quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No restaurante

O homem estava sentado numa mesa de um restaurante fino, com uma taça de vinho na mão. Ele sacudiu o vinho na taça, sem olhar para o líquido. Seu olhar estava no infinito. Disse:

- A História é apenas uma versão da História.

O garçom que estava próximo não escutara direito.

- Como?

- A História é apenas uma versão da História.

O garçom bufou.

- Sei...

O homem continuou girando o líquido róseo dentro de sua taça, encarando-a firmemente. Disse:

- A vida parece muito com uma taça de vinho: embriaga, traz felicidade, mas no final vira um copo vazio. E dá azia.

O garçom nada comentou. Os cantos da boca do homem levantaram-se levemente, divertidos com a própria tirada. Ele bebeu um gole do vinho e passou a admirar a vista do restaurante. Talvez seja importante mencionar que o restaurante tinha uma vista lindíssima que dava para a parte nobre de uma cidade lindíssima, mas com um custo de vida muito alto, o que fazia o custo do restaurante ser alto também. O homem que agora estava admirando a cidade trajava um terno branco e tinha um bigode fino do tipo que, caso não esteja acompanhado do terno branco correto, corre o risco de ser muito brega.

- Dizem que a beleza é menor que a honra, por ser efêmera. Não seria a honra de todo homem tão efêmera quanto a beleza?

O garçom evitou responder a pergunta, que ele sabia ser retórica. Até porque o homem não estava falando com ninguém em especial. Talvez com o vinho. Ao invés disso, retrucou:

- Claro, e quem sabe o senhor não pede um prato do nosso cardápio para acompanhar a filosofia barata?

O homem deu um risinho, mas continuou falando para a sua taça:

- A humanidade está perdida em ódio e impaciência. Por outro lado, por que será que ninguém se impacienta com a espera da morte?

O garçom se irritou:

- O quê? Olha só, senhor, você vem todo o dia aqui no nosso restaurante, pede uma taça de vinho e fica horas aí rodopiando a sua bebida e falando frases pseudointeligentes, que não significam nada! Eu não sei se você acha que engana alguém com esse falso ar de personagem existencialista de romance europeu, mas o meu trabalho aqui é servir os clientes e não ficar ouvindo baboseiras!

- Sabe por que os ocidentais são um povo triste? Porque perderam o contato com o barro - continuou o homem, ainda sem encarar o garçom - o barro, é claro, é ilusório; o homem, uma falácia. O barro é a falácia da falácia.

- O que raios isso significa?

- Voulez-vous couché avec moi, ce soir. Voulez-vous couché avec moi.

- Isso é a letra de Lady Marmalade! Você não pode achar que disse uma coisa inteligente só porque é em francês!

O homem agarrou o garçom pela lapela e encarou-o, com ódio. Disse:

- Quem guardará os guardiões? Quem guardará os guardiões!

- Essa frase não é sua, é do poeta grego Juvenal! Sua farsa! Pensa que pode me subestimar só porque sou um garçom? Pensa que essa sua pose, essas suas tiradas e esse seu vinho enganam alguém?

O homem soltou o garçom e atirou-se na cadeira, entediado. Falou:

- Os que se julgam fortes precisavam primeiro derrotar suas fraquezas...

- Outra frase que não significa nada! Eu sei o que você está fazendo! Está inventando frases que parecem profundas, mas que se você ver bem de perto não significam nada! Acha que engana alguém, seu charlatão? Acha que basta um punhado de frases de efeito para virar um intelectual? Acha que...

Nisso aproxima-se uma mulher, vestido vermelho, cabelo loiro e curvas estonteantes, e interrompe o discurso do garçom ao chamar a atenção do homem de bigode:

- Com licença... Aquela sua frase, dos fortes que precisam derrotar suas fraquezas... O que quer dizer?

O homem dá um sorriso blasé, atira-se para trás na cadeira e cruza as pernas com muito charme.

- O que são pedidos de explicações senão um jeito de adiar outras perguntas?

O garçom faz um ruído de desprezo.

- Nossa... isso é Nietzche? - pergunta a mulher ao homem. Ele sorri.

- Os pensadores são apenas aqueles que pensaram primeiro.

A mulher fica boquiabera.

- Uau... Se importa se eu me sentar?

O garçom fica boquiaberto. Pelo resto da noite os olhos da mulher não desgrudam da boca do homem, que continua desferido vários pequenos pensamentos em sequência. A mulher acompanha tudo muito interessada e pergunta se o homem não quer continuar a explanação na sua casa. Na saída o homem sente que alguém o cutucou: vira-se e dá com o garçom, com uma caneta e um bloco de notas em punho e um sorriso muito conciliador no rosto.

- Com licença... aquela sua frase da História ser a versão da História, como é que era mesmo?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sem pé, com cabeça

Tem uma banda chamada Hotel Santa Clara da qual gosto muito. Eles são daqui de Porto Alegre mas fazem um som em inglês, que chamam de twee-pop, um estilo de folk/pop britânico. Só que o som deles é muito melhor do que o fabricado em terras bretãs. Não que eu seja ou não um fã da música britânica, mas é que eles são muito bons. Mesmo.

Lá por 2009 eles postaram várias músicas apaixonantes no Myspace. Descobri-os através da minha irmã, que me mostrou um clipe de uma música, chamada Hopefully Foolness, e eu pirei. Depois achei outras músicas, Witty Song, Fitting Silhouettes, Cold as Your Heart, boa, linda, ótima. Apesar das gravações serem demos, a qualidade musical do grupo era inegável. Eles têm um vocalista muito bom que, apesar de não cantar em todas as músicas, tem voz, pronúncia e timbre invejáveis para qualquer banda, nacional ou internacional.

A Hotel Santa Clara é uma big band, ou seja, tem músico a dar com pau: tecladista, trompetista, violinista, três vocalistas e o combo guitarras-baixo-bateria. Não esqueço até hoje um show deles em 2009, o único que assisti: eu, minha irmã e o então namorado dela, num estabelecimento que mais parecia uma casa, sem palco. A banda tocava no nível da plateia. Era a noite inaugural da Tweepopnight, a primeira festa de twee-pop de Porto Alegre. A sala onde seria realizado o show era pequena, e parecia ainda menor pelo fato de haver uma cortina tapando metade dela. O show começou com dois membros do HSC tocando uma música acústica, bonita, mas simples, à frente da cortina. Só que, perto do final da canção... BAM! As cortinas caem e revelam, além de todo o resto da banda, um palco decorado com nuvens de cartolina, charmosamente simples. Todos os instrumentistas se juntam à música numa orgia sonora. É de deixar qualquer um extasiado. Inesquecível. Lá jurei meus votos de fã, e a minha irmã comprou um bottom escrito I (coração) HSC.

No mesmo 2009 eles anunciaram um CD por vir, e eu me beliscava de antecipação. A cena musical da época era favorável ao lançamento: Mallu Magalhães estava em alta fazendo músicas em inglês no Brasil, então o público estava pronto para receber propostas similares. Talvez, quem sabe, eles fizessem barulho no país inteiro? Talento eles tinham. Competência sonora, mais ainda. Com uma boa divulgação eles chegariam longe. Só que...

Só que não aconteceu. Porque a banda acabou.

Uns poucos meses antes do lançamento oficial do cd, a Hotel Santa Clara fechou as portas. Do nada. Num dia estavam postando notícias das gravações no Twitter, no outro não estavam mais juntos. Foi abrupto desse jeito.

Fiquei meio sem entender. Pensei que ia ser um tempo, só, mas o tempo foi passando, passando, e nada. Aí caiu a ficha que eles acabaram mesmo. E caiu a segunda ficha, que não haveria cd. Que aquelas demos, uma amostra do que a banda seria, eram o que de mais oficial restara. Até hoje escuto as músicas, mas me sinto estranho. Ninguém as conhece, por melhores que sejam. Não há ninguém que possa conversar comigo sobre elas. As próprias pessoas que as comporam já seguiram em frente e deixaram suas criações à própria sorte, melodias abandonadas no deserto da internet, para algum explorador encontrar por acidente.

Fiz todo esse preâmbulo para falar que a vida não segue uma cronologia lógica como um filme, com começo, meio e fim. Nem precisa necessariamente ser sem pé nem cabeça: pode ter pé e não ter cabeça, ou ter cabeça sem pé. Pode ser uma coisa com total sentido, de total importância, que simplesmente ficou pela metade. Como a última obra de arte do pintor, aquela que fica inacabada e é bela pelo que é, e mais ainda pelo que poderia ser. Como uma amizade que prometia muita coisa, mas foi interrompida por uma viagem ou, sei lá, pela morte. Como uma carreira interrompida por qualquer motivo. Como um relacionamento que acaba sem ter porquê.

O Myspace do Hotel Santa Clara é este, e algumas das faixas que ficaram prontas para o álbum não-lançado podem ser encontradas aqui. Talvez o fato de mais pessoas conhecerem essas músicas faça-as vivas de novo. Quem sabe.

Tem gente que acha que é mais bonito se algo belo nunca se completar, porque a promessa do que poderia ter sido é infinitamente mais bela do que a realidade blablá... Sei. Não acho. Queria muito saber como seriam várias coisas que ficaram pra trás antes de desabrochar. Inclusive a Tweepopnight, da qual nunca mais ouvi falar. Nem da casa de shows sem palco, aliás, cuja localização nunca mais encontrei. Talvez tenha sido engolida pelo passado, onde existirá eternamente. Talvez exista até hoje em alguma dimensão do espaço-tempo, hospedando bandas finadas com músicas não-gravadas, frequentada por uma plateia de gente sem face que não existe e, por isso mesmo, canta alegremente o repertório, brindando com suas cervejas de marcas falidas.

Ou talvez eu esteja enlouquecendo.