quarta-feira, 28 de abril de 2010

Noites do Beco

- Tá vendo aquela pessoa?

- Qual?

- Atrás daquele cara.

- Sim, estou vendo ele... ela.

- É ele ou ela?

- É... não sei. Caramba! Não sei mesmo. Que pessoa esquisita.

- Parece um homem. Acho que é um homem.

- Com esse cabelo? Com essas roupas? Não pode ser.

- Se bem que pode ser mulher. Mas... poxa. Nunca vi mulher assim.

- Nem eu.

- Olha lá. Tá beijando um cara.

- Então é mulher.

- É.


Minutos depois.


- Olha lá.

- O quê?

- Ali. O cara-barra-mina.

- Aonde?

- Beijando aquela mulher.

- Vi.


Ele leva a cerveja até a boca, dá um gole tranquilo, depois se dá conta.


- Caramba!

- Não precisava cuspir em mim.

- Desculpe. E agora? Será que é homem?

- Sei lá. Não tem sinal de barba.

- O corpo... é reto. Não parece de mulher.

- Mas sei lá, né? Pode ser uma dessas mulheres sem peito, bunda...

- ...Sem graça. Pode ser.

- Mas olha o pé. Pé 42. É homem, com certeza.

- Tá. É homem.

- É.


Mais tempo depois.


- Olha ali o nosso cara-barra-mina. Tá ficando com outra pessoa.

- Outra? Oba, mais pistas. É homem ou mulher?

- É homem. Não, peraí, é mulher.

- Aquela ali? Só se for a mulher mais feia da Terra. É homem.

- Não, é mulher! Tô te dizendo.

- Você mesmo disse que era homem.

- Olhando de um ângulo, mas se você olha desse...

- De qual?

- Desse. Vem pra cá. Daí parece mulher.

- Mais ou menos. Não dá pra ter certeza.

- Quer saber? Dane-se.

- Por quê?

- Olha bem pra elas. Ou eles, sei lá. Não tem como a gente saber o que são porque nem eles devem
saber.

- Pior. Mas sabe de uma coisa? Eles parecem bem felizes assim. Um brinde a eles.

- A elas.

- Que seja.

***

- Tá ouvindo isso?

- O quê?

- É "Kids". De novo. Botaram pra tocar de novo essa bosta. Não aguento mais essa música.

- Pois é.

- Eles sempre botam as mesmas merdas. Ou é isso ou é "D.A.N.C.E.". Mas o pior é esse tecladinho.
Não aguento mais esse tecladinho.

- Cara...

- A música inteira é esse tecladinho. Que troço enjoado. No início era legal, agora não dá mais. Ninguém aguenta.

- Você sabe que não é com a música que você está brabo...

- É sim. Eu e todo mundo. Eu sei que essas pessoas estão dançando, mas no fundo elas estão sofrendo. Elas odeiam a música tanto quanto eu. Elas fingem gostar porque essa merda é cool. Isso me dá nos nervos. Dancem! Dancem e sofram !

- Não é assim.

- É sim.

- Não é. E fica sereno.

- Eu estou sereno. Sereníssimo. É só essa música. Não aguento mais essa música.

- Não é a música. É a Sofia, e você sabe disso.

- Não sei do que você está falando.

- Não te faz. Deixa ela pra lá, cara, não adianta ficar bolado com isso.

- Eu não estou. Sério. Não estou mesmo. Estava me divertindo à beça, só que essa música estragou tudo. É a epítome da falta de criatividade. É uma afronta aos bons ouvidos. A música está me afrontando.

- Eu sabia que a gente não devia ter vindo aqui. Eu esqueci que foi aqui que vocês se conheceram. Devíamos ter ido pra outro lugar.

- Não, não. Aqui tá ótimo. E, se ela estiver aqui hoje, tanto faz.

- É por isso que você quis vir pra cá? Porque acha que ela pode estar aqui?

- Eu? Não! Capaz, nem me passou pela cabeça. Mas se você ver ela, me avisa.

- Ela não vai voltar pra ti.

- A única coisa mais irritante que o teclado é essa voz sintetizada.

- Me escuta...

- Eu vou lá pedir pra trocarem de música. Não quero nem saber.

- Cara, ela não vai voltar...

- É isso. Eu vou ir lá pedir e já volto. Me espera aí.

- Cara...


O outro se vira, mas ele o agarra pelo braço.


- Cara, ela não vai voltar!


O outro o encara nos olhos, com raiva. Então começa a chorar. Abraça-se no amigo como uma criança na mãe.

- Eu amava ela, cara! Amava ela!

- Eu sei, eu sei...

- E sabe o que é pior? Ela que me deu o fora. Disse que acabou e acabou. Mas eu não estava pronto,
entende? Eu não estou pronto!

- Entendo, entendo...

- Por que elas acham que podem pôr um ponto final assim, no mais? E nós, cara? E nós, como ficamos?

- Ela é uma vaca. Não fica mais correndo atrás dela.

- Tá, mas eu tô sofrendo, cara, eu tô sofrendo.

- Calma, calma. Ó, até mudaram a música.

- É?

- Isso. Agora tá tocando "D.A.N.C.E."


E o outro volta a chorar.

***

- Legal, aqui. Nunca tinha vindo ao Cabaret, antes.

- Aqui é o Porão.

- Não, é o Cabaret. Olha lá o pooldance.

- O quê?

- Pooldance. O poste, lá. O mastro de cabaré.

- Ah. O pau-de-puta.

- Isso. Viu? Aqui é o Cabaret.

- O pau-de-puta só tem no Porão. Aqui é o Porão.

- Como assim? Pooldance não é coisa de cabaré?

- É, sim, mas Cabaret é o outro. É na mesma rua, mas é outro.

- Quantos Becos têm, afinal?

- Bom, tem esse, o Cabaret e o novo que abriu, o Diskoclub.

- Qual é esse?

- É aquele pequeno, escuro e apertado, com gente velha e música que ninguém conhece, e um andar
com pista de dança no subsolo.

- No subsolo? Você quer dizer num porão?

- É.

- Então aquele é o Porão?

- Não! Aqui é o Porão!

 - Aqui não era o Cabaret?

- Não!

- Ah é, tá certo. Então deixa eu ver se eu entendi...

- Tá.

- O Cabaret não tem mastro de cabaré...

- Não, não tem.

- E o que tem o mastro não é o Cabaret, mas o Porão...

- Sim.

- E o que tem o porão é o Diskoclub. É isso?

- É isso. Entendeu agora?

- Não.

- Nem eu. Vamos beber?

- Vamos.

***

- Oi, com licença.

- Oi.

- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. É sério, não é papo furado. Foi uma coisa assim, pá-pum, entendeu? Eu te vi, no meio das outras, e vi que você era diferente. Vi que você era especial. Sabia que precisava falar contigo. Eu disse pra mim mesmo: "cara, eu não posso sair dessa festa sem antes falar com essa mina. Ela é especial. Eu não vou sair daqui sem beijá-la". E é isso. Sem frescura, resolvi ser direto. Não posso perder essa oportunidade, deixar você sair daqui, sair da minha vida, e talvez nunca mais vê-la, sem fazer nada. Não posso.


A menina ouve tudo sorrindo, pega na mão do menino e diz:


- Ah, sinto muito, mas eu estou namorando...

- Ah.

- É uma pena, eu sei como você está se sentindo, mas... não posso, entende?

- Sei.

- Não depende de mim. Mas não fica mal, tá cheio de gente especial por aí...

- Certo, certo...


A menina se despede e vai embora. O menino vira para outra e diz:


- Oi.

- Oi!

- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você.

- É?

- Sério. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. Eu te vi e foi, assim, pá-pum, sabe? Te vi, assim, no meio das outras, e foi aí que...

***

- Cara, afinal, o que houve?

- Não deu certo, cara. Não deu certo.

- O plano era bem simples: eu ficava com a gorda e você ficava com a outra. Não tinha erro. Ela
estava na sua!

- Eu tentei. Também pensei a mesma coisa. Mas aí...

- Aí o quê?

- Ela veio com o papo do ex-namorado.

- Ah! O papo do ex-namorado...

- Isso. Disse que tinha se separado ontem, e que não estava pronta pra recomeçar essa coisa de ficar
com outros, blablablá blablablá...

- Não cai nessa! Ela tá se fazendo!

- E o que você quer que eu faça? Que eu continue insistindo? Eu não vou ficar mendigando esmola.

- Deixa de ser orgulhoso, mulher não funciona assim. Você tem que mudar de postura. Ela tá na sua, eu vi que ela tá afim...

- Quer saber? Só estamos tentando alguma coisa aqui porque você sentiu que ela estava afim de mim. Você que disse que ela estava olhando pra mim e me empurrou pra falar com ela. Estamos aqui nos ferrando por causa de uma impressão sua. Você se ferrando mais do que eu, já que ficou com a gorda.

- Eu fiquei com a amiga gorda só pra te ajudar, e você me desperdiça a chance...

- Eu tentei te salvar. Fiz sinais frenéticos de "abortar plano!", "abortar plano!", mas você grudou a
menina na parede e nem me viu.

- O que vamos fazer agora? Decide rápido, elas podem voltar do banheiro a qualquer momento!

- Mulher tem dessas, né? Vão juntas no banheiro pra fofocar sobre nós, os homens. "Aquele cara
queria ficar comigo! Sabe o que eu fiz? Usei a tática do ex-namorado! Hohoho, ele caiu feito um patinho!"

- A mina ri que nem o Papai Noel?

- Quê? Não, eu... esquece! Temos que pensar no que fazer!

- Já sei. Vamos embora.

- Como assim? E deixar elas aqui?

- É! Porque não?

- Ir embora sem avisar?

- É.

- Deixar elas pra trás, confusas e se sentindo um lixo, rejeitadas e enganadas?

- Sim. Pilha?

- Pilho certo. Vamos aproveitar que elas estão demorando.

- Muito afudê isso, né? Mostrar quem é que manda.

- Isso aí. A mina acha que eu estou me arrastando pra ela. Agora, vai ver que eu não tô nem aí.

- É.

- Mas diz aí. Você estava gostando de ficar com a gordinha, né?

- Eu? De jeito maneira. Fiz tudo por amizade.

- Vamos lá. Confessa.

- Tá. Um pouco. Ela tem um rosto bonito.

- Aham. Sabia. Você estava curtindo.

- Além disso, ela beija bem. Uma coisa legal dessas mulheres que ninguém pega é que elas sabem dar
valor com quem tem coragem de ficar com elas. Elas fazem o cara se sentir no topo do mundo.

- É muito fogo guardado.

- Como elas estão demorando...

- Quer saber? Fica aí, curtindo ela. Eu vou embora sozinho.

- Quê? Não, cara, não é pra tanto, vamos nós dois juntos.

- Não, fica. Você tem mais é que aproveitar. Só não pede pra eu ficar e ter que suportar a arrogância
da outra...

- Mas se bem que eu pensei...

- O quê?

- Das duas uma: ou ela pode ficar arrasada porque você foi embora...

- Ou...

- Ou ela pode achar que você ficou com medo. Ou com vergonha do fora que levou.

- Ih...

- Aí ela vai se sentir melhor ainda. Mais poderosa. Mulher adora isso.

- Ah, não. Não vou dar essa satisfação.

- Vamos ficar, então?

- Não sei. Vamos dar mais um tempo, amadurecer a ideia.

- Certo, então. Mas que loucura, elas ainda estão no banheiro.

- Estão. Que vontade de fofocar, essa.


5 minutos depois:


 - Ainda não vieram? Já estou sentindo falta da minha gordinha.

- Será que era verdade? O negócio do ex-namorado, eu digo. Será que ela está se sentindo mal, por querer ficar comigo mas não estar preparada? Isso explica a demora. Deve estar conversando com a amiga.

- Talvez. Eu disse que ela estava afim de você. Eu nunca me engano nessas coisas.

- Pois é. Vou tentar insistir de novo com ela quando voltar. Dizer que está tudo bem, que ela tem
que se abrir de novo para as coisas boas da vida, etcetera.

- Boa, boa. Mas se não der, a gente vaza.

- Sim, sim. E deixamos elas no chão.


Mais 5 minutos:


- Quem sabe a gente não dá uma volta? Vê se elas não estão por aí?

- Pode ser. Vamos nos separar para procurá-las?

- Sim. Nos encontramos aqui daqui a pouco.


Outros 5 minutos:


- Cara, elas foram embora.

- Não pode ser.

- Procurei por tudo. Pedi para uma menina checar no banheiro. Elas não estão em lugar nenhum.

- Elas nos deixaram. Não acredito

- Não acredito eu! Eu perdi a Ana Denise pra sempre!

- Quem? A gordinha?

- Não chama ela assim! Ela era perfeita pra mim, meu Deus, e agora ela foi embora!

- Do que você está falando, cara?

- Ela era a mulher da minha vida. E não era gordinha, nada. Era linda.

- Era gordinha.

- Tá, era gordinha. Mas linda de qualquer maneira.

- E eu, cara? Que perdi a Isabel?

- Quem?

- A amiga da gord... da Ana Denise. Podia ter insistido mais. Mas não. Desisti. Foi um teste. Ela estava afim de mim. Ela queria ver se eu estava também, se eu estava disposto a lutar por ela. Não lutei. Desisti com todas as armas na mão. Fui eu, no final, que fiquei me fazendo. Sou um merda.

- Que tipo de pessoa faria tal coisa? Que tipo de monstro nos abandonaria aqui, despedaçando nossos corações?

- O pior tipo, caro amigo. O pior tipo.

***

Ela ergue a manga e mostra as marcas de cigarro.

- Quem fez isso?

- Eu mesma.

E toma um gole da cerveja, que já está quente. Não está nem aí. Aliás, ela parece nunca ter estado aí para nada.

Acende um cigarro. Por um momento o rapaz fica tenso, pensando que ela vai apagá-lo em si mesma, mas não. Dá uma baforada, olha para as pessoas na pista de dança. Volta a face lentamente para o rapaz e continua falando:

- É para eu me lembrar de que estou viva. Às vezes é necessário pra saber que não morri. Foi parecido quando eu fiz isso - Ela mostra uma cicatriz em forma de coração em um dos braços - Lembro que eu achei que ia doer. Até que não doeu. Foi na época da Ciça.

- Ciça?

- É. Uma namorada. Uma trapezista anã, a Ciça. Fugi de casa pra seguir o circo dela, aos dezesseis. Fiz o coração como prova de amor. Pra mostrar que é algo que dói, mas que eu estava disposta a vivê-lo. Aquela vaca. Me trocou pelo mágico croata. Eu vi que ela olhava para ele de um jeito especial durante as orgias que fizemos juntos, mas não achei que ia acabar assim.

- Ah.

- Mas ela teve o que mereceu. Pedi para o Dudu dar um jeito nela.

- O Dudu é...

- O meu amigo bruxo.

- Ah.

- Invadi o quarto dela numa noite e arranquei um tanto de seu cabelo. Saí sem acordá-la. Provavelmente ela estava de porre, como sempre. Ah, Ciça. Depois dei o tufo para o Dudu, que fez um vodu. Poderosíssimo. Ela não morreu, a Ciça, mas perdeu o emprego, o amante e agora é entregadora de flyers nas sinaleiras. Foi um ritual macabro, o do Dudu. Eu participei. Tive que dar o meu sangue, para ficar mais efetivo. Foi a origem disso aqui - e mostra um corte no pulso.

Ela pontua a frase com uma baforada. Então pergunta:

- Você disse que ia me contar algo louco que fez hoje. O que era?

O rapaz cruza os braços, de forma a esconder a pequena tatuagem de "Coragem" em ideograma japonês que fizera à tarde.

- Não. Disse? Impressão sua.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Romântico


     Olhe aqueles dois, ali, tão felizes, tão enamorados. Ele, com um violão de aço; ela, com um de nylon, provavelmente para não machucar os dedos. Entre os dois, apenas uma pasta de cifras. Entre os dois, um universo de músicas e acordes esperando para serem tocados, entre risos, flertes e beijos. O homem mostra, aqui, isso é um Dó, é assim, e faz a posição no braço do violão. Como, assim? A menina faz a posição invertida. Não, é assim, e ele mexe nos dedos dela, reposiciona-os, de forma a ficarem nas casas certas. Ah, ela diz, e ri, e ele também ri.

     Que lugar perfeito para um encontro assim, uma praça, um banco, quatro da tarde. Sol de leve, batendo nas pernas, brisa mansa. Dois violões e uma pasta de cifras. E a música. A música une as pessoas. A música apaixona e faz apaixonar. Estou vendo a menina pedindo para aprender uma em específico, que ela adora. E ele aceita, é claro. Óbvio que ele aceita. Poderia ser a música mais difícil do mundo, mas ele nunca iria recusar um pedido da amada. Estão enamorados, é óbvio. Ele mostra, ó, começa assim. E ela tenta fazer a posição, mas não consegue, ai, é difícil. Ele ensina, ó, tem um outro jeito de fazer, vê se assim é mais fácil. Sempre há um jeito mais fácil de fazer. A música é universal e tem tantas possibilidades quanto o amor. A combinação de acordes é tão infinita quanto a combinação de pessoas, mas algumas, ah, algumas dão mais certo. Algumas são mais bonitas. Algumas casam perfeitamente, como se Deus tivesse feito um acorde, ou uma pessoa, já pensando em acompanhar o outro. Ela tenta fazer o outro acorde. Exige uma pestana. Vamos mudar de música, ele conclui, e ela concorda, e ri, e lhe dá um beijinho.


     Quisera Vênus fazer o amor tão fácil de trocar como uma música. Não é assim. Amor é o que fica, é, sei lá, um aparelho de som sem a opção de trocar faixas. É um vinil! Sim, é um vinil. O amor não muda quando você quer. É preciso terminar a faixa, para então vir a próxima. Os amores da nossa vida são uma sucessão de faixas até encontrarmos aquela em que ligamos o repeat e deixamos até o fim, só curtindo a amplitude de suas ondas sonoras, dissecando cada instrumento. E o lado B é... bom, eu não tenho uma metáfora para o lado B. Mas voltemos àqueles dois. Ele mostra outra música para ela. Essa é mais fácil, e toca os acordes, e ela balança a cabeça, acompanhando o ritmo. Então faz o primeiro acorde, e toca junto dele, e tenta pegar o ritmo, mas não consegue. E tenta mais, e de novo, e ele diminui o ritmo para ficar mais fácil. Tem que soltar o pulso, ele diz, e ela sabe, mas é difícil. Tem que entrar no ritmo. Em uma relação, tem que se soltar o pulso. Quando os dois não estão na mesma levada, as notas soam fora de tempo. Quem está certo? Ninguém, é apenas a mesma música em dois tempos diferentes. É preciso que um ceda, entre no tempo do outro, ou ainda que ambos cedam, e juntos criem um tempo intermediário, um novo tempo, um tempo em comum. Olha aí, eles conseguiram. A menina acompanha o menino quase na mesma levada. Mais um pouco e ela chegará à perfeição. Confiança demanda treino. Deixar-se levar pelo outro não é sinal de fraqueza, mas de confiança. Ela entrou no ritmo dele, e ele diz, isso aí, e os dois tocam em harmonia. Estão juntos nessa, ela confiando nele, e ele levando-a, ao som da mesma música, na mesma sintonia, num mundo particular em que não entra nenhum intruso. Ninguém vai...
     - Aí, rapá!
     - Oi?
     - Tá olhando a minha mina?
     - Eu?
     - Tá olhando a minha mina, mané?
     - Não, é que...
     - Sai fora senão eu te arrebento!
     Não dá mais pra ser romântico.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Anedotas

     Ninguém sabe como surgem nem para onde vão. Como os buracos negros, só que com graça. Mas é certo que a origem das anedotas é um mistério. Você certamente não conhece ninguém que criou uma. Você a ouviu de um amigo, que a ouviu de outro amigo, que a ouviu de quem mesmo? Não sabe. Leu em algum lugar. Piadas são de domínio popular. Nunca saberemos quem foi o gênio por trás da anedota do cachorro Nabunda. Possivelmente já morreu, e no anonimato. Enquanto isso, continuam reproduzindo a sua anedota em livrinhos de piada, que seriam bem menos rentáveis se tivessem que pagar direitos autorais pelas piadinhas.

     E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:

     - Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
     - Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
     - Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
     - Tá! Então o Joãozinho...
     - Sim...
     - ....E um rabino gago...
     - Sim...
     - ...Em um avião. Já tem?
     O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
     - Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
     - Argh!

     Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.

     E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.

     E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.

     - Você ouviu a do pontinho que...
     - Não! Chega!!!

     Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.

     E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.

***

     Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:

     Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:

     - Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.

     - Em que você trabalha? - pergunta o outro?

     - Num asilo. Médico gerontologista.

     - Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.

     - Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.

     - Enfermeiro. Da área terminal.

     O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:

     - Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.

     Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.

     - Jornalista. Política nacional.

     O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.