terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cumprimentar ou não

     Uma amiga do interior - mas que hoje mora e estuda em Porto Alegre - me perguntou hoje porque as pessoas da universidade não se cumprimentam. Disse ela que em sua cidade natal todo mundo dá um "oi" ou um "tudo bem?" quando cruza com um conhecido, mesmo que seja só um conhecido de vista. Quando a minha amiga passa por um colega e sorri, este rapidamente vira a cara, e ela não consegue entender o porquê.

     Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!

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     Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.

     Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.

     Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.

     Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.

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     Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.

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     Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
     
     A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.

     Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Algo parecido com, mas não exatamente, uma parábola

     O artigo do Marcos Rolim na Zero Hora de domigo (Maconha, porta de saída?) lembrou-me uma história de tempos atrás. O artigo fala da agora badalada pesquisa do psiquiatra Dartiu Xavier, feita no início dos anos 2000, sobre o tratamento à base de maconha para dependentes de crack. Apesar de um tanto antiga, só agora essa pesquisa tornou-se mais conhecida, depois que um grupo de neurocientistas, incluindo membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - um grupo sério de estudos psiquiátricos - posicionou-se publicamente criticando a atual legislação brasileira, que não considera a maconha uma substância medicinal nem recreativa. Para quem não sabe, a pesquisa do doutor Xavier consistiu em pedir para que cinquenta dependentes de crack experimentassem trocar a droga pela maconha. Trinta e quatro deles conseguiram deixar o crack de lado e posteriormente largaram até mesmo a maconha, ficando totalmente limpos.

     Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.

     Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.

     Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.

      Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.

     Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo. 

      Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?

     - Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.

     - É, na pesquisa o doutor fez isso.

     - Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.

     - Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.

     - Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.

     - Hmm, acho que não. - disse o homem.

     - Por que não?

     - Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.

      - Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?

      - Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...

     Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.

     E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.