sexta-feira, 24 de julho de 2009

Na academia

Então, você finalmente tomou vergonha na cara, hein? Finalmente tomou vergonha dessa sua barriga obscena, desse seu corpo em forma de barril e decidiu entrar para uma academia. Parabéns, admitir o problema é o primeiro passo. O quadro pode ser revertido, mas não será moleza. E não estou falando somente dos exercícios: a vida na academia envolve mais do que levantar pesos. Pra começar, você precisa escolher um pacote. As academias de hoje oferecem mais serviços do que alguns celulares.

- Bem-vindo à Academia FullBody, senhor.
- Olá. Eu, eh, me dei conta da minha barriga obscena e resolvi me matricular aqui.
- Sem problemas. O senhor quer optar por um pacote individual ou família?
- Individual, sim.
- De individual temos o pacote Basic, o Basic Plus e o FullBody Special.
- Eh... e qual é a diferença?
- Muito simples senhor, no Basic temos somente treinos orientados, no Basic Plus temos os treinos mais três aulas especializadas, como ioga, pilates e corrida, à sua escolha, e o FullBody Special é o pacote completo, com direito a todas as aulas opcionais.
- Certo. E... qual é o que tem a esteira?
- Todos os pacotes dão direito a usar a esteira.
- Ah, isso. Bom. E... e do melhor pacote para o segundo melhor, eu perco muita coisa?
- Do Basic Plus para o Fullbody Special?
- É, esses aí.
- Senhor, o Basic Plus dá direito a três aulas à sua escolha, enquanto que o FullBody Special é o pacote completo, com direito a todas as aulas da academia.
- Que tipo de aulas?
- Temos corrida, pilates, ioga, boxe...
- Opa, boxe é bom! Esse eu conheço. Então, deixa eu ver se eu entendi...
- Certo.
- Se eu pegar o Fullmetal Special...
- Fullbody Special.
- ...eu tenho todas as opções. Agora, com o outro, eu teria direito a três.
- Corretíssimo senhor.
- Que poderiam ser, por exemplo, boxe, corrida e esteira.
- A esteira está inclusa em todos, senhor.
- Ah é, desculpe.

A sua resistência já começará a ser testada na hora da matrícula:

- Certo, então... qual a diferença de preço entre os pacotes?
- O Basic custa 130 R$ por mês.
- Ai...
- O Basic Plus custa 180 R$.
- Ouch... puf, puf...
- Está bem, senhor?
- Estou, só acho que... está pesado demais pra mim.
- Acho melhor o senhor descansar um pouco.
- Não, não, pode me mandar o próximo, eu aguento mais...
- O Fullbody Special custa 230 R$.
- Ai!
- Foi demais para você?
- Foi. Não aguentei.
- É melhor fazer uma pausa. Vai tomar uma água para recuperar as energias, depois a gente continua.

5 minutos depois:

- Tá certo, tô pronto pra mais.
- Senhor, você também pode montar o seu próprio pacote. A partir do Basic, cada aula adicional custa 25 R$.
- Sério? Por que você não me disse antes? Assim é mais vantajoso pra mim.
- Só se torna vantajoso se você pegar mais que 3 aulas. Senão vale mais a pena se matricular no Basic Plus.
- Sei, sei... então, quais aulas você acha melhor eu pegar?
- Como você é um iniciante, eu diria corrida...
- Sim.
- Power Mix também é uma boa. Trabalha com vários músculos do corpo pouco usados, evitando lesões.
- Anrã. Você parece saber bem das coisas. Que mais eu pego?
- Você considera o seu trabalho uma fonte de stress?
- Ãhn?
- Muita gente que se queixa do trabalho procura as nossas aulas de ioga para relaxar.
- E funciona?
- Olha, não é porque eu trabalho aqui, mas...
- Mas...
- O pessoal que faz ioga aqui disse que sai da aula sentindo pisar em nuvens...
- Oh...

E até o final da conversa ele fará você se matricular até no Ladies Time.

* * *

- Vou tirar as medidas do seu braço. Faça um muque.
- Pronto.
- Não. É pra fazer um muque. Você tem que fazer força.
- Mas eu estou fazendo força!
- Sério? Quer dizer, tudo bem. Agora tire a roupa, por favor.
- Normalmente as pessoas têm que me pagar um jantar antes de me pedir isso, mas pra você eu abro uma exceção. Hehe.

Ao invés de rir junto o examinador dá um sorrisinho malicioso. Você tira a roupa em silêncio.

- Agora encoste na parede. Eu preciso ver se você tem algum problema de postura. Hu-hum, agora de perfil. Certo, agora agache-se um pouco. Um pouco mais...
- Eu acho que assim já é o suficiente.
- Ah. Muito bem, você tem uma leve escoliose, e os ombros levemente voltados para dentro, nada que não possa ser resolvido. Eu vou fazer uma ficha pra você. Passe-a para o seu instrutor e ele saberá o tipo de treino que você precisa.

Ao se vestir você fica com a impressão que o examinador olhou para a sua bunda.

***

Você procura por algum instrutor disponível para montar a sua ficha de exercícios. Bate os olhos numa instrutora muito gata, vinte e poucos anos, com um físico estupendo. Provavelmente cursando fisioterapia ou educação física, e usando seus conhecimentos do corpo humano para trabalhar na academia.

- Você pode usar os seus conhecimentos no meu corpo...
- Oi?
- Ah, quer dizer, oi! Prazer, eu comecei hoje aqui e...
- Não diga mais nada! Você fez a avaliação física?
- Sim.
- E não fez a ficha de treinos?
- Não.
- E está procurando algum instrutor para montá-la pra você, é isso?
- Sim!
- Não há problema! Jorjão, vem cá!

Chega um instrutor que é um armário.

- E aí! Tranquilo?
- Este é o Jorjão. Jorjão, o menino está iniciando agora.
- Saquei. Precisa que montem a ficha, né?
- Ah... é, mas pode ser ela mesmo, não precisa...
- Que nada, rapá! Eu monto pra você em dois toques! Pá, pá!

E a instrutora vai atender uma mulher gorda com problemas na bicicleta. Sem nem se despedir.

- Então, meu bruxo, tem alguma coisa do exame físico que eu deva saber?
- Ah, sim, eu descobri que tenho uma leve escoliose.
- Escoliose... tá certo. Vamos colocar aqui pra você uns exercícios, mas nada demais na lombar. Se você fizer os outros, a situação normaliza e dá pra resolver o problema. Que mais?
- Ombros... ãh, deixa eu ver... era ombros pra dentro...
- Ah, sim! Isso é moleza. Vamos já colocar uns exercícios de costas aqui... uma remada frontal e um triângulo peso dois... mais alguma coisa?
- Acho que é isso.
- Ah, vamos lá, tem que ter mais alguma coisa.
- Ah, sei lá. Às vezes eu tenho umas dores nas costas, aqui, ó.
- Haha, não me faça rir. Vamos colocar uns exercícios para melhorar sua postura. Mais alguma coisa?

Instrutor de academia sabe consertar tudo. Desvio de postura, pés tortos, braços de comprimentos diferentes, é só falar. Eles têm a cura para o câncer. Eles sabem tudo. Na teoria, ao menos. Na prática eu nunca vi ninguém se curar de nada malhando. Você no máximo consegue entrar numa academia com escoliose e sair com uma hérnia de brinde.

***

Muito bem. Matrícula feita, exame físico realizado, plano de exercícios esquematizado. Só falta começar a malhar. Ou não.

- Ei, ei! Vai malhar assim?
- Assim, como?
- Assim, com essa roupa.
- Mas é a melhor que eu tenho!
- Justamente! Você precisa de roupas adequadas para exercício físico.
- Ah, é?
- Ainda bem que nós temos uma loja aqui mesmo no subsolo. A FullBody Shop. Desce ali e dá uma olhada nos nossos trajes especializados.

Você vai e compra um uniforme que parece um pijama de manicômio, mas, segundo a dona da loja, é "ideal para exercícios físicos." Ela é bonitinha, então você não quer contrariá-la, mas as únicas pessoas que você viu com esse tipo de uniforme eram os instrutores e um senhor velhinho fazendo abdominais. As roupas dos outros parecem mais práticas, menos ridículas e bem mais baratas.

Já vestido com o pijama, você volta para o andar da academia. Jorjão não está mais à vista. Você fica meio confuso, sem saber o que fazer. Dá uma olhada na própria ficha e se dá conta que o instrutor explicou pra que serviam todos os exercícios e os músculos envolvidos neles, mas não demonstrou como realizá-los. Sem saber o que fazer, você fica alguns minutos olhando para a própria ficha, como se planejasse detalhadamente a melhor distribuição de exercícios para o seu treino. Ao menos é isso o que vai parecer para quem olhar para você. Você pensa que, parado assim por muito tempo, algum instrutor virá ao seu socorro. Ninguém vêm. E nada do Jorjão. Você vê a instrutora de antes. Ela está parada, olhando para as pessoas se exercitando, à procura de alguém que queira ajuda. Ela não olha para o seu lado. Você pega a sua ficha e vai até ela. Ela está de costas. Você estende a mão para cutucar gentilmente seu ombro e...

- E aí, campeão! Voltei! - diz o Jorjão, surpreendendo-o com um forte tapa nas costas.
- Opa, olha só, nem vi você se aproximar aí. - leia-se: vá se f#$&.
- Foi mal, cara. Tinha umas meninas que pediram para eu ajudar elas no alongamento, e eu acabei esquecendo de você. Já começou o treino?
- Na verdade não. Olha, eu ia começar pela esteira, mas eu não tô achando ela na minha ficha.
- Que tal levantar uns pesos? Vem comigo. Deixa eu ver o quanto eu coloquei pra você na ficha...

O instrutor lhe dá dois pesos cinza-claro e lhe mostra o movimento que você precisa fazer. Três séries de doze repetições, com pausa entre as séries para recuperar o fôlego. Na primeira série, você pensa até em pedir algo mais pesado. Na segunda, muda de ideia.

- Ô amigo! Eu acho que tem algo errado com esses pesos. Eles ficaram mais pesados do nada!
- Haha, pega leve, amigo! Eu disse pra você descansar entre as séries. Você cansou demais os seus braços.

Enquanto reposiciona os pesos no lugar, você vê se aproximar um rato de academia.

RATOS DE ACADEMIA: frequentadores assíduos de academia, reconhecidos pelos músculos salientes, resultado de uma dieta rigorosa de suplemento alimentar e açaí na tigela. E, é claro, musculação todo dia.

- Aí, não vai mais usar esse peso cinza? Me consegue ele que eu tô precisando.
- Ah, sim. Vai fazer uma, como é que se chama... rosca direta, né?
- Quê? Não, eu vou usar o peso para aumentar a carga da máquina de extensão.
- Ah.
- Sabe como é, o peso máximo já tá ficando leve...
- Sei, sei como é. Eu também já estou achando esse peso cinza aí leve, daqui a pouco eu passo para outra cor. Qual é o que você usa? O verde? O azul marinho?
- Ih, cara, já passei da fase dos pesos com cores faz tempo.

E ele aponta para um outro tipo de peso, preto, com grandes anéis nas pontas que parecem bem pesados. Ao menos mais pesados do que o peso azul-marinho. Você pega o peso vermelho para fazer o exercício de ombro e sente que o rato de academia o está observando, rindo às suas costas, enquanto você se esforça para completar as três séries do exercício. É igual à aula de educação física, quando você se humilhava na frente dos seus colegas por não conseguir fazer uma barra. Só que antes você era obrigado. Agora você se humilha por opção.

***

Como pode, dentre todos os usuários da academia, de uma academia de médio porte como a que você se matriculou, não haver uma -UMA! - mulher com menos de quarenta anos malhando no mesmo turno que você? Onde estão as gatinhas saradas do outdoor da academia? Tudo o que você vê são velhas se alongando, fazendo aqueles exercícios com bolas de plástico, que dizem que é ótimo para os glúteos, mas pra você parece se tratar apenas de se mexer prum lado e para o outro, ou, no mínimo, de uma perda de tempo. Vá lá, justiça seja feita, tem uma menina de uns 15 anos, mas uma olhada já bastou para você ver que ela não é gatinha, nem sarada, e você sente que não precisa de uma segunda olhada para confirmar. Há, é claro, a instrutora gata, mas ela pareceu se esquecer da sua existência. O que é estranho, porque você tem a nítida sensação de que, afora ela, todos estão de olho em você e na sua barriga obscena se esforçando para fazer os exercícios mais ridículos.

- Ei, já está indo embora?
- Ah, sim. Acho que para o meu primeiro dia já chega.
- Tá certo, campeão. Até amanhã!
- Ahn, acho que não venho amanhã. Quem sabe semana que vem...
- Ah não! Para o treino adiantar alguma coisa é preciso vir três vezes por semana, no mínimo! Não tem essa de preguiça!
- Três vezes por semana! Espera aí, eu não tenho todo esse tempo pra dedicar à academia! Eu tenho outras coisas, tipo, uma vida!
- Na-na. Sem choradeira. Te vejo amanhã. - diz, em tom de afirmação.

Você sai cabisbaixo, exausto e desiludido. No caminho para casa, você vê uma mulher bonita andando a alguns metros à sua frente olhar para trás. Você sorri, ela faz uma cara de pânico e apressa o passo. Ao passar por uma vitrine, você vê o seu reflexo: totalmente descabelado, com os olhos esbugalhados e com o pijama, você parece um louco fugido do hospício. Você decide parar com a academia. Afinal, uma barriguinha indecente tem lá seus méritos.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Maquiavélico

Há mais coisa por trás da atual crise do Senado do que os olhos desavisados conseguem ver. De um lado, temos uma oposição pressionando a saída de Sarney, cujos escândalos ficaram mais visíveis do que o seu bigode. De outro, Lula e a bancada do PT apoiando a permanência do maranhense. Um petista de, vá lá, vinte anos atrás, que via Lula criticar Sarney quando este é que estava na presidência, se fosse transportado para agora iria achar a situação, no mínimo, confusa. Como assim, Lula apoiando Sarney, mesmo depois de todos esses atos secretos, casos de nepotismo, desvios de dinheiro? Cada dia encontram uma coisa nova. O que talvez geraria uma outra pulga atrás da orelha desse nosso petista viajante do tempo, e me gera certamente, é o ótimo timing com que estão descobrindo essas informações.

Venha comigo. O Sarney é um crápula, corrupto, ladrão e o que mais de adjetivos pejorativos vocês pensarem. E o Lula sabe disso, mas precisa dele do mesmo jeito, afinal, o Sarney, na posição de presidente do Senado, é aliado do governo. Se ele bailar, sobe ao poder o vice presidente do Senado, Marconi Perillo, de oposição ao governo. Tudo o que a oposição precisava era um motivo para derrubar o Sarney e assumir a presidência do Senado, e agora estão descobrindo um por dia. E o timing é ótimo pois estamos chegando perto das eleições de 2010. Lula perderá, de uma vez só, o seu posto de presidente e a governabilidade no Senado. Além de se preocupar em eleger Dilma, vai ter que se preocupar com isso, também. O que fazer? A resposta, é claro, é vestir sua melhor cara de pau.

Ao defender a permanência de Sarney, Lula está sendo maquiavélico, no sentido original da palavra. Ou seja, fazendo o que está no seu alcance para garantir o poder, não importa se isso for eticamente certo ou errado. Afastar Sarney do cargo seria o eticamente certo. Porém, a governabilidade no Senado ficaria ameaçada e todo um plano traçado para a eleição de Dilma teria suas fundações ameaçadas. Lula provavelmente acha Sarney um canalha tanto quanto nós. Mais do que nós, até. Mas política é política, e às vezes é preciso jogar o jogo. Agora, que ele poderia falar menos ele poderia. O Sarney não deve ser julgado como um homem comum? É preciso levar em conta o passado? Ora, Presidente Lula, seja maquiavélico, mas não diga asneiras.

Recesso parlamentar: os senadores entram em férias. E nós, tiramos férias deles.

domingo, 12 de julho de 2009

O Falso Culto

Ah, não poderia esquecer de falar no Falso Culto. O taxista, apesar de parecer sempre saber de tudo, não é um Falso Culto. Ele é o primeiro a confessar que não é culto, no máximo bem informado. O Falso Culto verdadeiro paga de inteligente, obviamente muito mais inteligente do que você. Ele já leu de tudo, o Falso Culto. Os clássicos e os contemporâneos. Sabe tudo sobre política, cultura, artes, a situação econômica mundial. E não cansa de lembrar todo mundo disso, sempre que pode. Mas na verdade...
Na verdade o Falso Culto não sabe de nada. Ou melhor, sabe de tudo, só que mais ou menos. Ele sabe "de quase tudo um pouco, e quase tudo mal", igual a aquela música do Kid Abelha. Os livros que ele tanto cita ele no máximo leu o resumo da contracapa. Você começa a notar a farsa do Falso Culto quando ele fala sobre Hemingway mas pronuncia "Remínguei." Todas aquelas coisas que ele fala, é apenas um bom talento para a enrolação. Não se intimide com o Falso Culto: jogue o jogo dele, quando ele começar a falar como quem sabe de tudo contra-argumente no mesmo nível gramatical. Não se preocupe se você não souber sobre o que está falando, ele também não vai saber. Mas vai fingir que sabe. E é questão de tempo até ele se enrolar. Abaixo transcrevo mais ou menos um diálogo que tive, certo dia, com um Falso Culto:

- Eu não acho que, como dizem por aí, o cinema brasileiro está melhorando de qualidade atualmente. - diz o Falso Culto.

- Anrã.

- Quer dizer, obviamente temos as pornochanchadas dos anos 70 para sujar o passado do nosso cinema, mas o investimento antigamente era maior, e a preocupação estilística com o fenômeno da cultura brasileira foram deveras importante para a identidade do nosso cinema. Obviamente a tentativa era criar um sentimento de ufanismo, consequência talvez de um governo varguista. Mas, é claro, só estou divagando alto. - Opa. Ele começou falando dos anos 70 e depois falou de Vargas como se fosse da mesma época. Identifiquei na hora o Falso Culto. Não recuei.

- Sim. Mas o cinema brasileiro agora não estaria ficando mais inteligente, menos apelativo, talvez?

- Possivelmente, meu caro. Talvez porque o público que antes assistia às pornochanchadas agora se direcionou para o mercado de filmes pornôs, que substitui as pornochanchadas de antigamente por filmes como Brasileirinhas, como...

Ele está citando Brasileirinhas numa discussão sobre cinema. É agora! É a hora de desmascará-lo. Não o fiz. O Falso Culto é feliz como é, consegue admiração e chega longe com a sua falsa cultura. Mas no fundo não prejudica a ninguém. Melhor deixar estar.

Saber mais ou menos

Saber mais ou menos é um perigo. Sempre procurem saber mais, crianças. Ou menos: é preferível não saber nada de um determinado tópico do que saber mais ou menos sobre ele. Muito mal já foi feito, muitos enganos graves já foram cometidos, por causa do conhecimento incompleto. O conhecimento meia-boca. Aquilo de ter uma ideia meio por cima, mas não saber direito, o negócio do "me contaram algo assim" ou "ouvi não sei onde que parece que talvez tenha acontecido tal coisa." Isso é perigosíssimo. E o pior é que se espalha. Quem não sabe direito da informação adora passá-la adiante. Informação incompleta se alastra como vírus. Quando ouvir uma frase iniciada com "eu não sei ao certo, mas parece que", tape os ouvidos.

A seguir, situações clássicas de saber mais ou menos:

"não te preocupe, vou te dar carona. Eu sei mais ou menos o caminho para o shopping."
(significa que o indivíduo não sabe exatamente como chegar ao shopping, mas tem uma ideia vaga que, para ele, é o bastante para, eventualmente, chegar lá, e por isso não vai achar que precisa pedir por direções na rua. Não encorage o conhecimento incompleto. Pegue um táxi.)

"Brrazil, sim, eu saberr sobrre Brrazil. É und linda país, com lindo frorresta e lindos mulherres, prrincipalmente na carrnaval, quando todos andam pelados nos ruas durrante as quatrro meses de durraçón do festa. Prrentendo viajarr un dia prra lá, mas parra isso prrimeirro querro aperrfeiçoarr mein espanhol."
(o saber mais ou menos afeta a todos, independente da nação.)

Pensando bem, risquem o conselho dado no exemplo 1, de chamar um táxi. Taxistas são os maiores conhecedores pela metade que existem no mundo, juntamente com os porteiros de prédios. Tome especial cuidado com as teorias. Ah, sim, as teorias. Taxista sempre tem teoria. Eles sabem quem matou o Kennedy. O Michael Jackson, morto? Pff, Não me faça rir. Vivo e livre das dívidas, possivelmente morando na mesma ilha do Elvis. É incrível como eles costuram teses com fragmentos de informações incompletas. Desconfio que eles trocam conhecimentos entre si, formando uma extensa rede de intercâmbio de informações. Depois, disseminam-as entre seus clientes, que acabam recebendo uma informação de, no mínimo, terceira mão. E deve ter porteiro envolvido, também.

-pois é, viste que coisa esta gripe suína! Já contaminou meia Argentina, agora já tá matando gente aqui no sul. Acho que são os hermanos que tão passando a gripe pra gente, hein? - teoriza o porteiro do prédio onde mora o taxista para este.

- viste que a Argentina tá passando a tal de febre suína pra gente? Tá vindo da Argentina e entrando no Rio Grande do Sul. Parece que toda a Argentina já tá contaminada, agora quando eles vierem no verão pras nossas praias já viu né? O negócio toma conta do estado. Olha, se eu fosse presidente, até já estaria pensando em um jeito de barrar a entrada deles - comenta o taxista para um amigo, também taxista.

- e essa febre suína de agora, parece que pra impedir que chegue da Argentina pro Brasil o governo vai proibir que os argentinos venham nas nossas praias no verão. Vai dar briga, isso aí. - comenta, com autoridade, o taxista para um cliente. O que deixa este com a incômoda sensação de que um conflito geopolítico está se armando e que ele anda desinformado.

domingo, 5 de julho de 2009

O ladrão de diários

Começou por acaso. A mãe do menino estava recolhendo livros na vizinhança para doar a bibliotecas de escolas. No meio dos livros doados, havia muita porcaria: revistas velhas, álbuns de figurinhas, livros com páginas faltando. A mãe encarregou o filho de separar o joio do trigo. O garoto fazia a tarefa indiferente. Machado de Assis, separa. Revista Veja dos anos 90, lixo. Uma edição de um Júlio Verne sem capa, com as folhas caindo e sem as últimas páginas, lixo. Revista de sacanagem, separa (para o garoto, claro). No meio de uma das pilhas de livros, o menino acha um caderno rosa. Possivelmente lixo. Abre a primeira página. "Querido diário," estava escrito, "sei que eu já passei da idade de escrever diários, mas anda acontecendo muita coisa na minha vida. Eu sinto que preciso desabafar, nem que seja escrevendo." O menino continua lendo. "Hoje o Planta passou aqui em casa. Ele é lindo. Estou apaixonada por ele. Eu queria que ele me visse como mais que uma amiga. Fico meio tímida de dizer qualquer coisa. Ficamos só conversando, nem lembro sobre o quê. Só prestava atenção no rostinho lindo dele. Amanhã vou começar a dar algumas indiretas. De sua confidente, Clarissa." Antes de continuar seu trabalho, o menino colocou o caderno na terceira pilha, junto com a revista de sacanagem.
Mais tarde, antes de dormir, ele pega o caderno e dá uma lida. A mulher que escrevia no diário, Clarissa, tinha, pelo que dá pra entender, uns 17 anos. Todos os dias ela escrevia alguma coisa sobre o tal do Planta, que, o menino descobre na página do dia 23 de agosto, ela conheceu por meio de um outro amigo, e se apaixonou imediatamente. A única que sabia disso era a sua amiga, Sofia, que era descrita como uma pessoa de confiança, apesar de às vezes "falar demais", e seu cachorro, o Tchuca, com quem ela desabafa quando não tem ninguém pra ouví-la. A tal Clarissa parecia ter uma certa falta de auto-estima, e uma necessidade crônica de ser amada. Sem dúvida, daria uma personagem muito interessante em um romance.

A mãe do menino, uma entusiasta da leitura, compra um livro por mês para o filho. Ele normalmente os lê com interesse, mas desde que achou o diário eles têm perdido a graça. O diário é muito mais interessante. O diário contém personagens tridimensionais, complexos. A narrativa é totalmente imprevisível: às vezes é repetitiva, às vezes acontece algo totalmente fora do esperado, que pega o leitor de surpresa. Os personagens coadjuvantes são tão bem trabalhados quanto a personagem principal, e o universo que os cerca é rico e totalmente crível. Há alguns erros de português, prova de uma revisão de texto pobre, mas nada que atrapalhe a leitura. Perto do diário, os outros livros parecem ensaios amadores de gente sem criatividade. O menino chega no clímax da história: em 2 de outubro, a turma de Clarissa vai passar uma tarde na casa do Planta. Planta pede para que Clarissa pegue alguma coisa no quarto dele, ela não se lembrava mais o quê quando escreveu. Ao entrar lá, Clarissa acha uma camisinha usada na cama do Planta! Logo agora, que parecia que eles iam ficar juntos. Ela volta à sala, quase chorando, e diz que precisa ir embora. Os outros dias são bastante depressivos. Parece que o acontecido foi um golpe e tanto para a personagem, que provavelmente entra em depressão. Que história!
Uma hora as páginas do diário acabam. Mas como assim? A história não acabou! O menino tenta se conformar voltando a ler livros normais, mas não consegue. Ler diários é viciante, é o ápice da literatura, é o romance de não-ficção, é a vida imitando a vida. Ele precisa de mais. Começa a vasculhar as bolsas de suas colegas, quando elas estão no recreio. Não acha nada. Consegue cópias de chaves das salas de aula de outras turmas e as invade quando os alunos saem para o intervalo. Acaba encontrando dois diários. Vai para o xerox da escola e tira cópias das páginas. Depois, devolve os diários para os seus respectivos lugares. Assim, o crime não tem como ser descoberto, e isso permite que as autoras continuem escrevendo sobre suas vidas. Repete a ação uma vez por semana. Não consegue se segurar e sempre lê tudo no mesmo dia em que tira as cópias. Assim, fica esperando até as autoras escreverem material suficiente para ele roubar.
O menino não gosta de esperar, então procura por mais diários, em outros lugares: cursos de inglês, academias, qualquer estabelecimento onde as pessoas precisem deixar seus bens em algum lugar momentaneamente. Bola um sistema de rodízio: segundas-feiras pega os diários do lugar A, terças-feiras do lugar B, e assim por diante. Assim, tem leitura para todos os dias da semana. Nem sempre há um xerox por perto, o que obriga o menino a ler o diário no local, podendo ser pego em flagrante a qualquer momento pelo dono. Mas para o menino não há problema: a adrenalina deixa a leitura mais emocionante.

Certo dia, acha um diário novo no armário da academia que frequenta. Empolgado como sempre se sente ao fazer uma nova descoberta, abre rapidamente a primeira página. Reconhece a letra de algum lugar. Mais à frente descobre ser de Clarissa. Ela comprou um novo diário. O menino lê, o coração disparando. Ela parece estar furiosa. Descobriu que a Sofia e o Planta estão ficando. Logo a Sofia, que era sua melhor amiga. Logo a Sofia, que era a única que sabia o quanto ela amava o Planta. "Semana que vem os pais da Sofia irão viajar," estava escrito na página mais recente. "Eu tenho certeza que, com a casa vazia, a vadia vai chamar o Planta. Eu já comprei a arma. Duas balas, é tudo o que eu preciso pra acabar com a vida daqueles desgraçados." O menino fechou o diário, e ficou olhando para o nada por alguns segundo. Mais tarde no dia, chamou o seu amigo, o Boca, pra conversar. Contou toda a história pra ele: os diários roubados, a Clarissa, o plano de assassinato. Boca estava pasmo. Deviam avisar a polícia o mais rápido possível.
- Avisar a polícia?! É claro que não! - exclamou o menino.
- Como assim? - surpreendeu-se o Boca. - a gente sabe o dia exato do crime, a gente sabe que a assassina faz academia no mesmo lugar que você, se a gente perguntar por uma Clarissa lá a gente vai saber exatamente quem é... temos tudo pra pegar ela antes que ela mate os dois!
- Boca, claro que não! Quer dizer, temos tudo pra pegar ela sim, mas não vamos.
- Mas por que não?
- Você está louco? Você quer mexer na história mais perfeita da literatura deste século? No livro mais perfeito que eu já li na minha vida? E logo agora, que chegou na melhor parte?
- Mas, cara... é um diário!
- Nananão. É literatura. E das boas.
- Mas não pode ficar assim!
- Senta, Boca. Você não vai a lugar nenhum.
- Mas, mas...
- Senta, Boca. E deixa eu aproveitar e te recomendar umas coisas que eu andei lendo... Você já leu Juliana dos Santos? É ótima, extremamente realista, você tem que ver as descrições do sexo, muito boas... e Regina Becker? Naturalista ao extremo. Muito bom. E tem essa aqui, assina como Julinha... é boa também, meio bobinha e tal, mas também tem a Sônia Duarte que...

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Zagueiro

Estavam todos putos com o Edson. Não que o Edson fosse má pessoa, mas sim porque ele estava prestes a largar a Vanessa. A Vanessa era uma boa menina. Uma menina boa, se vocês me entendem. Toda boa. Seus um e setenta e cinco de pura beleza ofuscavam facilmente os um e setenta de Edson. Ninguém acreditou quando ela aceitou namorar com ele. E ninguém acreditou quando o Edson disse, naquela mesa de bar, só com os amigos mais íntimos, que ele iria largá-la.

- Eu não acredito. - Disse o Téo, esfregando o rosto com uma mão.

- Surreal - sentenciou o Jorge.

- ... - murmurou o Silva. O Silva não falava muito. Quando o assunto era mulher, simplesmente ouvia o que os outros diziam. Quando questionado a respeito, esfregava o queixo pensativamente e depois normalmente dizia "é, eu comia."

- Pois é. - explicou o Edson - Descobri que a Vanessa não é a mulher certa para mim.

- Como assim, não é a mulher certa? - Jorge perguntava visivelmente irritado. - ela é linda, inteligente, loira, interessante, tem umas pernas que até Deus duvida...

- Eu sei, eu sei, mas ela não é o meu tipo. Isso é um problema.

- Sabe o que é um problema? Eu estou com uma alergia nas costas já faz duas semanas. Bem no meio das costas, naquele ponto que não dá pra coçar. Quer trocar de problemas comigo? Eu adoraria ter os seus problemas.

- Vocês não entendem, caras. A mina é muito grande... sei lá, eu me sinto baixinho perto dela. Eu me sinto a mulher da relação. É estranho demais. Vocês sabem que eu gosto das "pequenininhas"...

Todos sabiam. O Edson tinha um tipo de mulher ideal que ele chamava de "as pequenininhas." Ele não cansava de falar nas características que definiam uma mulher como uma "pequenininha." Jorge e Téo começaram a enumerá-las:

- Ah, as pequenininhas... - começou Téo, com voz de gozação.

- Elas são engraçadinhas... - continuou Jorge no mesmo tom.

- Elas são magrinhas, delicadinhas...

- Elas são tão bonitinhas, com um ar de frágeis...

- Elas precisam ser cuidadas...

- Ah, elas são tão carinhosinhas!

- Pois é! - disse o Edson - e a Vanessa não é nada disso! Ela é um mulherão! Ela não é magrinha nem fragilzinha! Eu é que me sinto frágil perto dela. Com todo aquele tamanho... sei lá, é demais pra mim.

Os outros continuaram não entendendo como o Edson podia estar dispensando a Vanessa. Edson tentava explicar, mas não fazia os outros entenderem.

- Ela é boa, é claro. Isso eu não nego. Mas não é pra mim. Ela não combina comigo. É como, sei lá, se eu fosse um técnico de futebol e eu tivesse dois jogadores bons pra jogar na mesma posição. É uma coisa boa por um lado mas é ruim por outro.

Pela primeira vez, o Silva se manifestou:

- Não. O correto seria dizer que você tem um ótimo zagueiro, só que pra jogar no ataque.

Edson concordou. Era a explicação perfeita. Ter um zagueiro habilidoso, só que pra jogar numa posição que não é dele. O zagueiro estava sendo mal aproveitado. O zagueiro, por melhor que fosse, não servia e nunca poderia servir para aquilo. Aquela não era a função do zagueiro. Os outros entendiam, agora? Os outros entendiam. O exemplo foi extremamente feliz. Edson se surpreendeu de o Silva, logo o Silva, ter sido o que melhor entendeu a sua situação. Talvez, por trás daquele jeito caladão dele, estivesse uma pessoa esperta, que analisasse bem as situações ao seu redor. Uma pessoa que esperasse sintetizar totalmente o acontecido para, somente depois, se posicionar sobre o assunto. Quem sabe ele soubesse o que Edson deveria fazer. Não custava perguntar.

- Então, Silva, o que você acha?

- Hum?

- Da Vanessa. O que você acha?

O Silva ergueu seu copo de cerveja e tomou um gole. Depois, recolocou-o na mesa e coçou o queixo enquanto ponderava, antes de dar a sua declaração:

- A Vanessa... é, a Vanessa eu comia.