sábado, 27 de março de 2010

Ronaldo e os vizinhos

     - Credo, Ronaldo! Põe a mão na frente da boca quando você boceja!
     - Por quê?
     - Ora, "por quê"... porque sim! Porque é o que se faz quando se boceja.
     - Não entendo vocês...
     E não era só isso o que o Ronaldo fazia de estranho. Comia massa sem enrolá-la com o garfo: usava a faca como uma alavanca, levantava a parte anterior da massa e jogava a parte posterior para dentro da boca com o garfo.
     - Credo, Ronaldo. Porque você não enrola a massa com o garfo? Bem mais fácil.
     - Como?
     - Assim, ó.
     - Ah...     
     Uma vez, um amigo mostrou uma máquina fotográfica para o Ronaldo. Analógica, daquelas de filme. Enquanto explicava as vantagens de uma máquina de filme sobre uma digital, Ronaldo manipulava-a curioso. Por fim, abriu o compartimento do filme.
     - Tá louco, cara? Fecha isso!
     - Por quê?
     - Como "por quê"? Porque senão entra luz e estraga as fotos!
     - Ah. Não sabia.
     - Como não? Todo mundo sabe disso! Você deve ser a única pessoa do mundo que não sabe! Caramba, cara, tinha umas fotos boas aí...
     Ronaldo devolveu a câmera e pediu desculpas, com um sorriso. O seu sorriso era uma coisa perturbadora. De vez em quando, esse amigo pegava o Ronaldo olhando pra ele. Quando seus olhares se encontravam, Ronaldo, ao invés de desviar os olhos, dava aquele sorriso. O amigo falou sobre isso com os outros amigos de Ronaldo, e eles disseram que com eles acontecia o mesmo. Viam Ronaldo encarando-os, e então ele dava esse sorriso.
     - Para com esse sorriso, Ronaldo.
     - Ué, por quê?
     - Porque, sei lá... você fica olhando pra gente e sorrindo... é perturbador...
     - Pensei que o sorriso era o sinal mundial da aceitação.
     - Como assim?
     - Ora, se você acha que está irritando uma pessoa, você dá um sorriso e ele ameniza a situação. Não é assim?
     - É, pode ser, mas não faz mais.

***

     - Vocês notam que o Ronaldo age de um jeito estranho?
     - Ah, sim. Aquele jeito de comer massa...
     - Não. O porte dele é estranho. O jeito como ele se mexe, os gestos, não são iguais aos nossos...
     - Pior. Parece alguém que veio de outro país...
     Ninguém sabia de onde o Ronaldo viera. Mudara-se a uns dois anos para o subúrbio. Os vizinhos o receberam bem, era uma vizinhança onde todos se conheciam e conviviam juntos. Acolheram Ronaldo afetuosamente, apesar de suas estranhices. Não parecia conhecer mais ninguém. Nunca viram-no receber visitas. Tinha um sotaque estranho. Quando perguntavam de onde vinha, limitava-se a dizer que era do interior. De onde?
     - Longe. Muito longe.
     E não dizia onde.

***

     Certa noite, o Juca acordou com sede. Saiu da cama, cambaleante, cuidando para não acordar a mulher, e foi até a cozinha. Tateava as paredes, para não se desequilibrar. Tropeçou no gato. Serviu vagarosamente a água, e foi olhar a janela. Viu um passarinho, a casinha de seu cachorro e uma luz muito forte na casa do Ronaldo, seu vizinho. Ficou olhando o passarinho até que a informação de que a luz forte não era uma coisa comum chegou ao seu cérebro. Uma luz brilhante, vinda de um dos cômodos, no segundo andar. Correu para acordar a mulher. Os dois observaram o fenômeno atônitos. No outro dia, contaram aos outros vizinhos. Uma luz estranha, amarela, espectral... Todos ficaram pensando o que poderia ser aquilo. Mas o próprio Juca tinha uma teoria:
     - Pessoal, o Ronaldo é um alien...
     E isso explicava tudo, desde a luz até o jeito de comer massa. Os outros ficaram em dúvida. Será? Melhor dar uma chance para o Ronaldo se explicar. Naquela tarde, numa roda de chimarrão, o Juca resolveu perguntar ao próprio sobre o incidente.
     - Ah, aquilo? É a minha tevê de plasma nova. O maior modelo da loja. Se quiserem passar lá em casa pra assistir, podem ir.
     E continuou sorvendo o seu chimarrão. Ele mexia a bomba como um canudinho de milk-shake. Se fosse terráqueo, ao menos não era gaúcho.

***

     De fato o Juca foi até a casa do Ronaldo, e de fato ele tinha uma tevê de plasma, sessenta e tantas polegadas, muito impressionante. Tivera de dar o braço a torcer. Mas esse não foi o fim da visita. Ao passar pela sala, Juca notou algumas folhas com escritas estranhas em cima de uma escrivaninha. Eram símbolos, e Juca desenhou os que se lembrava aos amigos, mais tarde, enquanto confabulavam sobre o Ronaldo. Perguntara na hora o que eram para o Ronaldo, e ele respondera que era um alfabeto russo e que ele estava aprendendo russo.
     - Tá, mas alguém aqui sabe dizer se isso aí é russo ou não? - questionou o Fábio, durante a confabulação dos vizinhos.
     - Sei lá, mas não me parece, não - defendeu-se o Juca.
     - Bom, os russos são meio estranhos - opinou a mulher do Juca - Não duvido que eles usem isso aí. De qualquer jeito, eu tenho uma tia que fala russo. Vou mandar os desenhos pra ela por e-mail pra ver o que ela diz.
     Talvez o Ronaldo fosse um russo fugido do país, disseram alguns. O sotaque dele não parecia russo, mas alguém ali sabia como era o sotaque russo? Ninguém sabia.
     O William, que desde o início defendeu o Juca na tese do alien, disse que talvez Ronaldo tivesse escolhido o nome "Ronaldo" porque pensou que era um nome comum entre os humanos. Um pouco como Ford Prefect no Guia do Mochileiro das Galáxias, que escolheu o nome Ford por achar que os carros eram as formas de vida dominantes na Terra. Com tantos Ronaldos no futebol e, consequentemente, na mídia, talvez a teoria tivesse fundamento.

***

     Na saída para o trabalho, o Juca viu um carro preto estacionado na frente da casa do Ronaldo. Na frente do carro, havia um homem de terno e óculos escuros observando a casa. Nunca tinha visto um homem assim na vizinhança.
     - Com licença, posso ajudar? - perguntou ao homem.
     - Aqui é a casa onde reside Ronaldo da Silva?
     - É aqui sim, mas imagino que ele não esteja...
     - Sim. Entendo.
     - Quer que eu avise que o senhor passou por aqui?
     O homem mudou de postura.
     - Não. Não diga nada. Eu voltarei depois.
     Ele entrou no carro e foi embora. Juca reparou na placa do carro. Placa branca. Veículo do Governo. Na volta do trabalho, estava pronto para contar à mulher sobre o ocorrido, mas não conseguiu oportunidade: ela o assediou primeiro, com as notícias de sua tia, a que sabia russo. Segundo ela, não havia qualquer coisa parecida com um alfabeto daquele tipo na Rússia. Mas, para não deixar a sobrinha na mão, resolveu dar uma pesquisada na internet, num site que reconhecia imagens e fotos e achava outras imagens semelhantes. Deu um upload nos desenhos que o Juca fez e descobriu uma foto de uma espécie de lataria, com os tais símbolos desenhados. Clicou no link e foi para uma notícia sobre a queda de um suposto disco voador, origem da foto. O disco tinha grafias iguais aos símbolos que Juca havia desenhado, espalhados por toda a lataria.
     Naquela noite, Juca não dormiu: ficou olhando a janela, para a casa de Ronaldo, à procura de algum sinal, alguma luz estranha. Resolveu contar ao vizinho sobre o homem de terno do outro dia. Ronaldo não expressou reação, Juca perguntou se estava tudo bem e Ronaldo disse que sim. E deu um sorriso medonho.

***

     No outro dia, a Beth veio com a notícia de que o Ronaldo iria se mudar.
     - Passei na frente da casa dele, puxei conversa e ele me disse que estava de mudança. Vai embora amanhã. Eu estranhei, saindo assim tão de repente, sem avisar ninguém. Parece alguém fugindo.
     O Ronaldo confirmou. Sim, estava de mudança. Ia voltar para a sua terra natal. Quando perguntado sobre o motivo, foi evasivo: falou algo sobre a falta de segurança, sobre não se sentir à vontade no lugar.
     - O quê, aqui na vizinhança? O pessoal aqui dorme com a porta destrancada! - argumentou um dos vizinhos.
     Mas o Ronaldo estava irredutível. Ia aproveitar para matar a saudade de sua terra. Seja lá aonde isso fosse.
     Enquanto o Ronaldo estava em casa arrumando as coisas, o pessoal se reuniu casa da Beth para discutir os últimos acontecimentos. Juca explicou sobre os desenhos e o disco voador, e o engravatado do governo. Até os mais céticos estavam começando a se dobrar. E agora, segundo Juca, o Ronaldo ia voltar para o planeta dele, deixando a Terra para sempre. Que situação, hein?
     O William levantou.
     - Vou junto.
     - Como assim? - surpreendeu-se o Juca.
     - Já chega da Terra. Os políticos são podres, o sistema é podre, está tudo indo para o buraco. Quero recomeçar a vida em outra galáxia. E é bom que ninguém me segure.
     A Beth admitiu que o William tinha um bom ponto. Com os recursos escassos da Terra, era mais vantajoso mudar de planeta do que continuar vivendo num que está definhando. William concordou.
     - E sabe o que mais? O Oscar. O Oscar é uma piada. Guerra ao Terror é um lixo. Eu estava dando uma chance ao planeta, via o Oscar todo ano pensando que iria melhorar, mas não dá mais. Larguei de mão. Fui.
     E saiu pela porta. Nunca mais viram o William nem o Ronaldo. E, durante anos, o assunto do Ronaldo ainda era discutido nas rodas de chimarrão. E o Ronaldo, hein? Que fim levou? Deve estar por aí, pelas estrelas. Lembram do jeitão esquisito dele? E todos riam. Sentiam saudades do Ronaldo, e de como ele fez com que suas vidas suburbanas saíssem da mesmisse e virassem mais do que pequenos pontinhos perdidos no universo.
     Do William, só o Juca lembrava, de vez em quando, dizendo que um dia havia lhe emprestado um coador de massa e que agora nunca mais o conseguiria de volta.
 

sábado, 20 de março de 2010

As Águas de Março

     Japoneses, por incrível que pareça, adoram bossa nova. Pagam fortunas para ver uma apresentação de João Gilberto, que, em um show na terra nipônica, foi aplaudido durante 25 minutos, talvez o aplauso mais longo da história. Prova de amor à nossa música. Talvez o melhor produto de exportação brasileiro, embora o Robin Williams possa achar que são as strippers e o pó. Mas eu divago.
      O amor à bossa nova não vem, certamente, de uma identificação com a letra. Que o idioma japonês é muito diferente do português, todo mundo sabe. Nossa construção frasal não segue a mesma lógica e temos alguns milhares de caracteres a menos, só pra ficar nas disparidades mais óbvias. Mas, dentre todas as variantes do português, a do Brasil deve ser a mais estranha aos ouvidos orientais. Percebi o quanto durante uma conversa com uma estudante intercambista, Kana, sobre bossa nova. Estávamos falando de Águas de Março, e ela queria explicações sobre o nome:
     - Águas de Março quer dizer água, como... eh... - e fez movimentos ondulatórios com as mãos.
     - Como rio? - tentei.
     - Rio! Sim sim sim!
     - Ah... não. É "água" no sentido de chuva. Chuva. Tipo, que cai do céu, assim. - representei chuva com os dedos, de um modo que é meio difícil de descrever, mas vocês devem saber como é. 
     - Ah... sim sim.
     - É porque março é último mês do verão, e no Rio de Janeiro é um mês chuvoso. Então, a chuva representa o fim do verão, que nem diz a letra. "São as águas de março fechando o verão". Chuva, fecha, verão - mais mímica.
     - Ah... sim sim.
     Mas eu não tinha certeza se ela tinha entendido.
     - É uma música... difícil. - disse ela, referindo-se à letra.
     E era mesmo. E parei pra pensar em como explicar o resto da música a ela. Mas não havia como. Porque Tom Jobim escreve que um jeito que não há como traduzir. A brasilidade está tão intríseca à música que não há como fazê-la ser entendida em nenhuma outra língua. Nem os outros países de idioma português devem entender o que é a peroba do campo, ou caingá, candeia. E que raios é um Matita Pereira?
     Então, como algo escrito em um português oral mal compreendido até por mim pode tocar pessoas lá do outro lado do mundo? Eu respondo: porque o importante não é o sentido das palavras. É a musicalidade. É a melodia por trás delas, é o colchão sonoro que elas fazem para os nossos ouvidos. A sonoridade das palavras é muito mais importante do que o significado. Sem tirar o mérito de uma boa letra, mas ela é um complemento, é a cobertura do bolo, não o essencial. As palavras precisam ser melodiosas, precisam deliciar-nos, precisam ser saboreadas. Com ou sem sentido.
     Já vi muita música ruim que poderia ser boa se o artista tivesse escolhido palavras diferentes. Talvez a letra até fosse bonita, mas não encaixava legal na sonoridade. O pior é quando a música fica com cara de poesia cantada. Isso existe aos montes, e continuará acontecendo, até que os letristas percebam que uma boa letra não é aquela que parece ter sido escrita por Camões, é aquela que é uma delícia de cantar. É o som antes do sentido, é o ritmo das sílabas, é a cadência sonora, é um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. É um belo horizonte. É uma febre terçã.
     E é por colocar a melodia antes do sentido que Tom Jobim é amado no Brasil, no Japão, nos EUA, na Europa. Pois uma boa melodia é uma boa melodia em qualquer parte do mundo. Apesar de só ter sentido para nós - ou nem isso -, o projeto da casa, o corpo na cama, o carro enguiçado, a lama, a lama, vão soar bonito tanto aqui como na China. Ou no Japão, no caso.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Aécio e Lula

     Aécio me lembra Collor. Os dois vêm de uma família de políticos, e os dois almejaram a presidência com uma idade relativamente baixa. Do mesmo modo, os dois me parecem se importar menos com o que podem fazer de bom no exercício do mandato e mais com o mandato em si. Aécio teve a sua chance de ser candidato à presidência e perdeu para o Serra. Agora, aberta a possibilidade de ser vice, diz que não irá "nem empurrado". Aécio não se contenta com a vaga de vice. Ainda mais quando se é jovem e tem um futuro cheio de chances de chegar à presidência. Em teoria, é só dar tempo ao tempo, não concorrer a vice esse ano e tentar a candidatura na próxima eleição.
     Parêntese aberto: há alguns fatos para se considerar, que podem provar falha essa lógica. Primeiro que, apesar de Serra estar na liderança, Dilma evolui mais rápido que um Pokémon. Se antes da campanha oficial começar ela já vinha crescendo em ritmo alarmante, agora a coisa vai pegar fogo. Serra fica nessa lenga-lenga de vai-não-vai, de sou-candidato-mas-não-sou, de quero-me-candidatar-mas-vamos-esperar, e Dilma já está em campanha desde antes da campanha começar. Ela é precoce.
     Dilma largou na frente e Serra ainda está pastando. O que isso mostra ao povo? Que ela é a mais decidida. Enquanto Dilma está em tudo que é lugar, Serra fica pra trás, apagado, esquecido pelo povo que não o vê na TV. A não ser que, é claro, botem o Aécio para ser seu vice. A sua popularidade serviria como um turbo e os dois juntos largariam na frente, dificilmente podendo ser alcançados. Serra e Aécio: a dupla dinâmica, unidos para acabar com as forças do mal da ex-esquerda guerrilheira. Não ia ter pra ninguém, nem pra Dilma, mas o Aécio não quer. Prefere deixar o partido perder essa eleição do que se conformar a ser o vice, pois tem certeza de que pode ganhar em 2014...
     ...Que é onde eu abro o meu segundo parêntese. 2014 tem Copa do Mundo, e tem também Lula III. Sim, meus amigos, ele voltará. Ressurgido da cinzas como a fênix, acompanhado pelo clamor do povo, ele retornará, sim, e assumirá o posto que lhe estará reservado na candidatura à presidência da República pelo PT. Velhos irão chorar, comovidos por terem vivido até o dia do Retorno, e massas de pessoas irão se prostar a seus pés. Choverá sangue, talvez, e um ou dois mares irão se abrir.
     Pausa e volta para o presente. Para quem pensa que a sequência é sempre pior que o original, Lula II foi uma surpresa. No final de Lula I, tinha-se a impressão de que as lembranças que restariam daquele governo para a posteridade seriam o Fome Zero e o mensalão. Hoje, ninguém se lembra de nenhum dos dois (embora a Veja tenha dado uma requentada no mensalão essa semana ou na passada, deem uma conferida), não porque o povo se esquece de fracassos, ou talvez não só por isso, mas pelo incrível desempenho da sequência. Se no final do 1º mandato todos ficaram com o pé meio atrás, no segundo Lula conquistou reconhecimento nacional, internacional e extraterrestrial: bateu os 80% de aprovação; foi eleito personalidade de 2009 pela imprensa gringa; foi chamado de "o político mais popular do mundo" pelo político mais popular do mundo. Se eu ler por aí que Lula ganhou o título de "Homem Mais Sexy do Mundo", não vou duvidar. O "Cara" é um fenômeno. E é esse fenômeno que Aécio enfrentará, caso espere até 2014. Pois, se Lula já faz estrago só apoiando um candidato, se é ele próprio o candidato o buraco é muito, muito mais embaixo. Aécio não quer ser vice porque possui brilho para ser candidato principal, mas nem todo o brilho do mundo o ajudará nesse cenário. É melhor ele repensar suas estratégias, senão corre o risco de terminar 2010 e 2014 de mãos vazias.

sábado, 6 de março de 2010

Pensamentos sobre o Oscar

Amanhã começa a cerimônia do Oscar 2010 e todos já sabem quem é o favorito. Apesar de ser um remake de Pocahontas com aliens, Avatar promete ganhar nas principais categorias, pelo fato de ser um filme caro. Acho que é só por isso. Não tem nada de revolucionário em termos de roteiro ou construção de personagens. A parte da revolução fica por conta, é claro, das tecnologias usadas não apenas no filme normal, mas em sua versão 3D. Cada frame de Avatar levou 48 horas para ser trabalhado. Isso. Dois dias. E um segundo de filmagem tem 24 frames. Façam as contas. Não é de se impressionar que o filme levou 10 anos para ficar pronto.

A expectativa em torno de Avatar foi grande: por se tratar de uma superprodução, por ser o primeiro trabalho de James Cameron desde o mais bem sucedido filme da história, por demorar uma década para ser feito. Me ocorrem dois casos parecidos no cinema: Waterworld e Apocalypse Now. Apesar de Waterworld não possuir um diretor famoso como James Cameron, com certeza trata-se de um filme de orçamento gigantesco com um longo tempo de produção. Muito por causa de desastres nas filmagens, como a vez em que uma ilha artificial feita especialmente para o filme afundou, no maior fail da história do cinema, e foi necessário fazer outra. Apocalypse Now não difere muito: grandes gastos, problemas nas gravações, muita espera. Compartilha com Avatar a característica de ser dirigido por um grande diretor e com Waterworld os problemas de produção. A diferença é que Apocalypse Now foi um sucesso, e Waterworld naufragou nas bilheterias. Sem trocadilhos.

É certo que Avatar não é um fracasso, mas no futuro, quando seres azuis computadorizados fazendo acrobacias numa floresta computadorizada não impressionar mais ninguém, poderá acontecer de ele passar por uma reavaliação. Talvez chegue-se à conclusão de que os Na'vi não mereciam os prêmios que ganharam. Ou não? O fato de ser um marco tecnológico será o suficiente para mantê-lo relevante na história do cinema, como um daqueles clássicos indiscutíveis que não são mais questionados e apenas reverenciados pela revolução técnica? Você não pode dizer que Cidadão Kane é ruim, mesmo que no fundo ache que seja, pois logo um cinéfilo irá lembrá-lo que ele revolucionou a forma de se fazer cinema, enquanto aponta o dedo na sua cara. Avatar e suas tecnologias subiram o patamar e viraram um referencial para tudo o que virá agora, não na narrativa mas na forma de se experienciar um filme. Nesse aspecto, ele é mais importante do que o já citado e mais aclamado Apocalypse Now, e entra na mesma categoria de Cidadão Kane. Críticos de cinema, por mais que debochem do roteiro pouco criativo e da repetição de ideias, terão que se curvar às suas próprias regras e admiti-lo no panteão de filmes que moldaram a sétima arte. Estarão lá Cidadão Kane, E o Vento Levou, 2001: Uma Odisseia no Espaço e Avatar. Gostem ou não.

***

Disputando com Avatar pelo prêmio principal está Guerra ao Terror, o que é meio suspeito por duas razões: é um filme relativamente velho que não ganhou destaque no seu lançamento e é dirigido pela ex de Cameron. O tema Iraque, apesar de não estar em baixa, estava mais forte no lançamento do filme do que agora. Por que, então, um filme supostamente bom passou despercebido, a ponto de não ser lançado nos cinemas de diversos países? A bem da verdade, as críticas que tenho visto não são maravilhosas, reconhecem a qualidade do filme mas não o colocam no mesmo nível de alguns outros indicados. O que faz pensar que talvez essa coisa de Avatar versus Guerra ao Terror seja apenas para se aproveitar do fato dos diretores terem sido casados. Uma briga de casal para dar audiência é algo que faz sentido. O que não faz sentido é indicarem Amor Sem Escalas para Melhor Filme. Por cima do pano de fundo Crise Econômica, segue a fórmula de uma comédia romântica típica, como inúmeras outras que abarrotam os cinemas e atraem casais para as salas de exibição todos os fins de semana. É o filme mais fraco do diretor, o mesmo de Juno e Obrigado Por Fumar. Este último, na minha opinião, seu melhor filme, superior à Amor Sem Escalas e não mencionado no Oscar de seu ano. E a menina que faz o papel de coadjuvante é fraquíssima. Lembro que pensei ser a pior atuação que via em um bom tempo, e depois descobri que ela está concorrendo ao Oscar! É demais pra mim.

***

Sendo a disputa somente entre Avatar e Guerra ao Terror, e sendo só deles que se fala, não adiantou nada aumentar o número de indicados para Melhor Filme. Não se fala dos outros. Faltando um dia para a premiação, críticos de cinema são convidados para dar sua opinião sobre qual dos dois favoritos irá ganhar. Mas, quando perguntados sobre o seu favorito, a resposta é a mesma: Bastardos Inglórios. É, na opinião geral, o que deveria ganhar Melhor Filme, Diretor, Roteiro e o que mais tiver sido indicado, e não porque é revolucionário (até é), mas porque é muito bom. É bom demais. É muito melhor do que qualquer um dos outros dez indicados. Não tem tecnologia, não fala de um tema polêmico atual, é simplesmente mais prazeiroso de se assistir do que todos os outros. Faz brilhar os olhos de qualquer um que goste de filmes ou de uma boa história. E é o ápice de um grande diretor. Como dito na Zero Hora de hoje, se a Academia deixar de dar o Oscar a Tarantino amanhã à noite poderá cair no mesmo que cometeu com Scorcese: entregar um Oscar compensatório por um filme inferior do diretor muitos anos depois de seu melhor trabalho. Dar o Oscar à Bastardos Inglórios seria dar um tapa na cara da pressão da mídia em nome da qualidade e, de quebra, fazer o Oscar ganhar muito da credibilidade que perdeu ao longo dos anos. Não vai acontecer. Mas não custa torcer.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Melhores partes

A melhor cena de créditos iniciais é a de Watchmen. Sem dúvidas. Em uma sequência belíssima, eles contam tudo o que o espectador precisa saber sobre o pano de fundo da trama, através de instantes em que são tiradas fotos de eventos importantes. Sem usar uma única palavra, é mostrada a ascenção do primeiro grupo de super heróis e seu declínio, em meio a acontecimentos que levaram o mundo à tensão nuclear da Guerra Fria. O diretor também deixa pistas de que essa é uma realidade paralela à nossa, e que no mundo do filme algumas coisas aconteceram de forma diferente. O melhor exemplo para isso é a parte em que Andy Warhol mostra a sua famosa pintura das Marilyns, mas com um super-herói no lugar da diva. E, é claro, o pôster da terceira candidatura de Nixon em uma das sequências. Tudo isso embalado à "The Times They Are A-Changin'" de Bob Dylan. Ficou perfeito. E olha que eu nem gosto de Bob Dylan.

A melhor sequência de luta do cinema é aquela dos vários Agentes Smith em Matrix Reloaded. Mas ela só vale se você a viu num cinema em 2003. Na época, era o mais perfeito uso de computação gráfica já feito. Hoje os nossos olhos treinados conseguem ver quando era o Neo computadorizado e quando era o Keanu Reeves, mas na época, ah, na época tudo parecia real. Inclusive os golpes, as acrobacias e o Neo correndo nos agentes.Tudo isso numa telona de cinema. Era a prova de que qualquer loucura poderia ser filmada, desde que você tivesse o orçamento necessário. Eu vi tudo com um sorriso de ponta a ponta no rosto.

Os melhores 20 segundos iniciais de uma música são os de French Navy, do Camera Obscura. São a melhor parte. Eles resumem a música inteira. Se você não gostou dos 20 segundos iniciais, desista, você não vai gostar do resto. Agora, os 5 melhores segundos iniciais não são de French Navy, e sim de Blue Moon. Boom-da-bomm-bop-da-deem-da-deem-demm.

A melhor piada da literatura de humor está em O Guia do Mochileiro das Galáxias. Nesse livro, os personagens Arthur Dent e Ford Prefect são capturados por uma nave de alienígenas e estão numa cela, prestes a serem jogados no espaço. Arthur está desesperado. Pergunta: "nós vamos morrer?" Ford diz: "Nós vamos morrer. A não ser... espera, o que é isso?", e corre para um canto da nave. Arthur, esperançoso que o amigo tenha achado uma saída, pergunta: "o que é?". Ford responde: "isso é, isso é... não, esquece, isso não é nada. É, nós vamos morrer". A melhor sequência de humor também está nesse livro e é a sequência da baleia. Quem leu sabe.

A melhor cena drámatica em um filme é a da menininha em Crash. Um comerciante tem a sua loja depredada e e põe a culpa num homem que deveria ter consertado a tranca de sua porta. Ele vai até a casa desse homem com uma arma em punho, buscando vingança. Ao apontar a arma para ele, a filha do homem sai correndo e pula em seu colo. O comerciante se assusta e dispara. A trilha sonora chega ao clímax e por um momento você acha que tudo deu errado. Então, uma surpresa: a menina não tem um arranhão. Como por milagre, a bala sumiu antes de acertá-la. A menina diz para o pai não ter medo, pois ela está protegida. O pai a abraça forte. O comerciante olha para a cena de olhos arregalados e depois caminha para longe, perturbado o com o evento inexplicável. Que depois se explica no filme, mas mesmo assim não tira a força da cena. Não choro nem nunca chorei com um filme, mas confesso que quando vejo Crash sempre fico com um nó na garganta quando chega essa cena.

O melhor fim de música é o de Wet Sand, do Red Hot Chili Peppers. A música vai crescendo durante a sua duração. É calma e tranquila até o verso apoteótico final, onde ganha camadas de som e desemboca, depois do que só pode ser descrito como um rolo violento de bateria, no melhor solo de guitarra de John Frusciante. Mas o melhor solo ainda é o de Hotel California, do Eagles.

O melhor refrão é o de Some Might Say, do Oasis. Mas isso é gosto puramente pessoal. Existem milhares de refrões mais curtos e fáceis de cantar. Esse é enorme e difícil, o contrário do que um refrão padrão deve ser, afinal, é a parte para todo mundo cantar junto. Mas esse, sei lá. É muito bom. Ainda mais se você tenta cantar do jeito do Liam.

A melhor rima também é de Some Might Say: "and my dog's been itchin'/ itchin' in the kitchen once again". Rimar itchin' com kitchen é genial. Soa como se as palavras brincassem no seu ouvido. Itchin' in the kitchen. Experimentem falar. Outra que eu gosto é uma do Bob Marley: "tears in my eyes burn, tears in my eyes burn/ while I'm waiting, while I'm waiting for my turn". Waiting in Vain. Eu sei que o Bob fez umas letras políticas boas, mas foi nessa canção de amor que ele me surpreendeu como letrista. O personagem da música é um homem apaixonado, que espera sem desistir até seu amor ser correspondido. E essa frase ficou na minha cabeça, porque dá a dimensão da espera e da frustração. A repetição de palavras dá a ideia de espera e lentidão, num recurso muito bem usado por Bob Marley. Ou é coisa da minha cabeça, mesmo.

Eu sei que vocês tem uma lista bem melhor que a minha. Fiquem livres para criticar.