terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A minha amada

     Sinto saudades da minha amada. Não ouço nenhum som seu há quase dois meses, agora. Adorava quando ela cantava, às vezes só pra mim. Ela desafinava um pouco, mas eu não ligava. Amar é quando os defeitos não são defeitos, são apenas detalhes. E ser desafinada era um detalhe. Agora, nem isso mais. A melodia acabou. Nada.

     Sobram as reminiscências. Nossa relação começou quando eu tinha treze anos, quase catorze. Se eu sabia que iria ser ela, desde que a vi? Não. Seria mentira se dissesse que foi amor à primeira vista. Estava entre tantas outras, experimentei várias. Não tenho medo de dizer: várias passaram pela minha mão antes dela. Ela sabe. Ela entende, nunca foi de me cobrar por isso. Sabe que as que vieram antes foram apenas testes. Eu estava atrás da certa. Com ela foi real. Por que ela, e não alguma das outras? Certamente não por algum amor platônico: o amor se desenvolveu mais tarde. Na hora em que nos encontramos pela primeira vez, achei-a simpática, no máximo. Só mais tarde fomos realmente nos encontrar.

***

     Os primeiros contatos foram atrapalhados. Nem eu nem ela sabíamos o que estávamos fazendo. Passava a mão pelo seu braço, subia até o seu pescoço, roçava a parte de trás de sua cabeça. Tocava-a com a ponta dos dedos, desajeitadamente. Ela soltava gritinhos desafinados, querendo dizer que era por aí, mas eu não estava fazendo no lugar certo. Tentava de novo, mais pra cá, mais pra cá. Isso. Aos poucos fui pegando o jeito. Ninguém nasce mestre, ainda mais nessas coisas. Não sou exceção, mas acho que evoluí rápido. Aprendi quase tudo sozinho. Ou quase. Hoje em dia a internet dá um bocado de dicas, está tudo lá, um grande manual da perversão. Aos poucos já sabia como fazê-la gemer do jeito que eu queria. E ela o fazia, bem alto.

     Os vizinhos ouviam, é claro, mas não tinham coragem de reclamar. Mas eu via nos olhos deles, quando nos cruzávamos nos corredores do prédio, que eles se incomodavam. Era ciúmes, eu sabia. Ciúmes das nossas demonstrações sonoras de paixão. Uma vez a minha vizinha de baixo veio reclamar pessoalmente. Sem nem ruborizar, disse que seu escritório era embaixo do meu quarto, onde eu e meu amor nos encontrávamos todas as noites. Pior: quem recebeu as reclamações foi a minha mãe, que depois me passou, meio sem graça, a mensagem da vizinha. Não ligávamos: continuávamos com nossos encontros ruidosos.

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     Nunca fui um cavalheiro no nosso relacionamento: se fui alguma coisa, era bem o oposto. Tinha dias que eu chegava da escola louco para surrá-la. E o fazia, sem compaixão nem piedade. Ela nunca reclamou, um dia sequer, mesmo depois de uma semana de surras diárias. Não me arrependo: de fato, desconfio que ela gosta. Ela gosta de ser surrada, de ser pega com força, de que eu arranhe nela. Com o tempo minha pegada foi ficando cada vez mais forte, e ela ali, aguentando e gemendo, gemendo e aguentando, mas gostando, isso sim.

     Nós nos bastávamos, certamente, mas eu sempre quis mais. Queria experimentar. Ela sabia qual era a minha vontade, sempre soube: fazer uma experiência grupal. Quando finalmente achei pessoas com quem poderia rolar uma experiência legal, lá estava ela, berrando e gemendo como sempre.

     Fizemos e refizemos a experiência várias vezes, quase todo mês nos encontrávamos com nossa turma de depravados. Esses encontros não podiam ser na casa de ninguém, então pagávamos um lugar e mandávamos ver. Entretanto, o grupo tinha ideias mais ambiciosas. Não, não, aquilo não era o suficiente: era preciso mais. Era preciso fazer em público. Havia lugares para isso, lugares onde as pessoas iam para ver performances grupais como as nossas, só que públicas. Não vou negar, quando foi apresentada a ideia, fui seu mais ferrenho apoiador. Talvez de todos lá eu fosse o mais doente. Já ela, eu não sei: nunca se manifestou sobre as minhas decisões. Quando eu dizia que queria fazer tal coisa, ela simplesmente ia, sem questionar. Na verdade, creio que é por um medo crescente de ser trocada. Ela sabe que não é a melhor, e que eu poderia achar uma substituta superior em todos os quesitos. Ela nunca me disse, mas acho que tem medo. Por isso talvez não tenha se manifestado em uma decisão de tamanha magnitude.

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     O show estava marcado, haveria até palco para a nossa exibição, mas ela vacilou. Não se garantiria ali, na frente de todos. Eu a amava, mas ela não era comparável às outras, iria passar vergonha. O pior é que, por mais que eu gostasse dela, por mais que eu a amasse profundamente, eu sabia que era verdade. Ela não era realmente boa. Naquele dia, subi ao palco com uma substituta, empréstimo de um amigo meu. Ele não se importou: diferente da maioria dos caras, não parecia muito apegado à sua companheira; inclusive queria se desfazer da coitada. Tentou com que eu ficasse com ela. Houve até dinheiro envolvido. Seiscentos contos, e a dita cuja era minha.
     Olhei para a minha pretinha: pude sentir a sua tensão, era o seu maior pesadelo. Não troquei-a. E foi legítimo: apesar de o empréstimo de meu amigo ter seu valor, a substituta não tinha qualidades que a minha Pretinha possuía. Ela não era tão boa de agarrar, e, ainda por cima, gemia estranho. Passei a oferta. Não sei o que aconteceu com a outra: deve estar encalhada até hoje.

     Tal experiência ensinou-me que a minha pretinha, que eu esnobava tanto, que eu falava tão mal, tinha sim seu valor. Com nós dois mais confiantes, achei que seria uma boa fazermos uma nova tentativa. Subimos ao palco os dois juntos, e dessa vez fiz tudo com ela, e ela se desempenhou muito bem, por sinal. Não havia nada a temer. Tá bom que foi meio estranho, tanto para nós quanto para o público. Talvez o nosso desempenho como grupo, apesar de ser muito legal para nós, não seja muito agradável de se assistir. Ainda assim, a culpa não foi dela.
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     E assim continuamos nosso casamento, até que aconteceu uma tragédia: ela emudeceu. Não emite mais som. Tentei descobrir o problema, mas foi inconclusivo. Diagnóstico dos especialistas: transformador da caixa queimada, necessita conserto. Ufa, pelo menos não foi nada com ela. Mas agora é isso: estou há dois meses sem ouvir o som da minha guitarra. Meus dedos estão sedentos por tocá-la de novo. Não que eu esteja num período de ensaios com o meu grupo, mas eu gostaria de passar meus dedos por suas cordas e ouvir o seu som mais uma vez, depois de tanto tempo.
     No desespero, dá para pedir a substituta do meu amigo. Não será traição, é só necessidade física. Ela compreenderá.