quinta-feira, 22 de julho de 2010

A ocorrência

     - Muito bem, pode relatar o que aconteceu.

     - Bom, o assalto foi ontem à tarde. Eu estava fazendo meu cooper...

     - Espera, espera. Que horas foi o assalto?

     - Às quatro e meia, quase cinco.

    - "Cidadão foi assaltado às 5 horas da tarde de 22/06/2010". Na rua...?

     - Na verdade foi na esquina da Torquato Jr. com a Marilene Silva.

    - "na esquina da Rua Torquato Júnior com a Marilene Silva.".

     - Isso. Ãh... só que Júnior é abreviado. Fica jota-erre.

     - Como? Assim?

     - É. Jota-erre. E ponto. E ali no horário também não se escreve assim. É cinco-agá. Cinco, o numeral.

     - Tá bom, tá bom.

     - Foi mal. É que eu sou escritor.

      - Tudo bem.

      - Sabe, fico pescando os erros.

     - Certo. Então, o que você disse que estava fazendo?

     - Estava correndo, fazendo o meu cooper.

     - "O cidadão estava correndo para se exercitar."

     - Não, não. Põe cooper, mesmo. É mais curto e eficiente.

     - Tá.

     - Na escrita, menos é sempre mais.

     - Entendi. Você estava lá, fazendo o seu cooper. Aí chegou o ladrão?

     - Isso.

     - Chegou como? Já abordou você direto, com arma e tudo?

     - Não, fingiu que queria só saber as horas. Quando eu parei para lhe informar corretamente, ele grudou em mim e disse que tinha uma faca, e que ia me furar com ela se eu não passasse a minha carteira e celular.

      - "O ladrão abordou o cidadão pedindo as horas e depois disse que era um assalto. O ladrão disse que tinha uma faca e que iria furar o cidadão se ele não entregasse a carteira e o celular.". É isso?

     - É.

     - Quer corrigir alguma coisa?

     - Não. Bem, é que...

     - O que é?

     - Não, deixa. Você vai me achar um chato.

     - Fala.

     - Não, é que você usou "ladrão" duas vezes seguidas. Não é bom repetir palavras. Sabe, fica feio pra quem lê.

     - O que eu faço?

     - Tenta pôr "meliante" no lugar do segundo "ladrão".

     - "O meliante disse que tinha uma faca e que ia furar o cidadão se ele não..."

     - Quer saber? Só coloca "ele". Está se referindo ao sujeito da última frase. O leitor irá entender.

     - "Ele disse que tinha uma faca...". Ok, ok. Mais alguma coisa?

     - Deixa eu ler. Ãh... É, a frase está meio mal construída. Reescreve assim: "Ele ameaçou furar o cidadão com uma faca caso este não entregasse a carteira e o celular".

     - "...Carteira e celular.". Pronto. E depois?

     - Depois eu passei as minhas posses e ele fugiu.

     - Como? Saiu andando para onde?

     - Desceu a Torquato Jr. e disse para eu seguir o meu caminho.

     - "Depois de pegar a carteira e o celular do cidadão, o ladrão..."

     - Já usamos ladrão. Bota "larápio".

     - "...O larápio disse para o cidadão seguir o seu caminho e desceu a Torquato Júnior.".

    - Júnior é jota-erre. E bota um "então" antes do "desceu".

    - Como era o ladrão?

    - Tipo, mais ou menos da minha altura, mas mais forte, tinha uma barba rala, pele negra...

     - "O assaltante..."

     - Isso. Boa.

     - "...Tem uma altura de mais ou menos um metro e setenta, é negro e..."

     - Não, não... quer saber? Deixa que eu escrevo.

     - O quê?!

     - Me dá licença? Assim... isso. Ó, a barba rala é uma coisa da aparência que pode ser mudada, já a altura e a cor não. É melhor colocar ela em uma frase separada do resto. Assim: "O assaltante é um negro de cerca de 1,70m. Tem a cabeça raspada e uma barba rala. É forte: sua estrutura corporal avantajada compensa o relativo pouco tamanho.". Mais alguma coisa?

     - Hein?

     - Tenho que colocar mais alguma informação?

     - Não. Assim já está bom.

     - E as roupas? Eu não falo das roupas?

     - Não é necessário, eles mudam de roupa todos os assaltos...

     - Ah, qual é? Como o personagem vai ficar crível sem uma descrição decente de aparência? Vou botar assim: "Trajava um casaco da Adidas preto, possivelmente falsificado, e uma calça de abrigo da mesma cor. Seus tênis eram velhos Kichutes desbotados como o brilho fosco de seus olhos. Sua expressão era terrível; sua voz, socos em forma de som.". Pronto. Acho que é isso. Relê tudo aí.

     - Ãhn...

     - Acho que está bom, né? Bom, agora é só salvar e botar no arquivo. Próximo!

     - Ei, você não pode...

     - Olá rapaz, o que houve?

     - Oi. Eu fui assaltado ontem...

     - Foi quando? De dia ou de noite?

     - De noite.

     - "Era uma noite sombria, na qual transitava, incauto, o nosso protagonista. Mal sabia ele que..."

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Nojento

     O Zeca era chato. Pra caramba.

     - Zeca, dá um gole da sua Coca?

     - Não.

     - Por quê?

     - Você vai beber do bico e vai babar tudo.

     - Cara, você é chato. Pra caramba. Ao menos dá o restinho.

     - Vou pensar.

     Não adiantava os amigos chamarem o Zeca de afrescalhado, ele dizia que era mesmo. Assim:

     - Afrescalhado? Sou mesmo.

     E tomava outro gole de sua Coca. Sem dividir.

     Não parava por aí. Pra tocar em tudo na casa do Zeca tinha que se lavar as mãos primeiro: nos livros, no controle do videogame, no computador.

     - No computador, Zeca?

     - No computador, sim. Sabe quantas bactérias ficam alojadas nas teclas por causa de mãos sujas? Sabe quantas?

     O Zeca sabia. E dá-lhe estatísticas pra cima das visitas, que se sentiam menos inclinadas a visitá-lo outras vezes.

     Mas o Zeca gostava muito de uma menina, a Lia. Não só ele; todo mundo desejava a Lia para si. A Lia era uma deusa. Longos cabelos lisos e loiros, longas pernas, longos cílios protegendo olhos loucamente verdes. Talvez não dê pra usar o adjetivo "loucamente" nesse caso, mas é o que melhor cabe. Os olhos de Lia eram loucamente verdes e deixavam os outros loucos. Isso e o conjunto da obra, claro.

     O Téo era um que sonhava constantemente com os olhos da Lia:

     - A, a Lia... por ela eu faria tudo. Me casava, contraía matrimônio, jurava eterna lealdade, deixava de ver o próximo filme do Batman...

     - Eu também. Faria qualquer coisa. - disse o Zeca.

     - Sério? Até dividir a mesma Coca comigo? No bico?

     - Argh!

     Mas aconteceu o seguinte: o Zeca descobriu que a Lia tinha mania de limpeza. Lavava as mãos pra tudo e não dividia canudinho. Chegou à conclusão de que ela era a mulher perfeita pra ele. Assim:

     - Ela é a mulher perfeita pra mim!

     E começou a conversar com a Lia todos os dias. Os amigos observavam os dois, pensando em como a Lia suportava o Zeca. Mas a verdade é que a Lia se identificava com ele. Por isso, foi dando abertura pro Zeca, até que um dia disse a seguinte frase:

     - Ai, Zeca... nunca achei alguém que me entendesse tão bem como você!

     Esse foi o sinal que Zeca esperava. Ao voltar pra casa, passou a noite pensando em tudo o que diria pra Lia no dia seguinte. Diria que estivera sempre à procura de alguém como ela, e que agora não a deixaria escapar. Prometeria amor eterno, confiança, fidelidade. E realmente, no dia seguinte, disse tudo isso.

     - ...E agora que eu te achei, Lia, não vou te deixar escapar de jeito nenhum! - Finalizou.

     Lia estava emocionada. Estava torcendo para que um dia ele lhe dissesse essas coisas. Aceitou. Se abraçaram. Ela olhou nos olhos dele e ele nos olhos loucamente verdes dela. Fez carícias no seu cabelo. Ele encostou seu rosto no dela. Podiam sentir a respiração um do outro. Zeca foi deslizando o rosto, aproximando sua boca da de Lia. Lia foi deslizando o corpo para longe de Zeca. Zeca não entendeu.

     - Ai, não Zeca...

     Zeca continuou não entendendo. Ela explicou:

     - Não gosto de beijo.

     E voltou a lhe abraçar, como se nada tivesse acontecido. Zeca não a abraçou. Repetiu o que ela disse:

     - Você... não gosta de beijo.

     - É, bobinho.

     - Beijo assim, tipo, beijo, beijo de língua.

     - Isso. Ui. É nojento.

     - Como assim, nojento?

     - Como assim o quê? A gente misturar salivas, eu deixar a língua de outro entrar na minha boca, eu - argh! - botar a minha língua na boca de outra pessoa, encostá-la nos dentes de outro, vai saber se acho um pedaço de comida? Iiuh, pra mim não, obrigada.

    E continuou abraçando-o. Zeca demorou um pouco pra se ligar que tinha que abraçá-la, também. Fez isso lentamente, como se não soubesse exatamente o que tinha entre os braços. E o pior foi isso: depois de uns minutos abraçados, Lia falou sussurrando em seu ouvido:

     - E não se preocupa, quem não vai te deixar escapar de jeito nenhum sou eu...

     ***

     Zeca encontrou os amigos mais tarde, no bar. Todos fizeram uma festa quando ele entrou: cantaram alto, se levantaram para abraçá-lo, parabenizaram-no.

     - Foi o Tadeu quem contou - explicou o Téo - viu você e a Lia no maior love hoje...

     - Sacana de sorte, hein? Vai ter tudo aquilo pra ti, magrão! - disse o Tadeu.

     Entre vivas e cantos, o Zeca sentou na mesa muito quieto. Ouvia os amigos ao longe, comentando como queriam estar no lugar do Zeca, que ele era um privilegiado, o que não fariam por uma noite com a Lia... meu Deus, pensou Zeca, se a Lia achava beijar nojento, o que dizer então de...

     O Zeca pegou a Coca que o Téo estava bebendo e tomou um gole. Do bico. O Téo olhou pra ele surpreso. E o Zeca disse uma frase que o Téo na hora não entendeu:

     - Já que essa é a única saliva que eu vou poder compartilhar...

     E ficou de cara amarrada pelo resto da noite.