sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O tio chato

É universal: todo mundo tem um tio gordo, careca, beberrão, que depois dos churrascos de domingo dorme no sofá da sua sala e, sempre que o vê, faz a fatídica pergunta:
- E as menininhas?
Ah, ele sempre quer saber das menininhas. O seu tio não dorme sem antes saber das menininhas. Ele poderia puxar assunto sobre tudo: política, economia, cinema europeu. Mas não. Ele é um tio descolado. Ele quer provar que é legal. Ele quer saber é das menininhas.
- E aí? E as menininhas?
Talvez o tio pense que precise conversar sobre coisas que você se constrange de falar com seu pai. Por algum motivo, que só é compreensível para o seu tio, é menos embaraçoso você falar sobre isso com ele. O que não faz sentido, porque numa regra geral os tios que fazem esse tipo de pergunta são os que você tem menos intimidade. Talvez esse seja o jeito que o tio chato vê de se aproximar de você, o sobrinho. Só que o que você menos quer é bater papo com alguém da família sobre sua vida sexual. Ou a falta dela.
- E aí? Como é que andam as menininhas?
- É, pois é...
E o que mais ele espera de resposta? Um "pois é" é muitas vezes usado para cortar o assunto sem ser grosso, e, falando francamente, não há muito mais opções para responder a esse tipo de pergunta. Físicos e estudiosos já pesquisaram respostas melhores, mas, por mais capenga que seja, a melhor solução encontrada ainda é o "pois é". Um "pois é" com um sorriso sem graça, e torça para que o assunto morra logo.
Mas não. O verdadeiro tio chato não desiste fácil. Ele vai tentar emendar com uma pergunta mais direta, mais incisiva.
- Pois é, tio...
- Tá se dando bem com as menininhas ou não?
No que se segue uma risada divertida porém debochada do tio. Você ri junto, enquanto imagina como seria bom se uma fuinha selvagem aparecesse agora mesmo, nesse instante, e pulasse na cara do seu tio. Você tem vontade de fazer exatamente o que a fuinha faria. O tio termina de se deliciar com a risada, e fica olhando pra você, ainda sorrindo, esperando uma resposta.
-E aí?
Se você está feliz com o seu desempenho atual com as "menininhas", então você pode contar para o seu tio, sem problemas. Mas você não estará. Não, não, pois a lei física que rege a pergunta das menininhas diz que o seu tio só a perguntará para você quando você não estiver se dando bem com as menininhas. Você, na sua passagem da infância para a adolescência, quando existe a vontade mas não há condescência do sexo oposto, ouvirá muitas vezes a pergunta do tio chato. Quando você abandonar essa fase e virar um garanhão, o seu tio nunca mais vai perguntá-lo sobre as menininhas. Caso você cresça e continue um merda, a pergunta o seguirá até a morte. De um ou do outro.
Neste caso só há uma opção: mentir.
- Ah, vão bem, vão bem.
- Arrá, rapaz. E são muitas?
- Ô. Uma atrás da outra.
Pode ser mais categórico:
- Estou muitíssimo satisfeito com o meu desempenho com as ditas "menininhas". Obrigado por perguntar.
Ou desistir de vez e ser sincero:
-Não tio. Não pego ninguém. Na verdade, sou um repelente de mulheres. Se eu fosse um imã, a minha polaridade seria inversa a da delas. Eu permanentemente as afasto da minha volta. Ultimamente, então, estou numa fase em que não pego nem resfriado. É sério, neste inverno todo mundo lá em casa pegou, mas eu não. Nem os vírus me querem. Sinto muito.
Se você responder assim o seu tio certamente nunca mais fará semelhante pergunta. Mas se ele continuar, não há opção a não ser pular na cara dele como uma fuinha selvagem.

***

Recentemente estávamos falando sobre esse tópico no programa Congestão, e fiquei feliz quando soube, pela minha amiga Marcella, que as mulheres possuem uma versão feminina do tio chato. Bom, não exatamente feliz, mas senti que o peso diminuiu ao saber que este fardo é compartilhado com o sexo feminino. Só que no caso delas pode ser a avó, e não a tia. E a pergunta é mais agressiva:
- E os namoradinhos, netinha?
Só que a pergunta é feita não de modo descontraído, tipo "e os namoradinhos, rárá", mas com um tom inquisidor. E os namoradinhos? Onde estão os namoradinhos? Por que eu nunca vejo você com um homem? E às vezes a pergunta é seguida de uma afirmação, quase que uma ameaça:
- Ah, se eu fosse você eu ia atrás de algum homem...
- Ah, sim, vó, pode deixar, hoje eu vou pra festa e vou dar para o primeiro que aparecer. Quer saber, para o segundo também. E pra mais quem quiser. Inclusive, vou chegar já anunciando: "dou pra quem quiser". Vai encher de homem em volta. Aí eu compenso todas as vezes que eu te decepcionei. Tá bom pra senhora? Não é isso o que a senhora quer?
Às vezes um pouquinho de ironia também é bom.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Classe B

A Classe B se vê ameaçada. Seu espaço está sendo ocupado pela Classe C, que cresce desenfreadamente. A Classe C está tomando coisas que antes eram exclusividade da Classe B e A: máquina digital, computador, DVD player. O celular já foi perdido há tempos. A Classe B não gosta de dividir com a Classe C. A Classe C é chinela. A Classe C não tem cultura. A Classe C contamina os setores que antes eram um ponto de segurança da Classe B.
Um exemplo é a internet. A Classe B considera a inclusão digital a pior ideia da história. Antes, a Classe B era obrigada a se misturar com a Classe C durante o dia-a-dia, mas pelo menos o reduto virtual era exclusivo para os mais abonados. Agora, com surtos de lan houses nas vilas e computadores com acesso a internet com preços, bem, acessiveis, a Classe B tem que suportar milhares de perfis da Classe C poluindo o Orkut. E a Classe B não gosta de suportar. Ela já tem que suportar não ser Classe A, e agora ainda tem que suportar a Classe C, invadindo o seu espaço. A Classe B jura que, da próxima vez que ver um perfil no Orkut de alguém com o nome terminado com "son", ela vai se dar um tiro. Estejam avisados.

***

Esse ódio vem muito de uma crise de identidade: se a Classe C está virando a Classe B, e a Classe B não está virando a Classe A, então o que ela vai ser? A Classe B se considera a Classe A com menos dinheiro. Com o seu espaço tomado pela Classe C, ela naturalmente vai procurar por espaços onde a Classe C não possa entrar. Só que a Classe B não tem dinheiro para entrar nestes espaços. Estes espaços pertencem à Classe A, que assiste ao dilema da amiga de cima de sua cobertura, com um sorrisinho e uma taça de champagne na mão. Então aí está o problema: a Classe B quer sair do mundo Classe C e viver no mundo Classe A, mas não possui dinheiro. Então ela tem duas opções: ou se resigna a viver com a Classe C ou segue enganando até onde puder.

- E aí, Bê! Vamos na nova casa de festas que abriu ontem?
- Vamos! Quanto é a entrada?
- Só 20 contos.
- Irc! Quer dizer, não sei. Talvez a gente pudesse ir em outro lugar. Ouvi dizer que lá não é muito legal...
- Se entrar antes da meia-noite sai por 15.
- Argh... tá, tá bem. Só que eu não vou gastar em bebida. Sabe como é, estou tomando um remédio lá, não dá pra ingerir álcool junto...
- Ah, ok.
- E olha só, não rola uma carona? Eu até iria de táxi, na boa, mas sabe como é, eu tenho ouvido essas histórias sobre estupradores, podem ser qualquer um... vai saber, né.
- Ah, sim.
- Melhor não arriscar.

domingo, 25 de outubro de 2009

O jardim

Lembro da minha infância querida, correndo no jardim de casa com os meus amigos. Sentia o vento no rosto, a grama no chão e o cheiro das plantas. As plantas têm perfume: não só as flores, mas também as árvores, as folhagens. Era tudo uma profusão de cores e cheiros, uma sinestesia de sensações. Era livre, e, acima de tudo, era feliz. Era muito fácil ser feliz, então: não precisava mais do que o canto dos pássaros para me fazer sorrir.
Na primavera de meus cinco anos, tive meu primeiro ataque de rinite crônica. Problema comum, mas o meu era pior que o normal. Vocês devem imaginar o que foi para mim passar uma estação inteira sem sentir os perfumes que antes me faziam tão feliz. Correr e pular e brincar com meus amigos não tinha mais a mesma graça, era uma experiência incompleta. No mesmo ano, ganhei um violão de meu pai. Arranhar suas cordas me dirvertia, gostava da sensação de sentir o ressoar das cordas soltas na caixa do instrumento, apesar de, em tão jovem idade, não saber tocar nada. Mas não precisava de mais do que isso. Só a sensação de sentir-me dono daquele som me fazia rei, de poder eu brincar com as notas, mesmo fazendo algo que não poderia ser chamado de música. O violão, naquela época, era literalmente um brinquedo meu.
Aos sete anos descobri a música clássica. Chopin, Mozart, Bach, Tchaikovsky. Quanto mais eu descobria, mais me interessava. Comecei a encarar a música a sério. Depois de um tempo, só ouvir não me satisfazia: sentia o ímpeto de eu mesmo gerar aquela música. Peguei meu violão e decidi aprender a tocá-lo de verdade. Com a ajuda de um professor, treinava todos os dias. Castigava meus dedos, mas gostava. Para cada calo, para cada bolha, sentia-me mais feliz, mais experiente. Estes foram os momentos que, mais tarde, levariam a tornar-me músico clássico.
Minha rinite piorou. Agora ela durava mais da metade do ano. Os médicos disseram que a situação iria continuar ruim até os meus 11, 12 anos. A partir daí, iria melhorar. Para amenizar, os meus pais tentaram medicação homeopática. Não funcionou. Enquanto isso, continuava tocando o meu violão. Entrei para a orquestra da escola. Era o mais jovem dos músicos, mas um dos melhores. Meus professores viram o meu talento e encorajaram que eu seguisse carreira. Foi o que eu fiz.
Terminei o segundo grau sem ter me curado da rinite. Mudei-me para a capital e ingressei na faculdade de Música. Adorava aquela atmosfera. Por todo o lado respirava-se música. Tocava os clássicos durante o dia e à noite escrevia secretamente minhas próprias composições. Queria reproduzir a sensação que eu tinha ao ouvir o canto dos pássaros em minha infância. Aquilo era a verdadeira música: sem escala, sem métrica, mas emociona a quem ouve. Meus mestres me tinham em grande estima. Terminei o curso já indicado para tocar em uma grande orquestra. Apesar de estar junto com grandes talentos, esforcei-me para me destacar, e tive sucesso. O meu sucesso causou ciúmes em muitos músicos. Havia muita competição, muita gente querendo passar por cima dos outros. Eu estava muito cedo ocupando um lugar de prestígio. Não era olhado com bons olhos. Meus veteranos me esnobavam. Meus comtemporâneos queriam o meu lugar. Antigamente era mais fácil fazer amigos. Isso me incomodava.
Por volta dessa época comecei a perder a visão. Começou aos poucos, como apenas um desfoque. Imaginei que uns óculos curassem esse problema, mas, por me dedicar integralmente à música, nunca achava tempo para ir a um oculista. Depois de uns três anos a situação se tornou insustentável, e tive que me consultar. A resposta me atingiu violentamente. Eu ia ficar cego. Não havia nada a ser feito. Segundo o médico, eu ainda tinha algum tempo de visão, anos, talvez uns dez. Por ensaiar muito tempo, conseguia decorar as partituras, o que fez com que a minha pouca visão não fosse problema. Conseguia enganar, e, enfim, ainda tinha a minha música, o que me servia de consolo.
Por todo esse tempo a minha rinite não se curou. Tentei alguns remédios errados, que acabaram me prejudicando mais ainda, viciando meu septo nasal. Agora, eles fechavam completamente caso eu não usasse os remédios todos os dias. Fiz uma cirurgia para corrigir o septo, e por algum tempo pareceu ter funcionado. A mucosa acabou crescendo de volta, e fiquei tão ruim quanto antes. Nos piores dias eu não conseguia sentir nem o gosto da comida. Imagine ter o nariz bloqueado todos os dias de sua vida. Era uma sensação parecida com a que eu sentia.
Minha visão acabou durando mais do que o imaginado. Antes de perdê-la de vez, resolvi voltar para a casa onde eu passei a minha infância. Precisava recuperar as lembranças. Fui ao meu jardim e vi a árvore que eu escalava. Ela estava relativamente menor agora, para a minha percepção de adulto, mas ainda era imponente. Se já não tivesse passado da idade, me encorajaria a subi-la mais uma vez. Não consegui sentir o perfume das plantas. Passei a mão pela grama, mas minhas mãos calejadas de décadas de música já não tinham a mesma sensibilidade de antes.
Um dia, finalmente aconteceu: acordei sem ver nada. Tudo escuro. Me mantive calmo. Já estava esperando este momento há anos. Não tive medo. Quando souberam, anos atrás, que eventualmente perderia a visão, fui convidado a participar de uma famosa orquestra de cegos que se apresentava nas maiores cidades do mundo. Não respondi o convite, pois mesmo quase cego ainda conseguia acompanhar a orquestra em que trabalhava como nenhum outro, mas nessa manhã senti que era hora de uma mudança. Estava na hora de começar uma outra fase de minha vida. Aceitei o convite. Desde pequeno sonhava em viajar pelo mundo, conhecer Nova York, Paris, Lisboa, e agora finalmente poderia fazê-lo. O fiz e não conheci nada. Apenas ficava lá, preso no meu canto escuro, acompanhando a música com minhas mãos já velhas. E assim passei os anos, pensando se algum dia veria ou sentiria alguma coisa. Tinha saudade de viver. A única coisa que ainda me prendia ao mundo era a música. E com a música vivi por mais vários anos.
Então, algo que eu esperava aconteceu. Algo que eu temia há muito tempo, inconscientemente, desde que eu era um garoto que ficava deitado no sofá ouvindo Tchaikovsky, mas que tomei consciência com a chegada da minha velhice, e aguardava ansiosamente. Fiquei surdo. Sem luz, sem tato, sem música. Então já estava no final da minha vida. De algum jeito, sabia que isso iria acontecer. Seria estranho se não acontecesse. E, falando francamente, fiquei feliz que aconteceu. Em júbilo. Não tinha mais nenhum vínculo com o mundo. Agora era só eu, sem sentir nada, sem nada para me dizer o que era o mundo real. Agora, quem dizia o que era o mundo real era eu. E eu dizia que ele tinha cheiro de grama. Eu dizia que ele tinha cantos de pássaro. Eu dizia que ele era muito verde, e também muito azul, muito claro e muito brilhante. E que eu, obviamente, era jovem para aproveitar tudo isso. Desde meus cinco anos, nunca fui tão feliz.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sketchs

O Márcio não gostava de morenas.
- Como assim, você não gosta de morenas?
- Não gosto, pronto.
- Mas por morenas você diz...
- Mulheres de cabelo escuro. Morenas. Não gosto.
- Mas todo mundo gosta de morenas!
- Todo mundo não. Eu não gosto!
Eliminando-se as morenas, sobravam as loiras e as ruivas. Mas as morenas são maioria no mundo. Descartando-se as morenas, estaria se reduzindo em muito as possibilidades em termos de mulher. Mas não era nem esse o caso: o problema é que todo mundo gosta de morenas. Tem homem que não gosta de mulher alta, de mulher baixa, de mulher magra ou gorda, mas não gostar de morenas, como assim? Não gostar de morenas é não gostar de mulher. E não era nem questão de preferência:
- Saquei. Tu é daqueles que preferem as loiras.
- Não. Eu só não gosto de morenas. Acho feio, mulher de cabelo escuro.
- Mas, sei lá, se uma morenaça se atirasse no seu colo...
- Eu diria "com licença" e tirava ela de lá. De morena eu não gosto.
Depois de muito insistirem, conseguiram que o Márcio confessasse: seu ódio por morenas não vinha de nascença. Ele veio de um relacionamento que teve com uma namorada antiga. Morena.
- Ela me machucou mesmo, sabem - disse o Márcio, emocionado. - Nunca me recuperei. Agora vejo ela em todas as morenas que eu encontro. Isso me deixa mal.
Mas, ao invés da compreensão que esperava, o Márcio virou chacota para os amigos. Que passaram a folgá-lo sempre:
- Márcio, levei um fora de uma mina com dois braços. Agora só fico com manetas.
- Sei, sei.
- E a minha ex-namorada, que tinha cabelo? Sabe como é difícil pra mim achar uma mulher careca?
- Não enche.
- Além disso, ela tinha uma arcada dentária completa! Completa! Eu olho para todos os lados e vejo essas mulheres, com seus cabelos e suas dentições regulares, e me sinto tão oprimido...
- Ai, ai...

***

O menino chegou na menina na festa.
- Olha só, posso falar contigo?
- Eu? - disse a menina, dando um risinho.
- É, você mesmo. Eu estava te olhando faz tempo, sabe?
- Hihi, é mesmo?
- É. Sabe, a gente está sempre à procura de uma pessoa legal, de alguém que nos entenda... e sei lá, eu vi você, e achei que você era essa pessoa.
- É sério? Hihihi.
- Então, eu pensei em vir aqui falar contigo, mas não tinha coragem... mas aí eu pensei "ora, se ela é tão legal assim como parece, ela vai me entender, ela não vai dizer não...".
- Dizer não pra quê?
- Quer saber mesmo?
- Ah, eu quero!
- É que eu quero te pedir uma coisa...
A menina passa as mãos no cabelo.
- Ai, fala logo, fala!
O menino se aproxima dela. Põe os lábios perto de seu ouvido. Fala bem baixinho:
- Me empresta dois reais?
- Hein?!
- É só o que falta pra eu poder comprar uma cerveja. Tô meio sem dinheiro.
- Tá falando sério?
- Eu sei, é meio chato pedir dinheiro pra quem não se conhece, mas tô sem ninguém pra pedir e achei que você entenderia. Tô precisando mesmo, sabe?
- Ahn...
- Eu só vim pedir pra você porque você parecia bem legal. E aí, acertei?
- Ahn... peraí, não sei se tenho... vou dar uma olhada...
Ela procura freneticamente na bolsa por dois reais.
- Ahn... acho que não tenho... não tô achando.
- Não tem, então?
- Não, não achei. Desculpa, tá?
- Que é isso. Não faz mal.
- Tá, mas era só isso?
- Sim. Mas valeu de qualquer jeito. Agora com licença, vou voltar pra minha mina. Tchau.
- Ahn, tchau.

***

Luiz Fábio é um homem normal. 32 anos, classe média-alta, casado com dona Lurdes Maria, 30 anos, excelente dona de casa. Mora num condomínio decente, paga as suas contas em dia, gosta de cochilar ao sol e ler jornal de manhã. Tudo muito normal. A única coisa atípica da vida de Luiz Fábio é que ele tem que dividir o corpo com sua outra personalidade, um aborígene chamado Dingaal.
- É um problema como qualquer outro. Alguns sofrem de rinite, outros de esquizofrenia aguda - explica Luis Fábio.
O problema começou na passagem da infância para a adolescência. Ele conta que a primeira vez que virou Dingaal foi numa festinha da oitava série.
- Os meninos estavam tirando as meninas pra dançar. Fiquei muito nervoso. Aí ele tomou o meu lugar.
Dingaal se adonou do corpo de Luis Fábio e tentou seduzir as meninas com danças tribais.
- O pessoal achou muito engraçado. Pensaram que eu estava bêbado, o que não fazia sentido, porque na festa só tinha Coca-Cola - explica. Na mesma festa, acabou beijando uma menina pela primeira vez. De início ficou furioso, pois quem a beijou na verdade não havia sido ele - e quer algo mais decepcionante do que ficar de fora do seu próprio primeiro beijo? Mas aos poucos acabou cativado pelo seu alterego, a quem chama carinhosamente de "Didi".
Mas tentar viver em sociedade sendo parcialmente um aborígene não requer um certo esforço? Luis Fábio se prepara para responder, mas então seus olhos se esbugalham, levanta de seu sofá e começa a pular ensandecidamente, balbuciando palavras em uma língua desconhecida. Depois, para, se acalma e senta de novo.
- Me desculpem, foi o Didi. - explica ele. - Ele é assim: fica louco na frente de estranhos. Acho que é o jeito dele de demonstrar nervosismo. Imagino que seja um aborígene meio sociofóbico, bem diferente de mim, que sou comunicativo. Mas ele nunca quis conversar sobre isso comigo.
Respondendo à pergunta anterior, Luis Fábio diz que é difícil, mas só porque há muito preconceito por Dingaal ser um aborígene.
- As pessoas pensam que só porque ele vem de uma cultura diferente não pode conviver dentro da nossa sociedade. Isso é muito triste. Didi entende as regras da nossa sociedade, e as respeita. Se bem que, verdade seja dita, ele ainda caça carros de vez em quando. Já tive que pagar vários reparos por causa dele. Ah, esse Didi me racha.
E quanto à vida sexual de um esquizofrênico? Neste ponto, Luis Fábio nos corta:
- A Lurdes Maria é minha mulher. E ai de ele se meter.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A nossa governadora

Deve se admitir que a nossa governadora tem bom gosto. Aquele pufe da Tok&Stok comprado com dinheiro público é o máximo em conforto e design. Eu sei porque eu o vi uma vez em que fui à loja. Não resisti e experimentei. Muito confortável. Não dava vontade de levantar. Só não comprei porque era caro. Não ia gastar o meu dinheiro naquilo. A governadora não se sentiu tão acanhada: gastou o meu dinheiro e comprou o pufe pra ela.
Bom, o pufe não ia ficar tão bem na casa sem alguns móveis para combinar. Não que isso tenha sido um problema: a Excelentíssima tratou de comprar alguns armários e um sofá-cama para ajeitar a residência. Sabem como é, tudo pelo feng-shuy: não se pode deixar a casa mal-arrumada, bloqueia o fluxo de energias. E não se pode bloquear o fluxo de energias num lugar onde são tomadas decisões que afetam todo o estado. As consequências poderiam ser desastrosas. Viram só? As compras foram bens necessários para o exercício do mandato. Tudo se justifica no final.
E que maravilha de pessoa, a nossa governadora, que aproveitou a sessão de compras para mobiliar também o quarto dos netos! Ah, que mimo, a nossa governadora ama os netinhos. É claro, as crianças são o futuro. Tudo de melhor para elas. Elas merecem. E quais crianças são melhores para receber investimento de verba pública senão as da própria família da nossa governadora? Quem sabe, depois pode sobrar um pouco para as crianças carentes, também. Mas isso se vê depois de comprar os móveis. Tudo a seu tempo.
Como se vê, tudo na história das compras é justificado. Agora, quanto ao processo de improbidade administrativa eu não sei bem. A comissão do impeachment quer arquivar o processo. Ufa, que bom. Deve ser porque a nossa governadora é inocente. Que susto, toda aquela campanha do Fora Yeda, todos aqueles outdoors com a cara da nossa governadora e escrito ao lado que era a face da corrupção, fazia a gente até pensar que ela era culpada de alguma coisa mesmo. Ainda bem que ficou tudo esclarecido. Quer dizer, não sei, pra mim não ficou. Mas para a comissão ter tomado essa decisão, eles devem saber mais do que eu. Vai ver eu é que sou burro e não entendi.
Outra coisa que eu não entendi é por que quem decide o impeachment não é um órgão da Justiça. Pode ser viagem minha, mas se a nossa governadora está sendo acusada de um crime (da qual foi provada inocente, senão não estariam arquivando o processo), ela não teria que ser julgada por um tribunal como qualquer pessoa normal? Eu não consigo entender porque esse julgamento cabe aos políticos e não à Justiça. Acima disso, não consigo entender por que essa decisão cabe aos políticos aliados da nossa governadora. Para os meus olhos de leigo, parece improvável que ela seja declarada culpada por um tribunal formado por seus aliados. Devo ter perdido parte da explicação. Que chato, não entender de política. A gente tenta acompanhar, mas fica confuso. Ainda bem que tudo foi esclarecido, no final. A nossa governadora é inocente, foi tudo uma confusão! Uma confusão que eu não entendi, mas azar, agora já passou.
A única coisa que eu fiquei brabo é de que eu não pude ser consultado sobre as compras da governadora. Ora, o dinheiro é meu também, os móveis são propriedade do estado. Pelo menos deixa eu ajudar a escolher! Verde kiwi é legal, mas eu queria ter dado uma olhada nas outras cores de pufe que a loja oferecia. Bom, pelo menos a única coisa que estão me privando é de escolher a cor da mobília. De resto, o povo ainda tem o poder. Ainda bem.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O macho-alfa ou "A teoria do idiota"

Que diabos, crio um blog que ganha um ou outro comentário durante os seus quatro meses de vida, trabalho com amor e afeto em crônicas que tento fazer o mais agradáveis possíveis de ler, aí um belo dia resolvo chutar o pau da barraca e ganho 6 comments em dois dias. É verdade, polêmica vende. Estou falando, é claro, do último post, "O Círculo da Amizade", que aparentemente despertou opiniões inflamadas de ambos os lados, masculino e feminino, e inclusive de uma certa "guria chata". Se o post serviu para alguma coisa, foi para incentivar alguém a começar um blog e escrever suas opiniões. Considero já isso um lucro.
Pensei em postar mais um sketch hoje, mas vou aproveitar que o assunto "relacionamentos" está quente e trabalhar algo em cima disso.

***

Vocês já devem ter visto a cena.
- Olha lá, aquele cara, escroto, nojento, feio, gordo...
- Calma! Pra quê tanto ódio?
- Pra quê? Já viu a gostosa que está com ele? Ela é linda! Ela é linda e o cara é um troglodita! Como pode?
- Ah, vai ver ele é feio mas tem algum charme menos óbvio...
- Argh, olha ali, o cara tá babando!
- Irgh, é mesmo.
Caras nojentos que pegam as mulheres que você gostaria de pegar. Eles são feios. Você já conversou com eles. Ficou com pena da humanidade, por ter exemplares tão idiotas. Ainda assim, algumas mulheres parecem não ver isso. Os caras simplesmente chegam nelas nas festa, e você ali, olhando de longe, esperando para rir do fora que eles vão levar. Mas eles não levam! Eles conseguem! Como pode?
Para analisar a situação, é preciso sair um pouco da esfera humana. Voltemos aos nossos amigos animais mais próximos. Os macacos vivem em grupos liderados pelo macho-alfa. Há uma constante disputa entre os macacos pela vaga de macho-alfa. O macho-alfa é, por regra, aquele que irá copular com as fêmeas do grupo. Ninguém quer ser o macho-beta. O macho-beta não come ninguém. O macho-beta fica ali, chupando o dedo, esperando a sua vez. As fêmeas só querem saber do macho-alfa. O macho-alfa é o mais forte, ele derrotou todos os seus desafiantes. Quando ele chega a sua presença é sentida. E elas adoram isso. Ficam enlouquecidas com o poder. Elas querem o mais forte, elas querem o melhor, elas querem o macho-alfa.
Como se sabe, nos diferenciamos dos macacos pelo polegar opositor, o pensamento abstrato e o senso de higiene necessário para saber que comer piolho é nojento, quanto mais os dos outros. Mas algumas semelhanças persistem. As mulheres querem o macho-alfa. Vocês já devem ter ouvido esta frase: o poder é sexy. O poder é um tesão. Um homem poderoso é atraente. O gosto pelo que está no topo é um resquíscio dos nossos amigos primatas. E esse é o diferencial do cara que é nojento e pegador, e também o real motivo pelo qual você o odeia: ele pensa que está no topo. O desgraçado é porco, desagradável, feio pra dedéu, mas se acha o "ó" do borogodó, a última bolacha do pacote. Você acha ele um idiota por não se colocar no lugar que merece. E basta ele agir como se fosse tudo o que acha para se tornar atraente. Você o vê como um escroto chegando numa gostosa, ele se vê como um cara fodão que não deve nada pra ninguém, e a gostosa cai na confiança do cara e se deixa levar.
Essa palavra é essencial. Confiança. É verdade: se você não acreditar em si mesmo, não há como fazer sucesso. O ato de agir como o dono do recinto, de se portar como o macho-alfa, fala com a parte instintiva das mulheres. É por isso que dá certo. É por isso que aquele cara está com a gostosa e você não. Ele tem confiança no seu taco, sem trocadilhos. Quem tem confiança não precisa de nenhum charme. A própria confiança é o charme. Anotem nos seus cadernos.

sábado, 3 de outubro de 2009

O Círculo da Amizade

Homens e mulheres funcionam diferentemente. Além das diferenças óbvias (sistema reprodutor, razões para gostar de Bon Jovi), há uma que diz respeito à visão dos dois sexos quanto à amizade. Mulheres não veem seus amigos homens como homens, no sentido pleno da palavra. Na visão delas, existem homens, mulheres e aquele ser híbrido indefinido, que é o Amigo Homem. O Amigo Homem é um cara superlegal e interessante, de confiança, que tem tudo a ver com a mulher. O Amigo Homem é engraçado, tem um senso de humor que casa perfeitamente com ela. O Amigo Homem pode até ser bonito. Independente dessas qualidades, a mulher nunca enxergará o Amigo Homem como mais do que um amigo. A mulher pode até admitir que o Amigo Homem daria um namorado perfeito, e neste caso tenta arranjá-lo com uma amiga, dizendo: "olha, conheço um cara que tu vais adorar, ele é um amigo meu...". Para ela, o Amigo Homem é seu irmão. Desejar o Amigo Homem é algo inconcebível, até nojento. Pobre Amigo Homem. Para sempre preso no limbo da amizade.

***

Homens não funcionam assim. Não mesmo. Um homem não enxerga as amigas como irmãs, nem nunca enxergará, salvo em casos muito especiais. As amigas são amigas e mulheres ao mesmo tempo; o homem consegue ver que uma coisa não anula a outra. Mas vocês, leitoras do sexo feminino, devem estar pensando que não é bem assim. Não, não, meus amigos são meus amigos. Eles nunca me desejariam. O Rogério, aquele cara que eu conheço desde sempre, aquele cara que cresceu junto comigo, ele não é assim. Inclusive, naquela brincadeira na oitava série, onde fecharam nós dois num quarto por cinco minutos, pensando que iria rolar alguma coisa, olha só que engraçado, nós ficamos fingindo sons de beijos para o pessoal do lado de fora achar que nós estávamos ficando, foi muito hilário! Imagine, beijar o Rogério! Que nojo! Tá certo, eu sempre achei que ele tinha uma quedinha por mim quando a gente era criança, mas por favor! A gente é amigo! Até já durmimos juntos na mesma cama, naquela viagem onde só tinha um quarto pra nós dois, ele nem tentou nada, o que me diz disso, hein?
Mas não pensem, queridas leitoras, que ele não pensou, não ponderou, e chegou à triste conclusão de que não iria dar certo. Imaginem por um momento a tristeza do Rogério ao entrar naquele quarto na oitava série, pensando que finalmente agora o negócio iria acontecer, e ouvir você, rindo, tirar sarro do pessoal que achava que vocês realmente iriam ficar. A força que ele deve ter feito para rir quando você sugeriu fingir os sons de beijos foi certamente titânica. Pobre Rogério. Para sempre preso no Círculo da Amizade.

***

A amizade entre homem e mulher é meio que como um RPG: o seu nível de amizade começa no zero, aí você vai enchendo a barrinha da intimidade, através de conversas, tempo gasto juntos, até atingir o Círculo da Amizade. Quando você entra no Círculo da Amizade, aí, amigo, não tem volta. Pois quem entra no Círculo da Amizade atinge a classe de Amigo Homem. O problema é que não há como prever quando você vai entrar no Círculo: isso quem define é ela, a mulher. E ela não vai te avisar, nem quando você estiver perto nem quando você cruzar a linha. O ideal é o homem sempre manter uma certa distância das mulheres de que tem interesse, para não correr esse risco. E este é o grande dilema do homem moderno, mulheres: como conhecer uma mulher legal, se quando nós temos a chance de conhecê-la a fundo já é tarde demais? Por que não aceitar os amigos como possibilidade de relacionamento?
Isso é falta de maturidade, é isso que é. Já cansei (e como) de ouvir histórias de mulheres se queixando dos homens com quem se relacionaram, porque foram traídas, porque foram trocadas por outra, porque foram enganadas, porque homem não presta, só mente, e todos os homens são
iguais. Elas desabafam tudo isso, adivinhem para quem, para quem? Para o Amigo Homem, é claro! Que, coitado, tem que aguentar frases do naipe de "ah, como eu queria um cara legal pra mim" ou "tá faltando homem no mercado" de suas amigas. Nós somos o quê, então? É óbvio que vocês não vão encontrar gente decente no meio do nada, mulheres! Às vezes penso que aquela história de mulher gostar de homem cafajeste é verdadeira. Antes eu não acreditava, mas a vida acaba por provar coisas incríveis. Fiquem com estes caras, é sério, divirtam-se na noite, mas não caiam na de pensar que eles estão a fim de vocês. Estão a fim de vocês no momento. Assim que eles acharem alguém melhor, irão largá-las para vocês chorarem nos braços dos amigos, esses sim, sempre presentes.

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Não pensem que vai ser sempre assim. Quando vocês estiverem com 30, 40 anos, com a beleza começando a desbotar, não haverão mais homens caindo a seus pés. Aí, vocês vão se voltar para os amigos, que eram os que estavam lá desde o início, esperando a vez. Ah, sim, o Rogério! Ele sim é perfeito pra mim! Ele, superlegal e interessante, de confiança, que tem tudo a ver com a comigo, onde ele está agora? Ele está, minha cara, rico, bem sucedido e com uma mulher mais
nova que você. Feliz da vida.