penso que seu discurso têm pouco a ver com o assunto "orçamento participativo", mas fico quieto.
Enfim, o povo é convidado a se manifestar. Meu amigo é o primeiro: sai de seu lugar, vai até a frente e pega o microfone. Apresenta-se, dizendo que trabalhava num projeto de reciclagem em Uberlândia, elogia o painel e, de algum jeito, liga o assunto com as suas teses. Pergunta antes de quanto tempo dispõe, e o professor diz, sorrindo, que ele pode falar por 5 minutos. O homem poe-se a discorrer sobre sua tese. O sorriso no rosto do professor some. Não era aquilo que esperava que falassem quando abrisse o debate ao público. O homem fala com pressa, para economizar tempo, mas tropeça em algumas palavras. O professor diz que o tempo do homem acabou antes de se passar 5 minutos. O homem agradeceu e volta ao seu lugar.
- Que droga, acho que gritei muito. - disse-me - Não queria falar alto, mas a gente se empolga, né?
Apesar de fora do contexto, o discurso do homem repercute entre o público: outros dois membros da plateia que tambem ganham a palavra citam, admirados, o raciocínio do meu amigo e contextualizam-no no tema. Resolvo que é hora de ir embora. Queria dar uma olhada no show. Despeço-me de meu novo amigo, e este me agradece pela caneta.
- Não foi nada - respondo.
- Foi sim. Você viu que eu precisava de uma caneta e me ajudou a conseguir. Podia não fazer nada, mas optou por me ajudar. São pessoas assim que libertam os outros da ignorância.
E me sorri um sorriso genuíno. Certamente, era um homem extraordinário.