segunda-feira, 28 de junho de 2010

Deus e os designers

     Muito mais difícil do que ser um bom físico é ser um bom designer. O bom físico entende das origens do Universo, das macroformações das galáxias, das microleis da matéria e das forças que fazem o mundo girar ao invés de quicar Infinito afora. O bom designer mestra o design. De tudo. Design é provavelmente o universo mais abrangente que existe. Não estamos falando apenas de design de móveis ou roupas ou automóveis, mas também de design de joias, livros, embalagens, interiores, webpages, e, além desses, design gráfico, de brinquedos, videogames, jogos de tabuleiro, armações de óculos...

     Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.

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     Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.

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     Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.

     Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.

     - Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!

     Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.

     - Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.

     - Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.

     Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.

     - Bravo! E o que mais?

     - Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!

     Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.

     - Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!

     - E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.

     Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.

     - Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.

     - Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.

     - Obrigado.

     - Agora a parte chata...

     - Sim.

     - Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...

     - Sim.

     - ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.

    - Então você quer que eu...

    - Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.

     - Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?

     - Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?

     - Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...

     - Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?

     - Não, tudo bem, eu faço...

     - Viu? Ó, pode até deixar a orelha.

     - Ok, ok.

     Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O mundo formal

     O problema é o seguinte: as pessoas se levam a sério demais. Esse é o problema. Vivem suas vidas de forma muito séria. Usam roupas. Eu queria saber quem foi o cara que inventou as roupas. Um burocrata, com certeza. A nudez é informal. Antes, todos vivíamos peladões, na boa, sem ter que corar cada vez que cruzávamos com um conhecido (cruzar, no sentido figurado). Na hora em que os homem resolveram usar roupas (e as mulheres também), acabou-se a informalidade. Antes era tudo pele e ninguém se incomodava, depois surgiu o tecido para separar a nossa pele da dos outros, e a nós também. Não podíamos mais ficar sem roupa, era mal visto. Daí para o uso obrigatório de calças no trabalho foi um pulo.

     Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.

     Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.

     A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.

     - Como vai a vida?

     - Bem, bem. Tá fazendo o quê?

     - Tô estudando Farmácia. E tu?

     - Fazendo cursinho. Puxado?

     - Anrã. E o teu?

     - Também.

     - Faltou mais alguma?

     - Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?

     - Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.

     - Tchau.

     - Tchau.

     São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.

     Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.

     Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.

     - Já disse que não, Adalberto.

     - Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...

     - Continuo dizendo que não.

     - Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.

     - Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?

     - Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...

     - Sei, sei...

     Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.