quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O fim do ano está aí

"O fim do ano está aí" era uma frase que um antigo professor de Ciências meu costumava usar frequentemente, como uma ameaça. Olhem, crianças, o fim do ano está aí, é melhor começar a estudar. Ele adorava fazer esse tipo de terrorismo com os alunos. Ensinava-os a desenvolver disciplina e stress crônico desde cedo. Gostava tanto da frase que, boatos dizem, a usou certa vez até no primeiro dia de aula. O que, particularmente, me parece um exagero.
Essa introdução é pra lembrar que, sim, o fim do ano está aí, é hoje, mais especificamente. Mas isso não deve soar como uma ameaça, e sim como algo bom. Não que 2009 tenha sido um ano ruim, foi de fato um ano espetacular, mas ano que vem tem Copa do Mundo, tem recuperação econômica da crise e acabam os filmes do Crepúsculo. Ou seja, será o último ano em que veremos índices econômicos negativos e torsos masculinos desnudos. Daí pra frente é só alegria.
Mas! O ano ainda não acabou. Faltam algumas horinhas, e, nessas últimas horas do ano (e não da década, como muitos pensam, pois esta oficialmente só acaba no fim de 2010), enquanto a festa de reveillón não começa, você pode matar tempo votando nas suas crônicas preferidas do blog "O Gato Sério" na enquete ao lado. É possível votar em quantas alternativas quiserem, mas, por favor, segurem seu ímpeto de querer votar em todas, eu sei que vocês amam todos os textos, mas isso faria o processo todo inútil. Isso foi uma piada. Achei importante avisar.
Se você ler isso depois do ano novo, em primeiro lugar, feliz 2010, em segundo lugar, não se acanhe em votar. E, se possível, eleja também os melhores de 2009 nas categorias abaixo:

Categoria Escândalo político livre de punição do ano:  mais um ano cheio de opções! Que bom! Escolha:
- Yeda e seu pufe verde-kiwi.
- Sarney e sua ninhada de parentes.
- Arruda e o dinheiro na cueca.

Categoria Morte do ano: vixe... essa lista é longa:
- Lombardi
- Michael Jackson
- David Carradine
- Brittany Murphy
- Alborghetti
- A reputação dos Raimundos
e mais um monte de gente que eu esqueci.

Categoria Filme do ano:
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.

Categoria Surpresa do ano:
- Lady Gaga é um homem (!)
- Belchior encontrado no Uruguai (surpresa!)
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.


Categoria Vergonha do ano:
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.
- A Cúpula Mundial Climática.
- A Vanusa.


Feliz ano novo pra todo mundo!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Reportagens

Há exatos 5 anos, Jaqueline Silveira era uma jovem como qualquer outra: preocupada em terminar o segundo grau e indecisa sobre seu futuro. Vivia a famosa crise dos 17, de decidir o que fazer da vida, quando teve um estalo: iria ser profissional do sexo.
- Eu estava indecisa entre Biologia e Medicina - conta Jaqueline, sentada no pufe da sala de seu apartamento na zona nobre da cidade. - aí eu descobri essa profissão. Fui me informar e gostei. É uma carreira que proporciona muito contato humano. Não é aquele trabalho frio, de ficar fechada numa sala, de frente para um computador, isolada. Não gosto disso. Eu gosto é de lidar com pessoas, de conhecer gente nova todos os dias. É muito emocionante. - Conhecer, nesse caso, inclusive no sentido bíblico do termo.
Jaqueline conta que na época procurou em todas as faculdades por um curso que pudesse lhe ajudar na carreira, mas não achou:
- Acho uma grave deficiência nas universidades brasileiras, essa de não haver uma faculdade voltada para essa área. Tem gente que acha que é uma profissão fácil, qualquer um pode ser. Não é assim. O mercado está muito saturado. Tem uma profissional do sexo em cada esquina. Literalmente. A saída é se especializar, se qualificar, mas como fazer isso sem uma faculdade voltada para nós?
A saída foi estudar sozinha. Jaqueline passou a aprender por conta própria sobre comércio e marketing. "Afinal", conta ela, "não deixo de ser uma comerciante, né? Tenho que mostrar que o meu produto é melhor que o das outras".
Fora isso, uma boa profissional precisa se manter atualizada.
- Leio todas as obras de sexologia e sexualidade que consigo por as mãos. Já li todos os manuais sexuais publicados este ano, incluindo as "50 Maneiras de Amar com os Pés", do dr. Phil Steinberg. Recomendo.
Ainda assim, prefere os clássicos:
- Leio e releio o Kama Sutra direto. É o meu livro de cabeceira.
Investir em todo esse material não sai barato. Além disso, Jaqueline possui um plano estendido na academia e uma nutricionista para cuidar do corpo. Seu empenho fez com que pudesse ser aceita em uma das grandes casas do ramo de profissionais do sexo, de projeção internacional. Resolveu que era importante cursar inglês, francês e alemão, pois clientes estrangeiros são comuns.
- Inglês eu estou bem, francês eu arranho um pouco. Alemão eu comecei faz pouco, mas já aprendi o básico, hündchenstellung, ga sneller, niet op de anus, essas coisas.
Ela confessa que foi um sufoco convencer os pais a pagarem esses cursos, mas Jaqueline convenceu-os de que era importante para construir seu futuro. Hoje, ganha mais de 500 R$ por dia de trabalho e se sustenta sozinha. Mas não para por aí:
- Eu quero ir mais além. Não porque necessito de mais dinheiro, mas porque quero crescer como profissional. Quero ser a melhor do meu ramo.
E para isso estuda muito. E pratica é claro, pois não testa nada de novo sem antes aperfeiçoar à exaustão. Para isso pede ajuda a seus amigos.
- É um trabalho que não pode ser aperfeiçoado sozinho, então ela pede uma ajuda minha - diz Francisco Moura, um amigo de Jaqueline, brilhando de suor. - agora mesmo estava ajudando ela a mestrar uma nova posição que ela aprendeu. Ela fica meio chateada de me roubar tempo com isso, mas eu digo que não tem problema - abre um grande sorriso - amigo é pra essas coisas.

***

Henrique Boal tem uma frase que define sua vida:
- O bem estar dos outros é o meu bem estar.
Seu trabalho de médico cirurgião consome muito tempo, mas sempre arruma algum para fazer trabalhos de caridade. Rico e bem sucedido, é só com isso o que se importa:
-Eu consegui tudo o que quis na vida: sucesso, dinheiro, mulheres. Agora é hora de ajudar quem não conseguiu. - explica.
Mas seu pouco tempo livre precisa ser bem administrado. Ele mesmo explica:
- O serviço me consome muito tempo, então não posso fazer tudo o que queria. Tenho que me concentrar em ajudar quem não recebe amparo algum. Crianças carentes e mendigos possuem várias ongs que os apoiam. Se também eu trabalhasse com eles, sei lá, sinto como se desperdiçasse meu tempo com algo que já está sendo resolvido.
Boal conta que estava numa festa, onde foi levado "meio que à força" por amigos que insistiam que ele precisava se divertir, quando viu algo que o direcionou para o seu caminho:
- Estava eu então nessa festa, com a mente absorta nesses assuntos, quando vi uma mulher, sentada não muito distante. Gordinha, feinha, sem graça. Estava cabisbaixa, nenhum homem se aproximava dela. Daí veio o estalo. Essa mulher estava carente. Ela precisava de ajuda. Minha ajuda!
Boal se aproximou da mulher, puxou conversa e poucas horas depois estavam num motel.
- Dei tudo de mim. Ela disse que foi a melhor experiência de sua vida - conta, feliz.
Decidiu formar uma ong, a AD, ou Amigos do Dragão. Toda a semana o grupo sai pelas festas prestando caridade a mulheres desamparadas de amor masculino. Para Boal, não importa o quão repelente a mulher possa ser: se ela está necessitada, um dos ADs deverá ajudá-la. Mas admite que já ocorreram complicações:
- Às vezes tem uma mulher que o cara acha que encara, mas lá pelo meio do trabalho vê que não vai aguentar o tranco, aí tenta passar pra outro colega. Eu acho isso uma vergonha: o homem se comprometeu a fazer um trabalho, ele deve dar cabo dele até o fim.
Em ocasiões assim, normalmente o próprio Boal termina o serviço, pra dar o exemplo.
- Eu encaro qualquer uma mesmo. Estou aí pra isso. - diz, orgulhoso.

***

A Igreja Pentagonal do Capital do Reino de Deus poderia ser uma igreja evangélica como qualquer outra. Não é. Há algum tempo essa igreja vem atraindo mais e mais fiéis com um discurso diferente. Nossa equipe foi presenciar uma missa regida pelo responsável, Padre Ciço, para tentar desvendar esse mistério.
A igreja estava lotada. A maioria dos presentes era de gente simples, humilde e pobre. À frente de todos, como num palco, Ciço desenvolvia o seu sermão:
- Gente, vou contar uma coisa pra vocês, uma história muito triste. Estava eu, passando por uma loja, essas lojas que vendem tv de plasma, e resolvi entrar. Achei uma televisão linda, linda, minha gente, linda como a graça do Senhor. Quarenta e duas polegadas, tela plana, linda como a graça do Senhor, minha gente. Mas ouçam! O vendedor quis me vender a tv por três mil reais. Eu tentei convencê-lo de que era um simples servo do Senhor, que estava nessa terra, minha gente, para fazer cumprir a Sua palavra, e que por isso precisava de uma tv de plasma, mas ele não me ouviu. Ele não tem o espírito de Jesus com ele, minha gente. Ele não quis me dar um desconto. Isso é muito triste, muito triste, minha gente. Muito triste. Por isso, meus queridos fiéis, eu vou passar a cesta agora, e vocês vão doar o que podem, para o Padre Ciço poder comprar a tv dele, tá bem? Vamos ajudar o Padre Ciço a comprar a tv dele.
Os fiéis doam quantias absurdas, bem mais do que parecem poder pagar, mas não se arrependem.
- Eu doo mesmo - diz o aposentado Laurindo Costa, 66 anos. - O Padre Ciço me mostrou que a salvação se consegue através da ajuda ao próximo. Então, eu estou ajudando ele.
Depois da missa, o Padre Ciço fala um pouco conosco sobre a Igreja:
- O povo ajuda porque vê que é verdadeiro. A gente nunca mente para os fiéis. Ensinamos que Jesus salva quem ajuda ao próximo, e pedimos a ajuda deles para comprar as nossas coisas. Não somos como as outras Igrejas, que dizem que o dízimo vai para um lugar e depois pega o dízimo para si. A gente não mente nunca. A gente pega pra nós e diz. O povo valoriza a sinceridade.
Mas será que todos entendem a mensagem da igreja? Padre Ciço fala que a maior parte sim. A outra parte ouve o nome de Jesus Cristo e vai correndo doar dinheiro sem saber o que é, mas aí, diz ele, "não é nossa culpa".
- Já tentaram nos processar. Não estamos fazendo nada de ilegal. O meu advogado comprova.
- Realmente, eles não fazem nada de ilegal - explica Carlos Manuel de Andrade, advogado de Padre Ciço e, curiosamente, também seu primo. - O destino do dízimo é claramente explicitado durante as missas. Depois, temos até as notas fiscais das compras para provar que o destino foi aquele mesmo. Carros, apartamentos, temos todos os gastos comprovados. Com licença, meu celular.
Andrade atende o seu celular. É o Padre Ciço. Eles conversam animadamente.
- Desculpe, era o primo me convidando pra ir no El Segredo. A Jaqueline trabalha lá hoje, eu não posso perder. Mas então, onde estávamos? Ah, sim, tudo dentro da lei. É um trabalho sério, não é falcatrua.
Estranho ou não, o número de fiéis da igreja cresce a cada dia. E a cada dia Padre Ciço faz um sermão mais acalorado:
- Minha gente, estou decepcionado. Ontem vocês não me deram dinheiro suficiente para comprar a tv de plasma. Jesus está vendo que vocês não estão se sacrificando por ele e pelos seus irmãos. Jesus não gosta disso. Vocês querem que eu, o Padre Ciço, que vem aqui todo o dia para auxiliar vocês, que me doo tanto para falar com vocês, que ajudo vocês a alcançarem a Salvação! Vocês querem que eu continue com a minha tv velha de 29 polegadas? Que vergonha. Deus está olhando.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Impressões de Copenhague

Vergonha. É isso o que ficou da COP 15, e é isso o que ficará nos livros de história. Como eu temia, os líderes mundiais deixaram o dever de casa para ser feito muito tarde e não conseguiram terminá-lo. Sim, eu já esperava que fosse um fracasso, mas não uma palhaçada. O que aconteceu lá foi uma palhaçada para entrar para a história.

Acho que os líderes mundiais julgaram mal a dimensão do problema. Caso contrário, eles não teriam deixado para aparecer somente na última semana da reunião, para dar uma olhadela no que os diplomatas decidiram, balançar a cabeça positivamente e ficar com as glórias. A maioria chegou lá nos últimos dias para descobrir que os diplomatas não chegaram a consenso algum. Opa, devem ter pensado. Como nada de concreto fora decidido até ali, tiveram eles mesmos, faltando quatro dias para o término do evento, que discutir entre si para chegar num acordo. Caso contrário, as suas imagens políticas ficariam manchadas. Ah é, e as calotas polares iriam derreter.

Mas, olhem só que surpresa, quatro dias foi pouco tempo para elaborar um acordo mundial. Os países desenvolvidos e os em desenvolvimento ficaram batendo na mesma tecla de divisão de responsabilidades e não chegaram a lugar algum. Os subdesenvolvidos queriam que a responsabilidade de cortar emissões fosse só dos ricos. Só que Índia, China e Brasil poluem mais que a maioria dos países ricos. Eles necessitam de freios nessas emissões, senão de nada adianta o resto do mundo parar de poluir. Vejam, aí é que está a beleza da coisa: aquecimento global é um problema que, se o mundo todo não cooperar, o mundo todo (perdoem o termo) se fode. Agora não é mais hora de achar quem é o culpado. Sim, os EUA poluíram mais que nós e mesmo assim nós temos que cortar nossas emissões, é uma merda, mas o planeta não vê o responsável. Ele vai dar o troco em todos, esteja ele poluindo há vinte ou duzentos anos. Por isso, sim, cortes de emissão obrigatórios para países em desenvolvimento, sou a favor.

Mas, aí está onde eu queria chegar, tivemos, sim, um acordo em Copenhague. Por ser um acordo, e não um tratado, ele não tem valor legal, ou seja, quem assinar e não cumprir não vai ser cobrado. Deixe-me acompanhá-los através dos pontos desse acordo:
  1. Comprometimento dos países a impedir que a temperatura média mundial suba mais que 2 graus Celsius: no futuro, essa meta pode ser ampliada para 1,6 graus Celsius, o que parece bom, mas não bate com o próximo ponto do acordo.
  2. Corte de emissões de gases estufa de 20% até 2020, com base nos níveis de emissão de 1990, para países desenvolvidos: a ONU disse que o mínimo necessário para impedir que a temperatura suba mais 2 graus é uma diminuição de 25 a 40%, ou seja, uma diminuição de 20% não serve pra nada.
  3. Países em desenvolvimento não têm obrigação de estabelecer metas de redução, decidindo eles mesmos o que são capazes de diminuir: lembrando que o maior poluidor atualmente é a China, que se enquadra nessa categoria. Ela, então, poderia decidir que quer diminuir só, sei lá, 5% de suas emissões e ninguém poderia fazer nada.
  4. Criação de um fundo internacional para ajudar economicamente os países em desenvolvimento a combaterem o aquecimento global: a proposta inicial desse ponto era boa: já que os países em desenvolvivento reclamam que um combate às suas emissões iria frear seus crescimentos, os países ricos financiariam parte do esforço para que eles poluam menos. Os EUA tinham prometido inclusive 100 bilhões de dólares para o fundo anualmente. Na versão final do acordo, esse valor caiu para 30 bilhões, um valor que cresceria a cada ano até chegar aos 100 bilhões anuais que antes tinham sido prometidos desde o início. Os valores são insuficientes.

EUA e China ficaram bem felizes, pois o acordo lhes mandava fazer bem menos do que estavam sendo cobrados pela comunidade mundial. Falando em comunidade mundial, esta teve pouca interferência no acordo, que foi feito em cima da hora por meia dúzia de países. Danem-se as negociações, não é mesmo? Era isso o que os EUA estavam dispostos a oferecer; é pegar ou largar. O mundo largou. Quase ninguém reconheceu o tal tratado.

***

Essa não foi a única vergonha da COP 15. Uma palhaçada completa tem que ser completa em todos os níveis. Aí vão as minhas falhas preferidas:

Organização do evento: brasileiros, não temam mais em passar vergonha na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas. Pra quem achava que o Brasil não tem competência para organizar eventos mundiais, a COP 15 deve ter proporcionado um grande alívio. Porque os noruegueses, eles, tão desenvolvidos, com um IDH tão alto, a nação mais evoluída do mundo, também não conseguem. Confusão na distribuição de passes para os debates (que em alguns casos deixou representantes dos países de fora das discussões), reação policial aos manifestantes digna de um Rio de Janeiro e o pedido de demissão da presidente da cúpula no meio do evento foram os pontos altos. Aliás, esse negócio da presidente, que deixou sua posição ao afirmar que "o 1º ministro dinamarquês é que deveria mediar a cúpula" me deixou pensando: se isso fosse no Brasil, certamente iria ter gente balançando a cabeça, fazendo tsc tsc e dizendo: só podia ser brasileira.

Barack Obama: na última semana tinha gente dizendo que talvez Obama não comparecesse à Copenhague, mas essas pessoas se esqueciam que ele esteve sim na cidade, inclusive no início da cúpula. Não para debater o clima, mas para receber o Nobel da Paz. No discurso de premiação, citações sobre "guerras justas", que não pegaram bem. Mas isso não entra no mérito da discussão, já que estamos falando sobre a COP 15. Pois bem, Obama foi receber o prêmio e saiu de fininho sem nem passar pela cúpula. Conforme ia ficando evidente que a conferência seria um fiasco, cresceram as dúvidas sobre se Obama iria comparecer nos dias finais. Depois de muito questionamento, ele foi, ficou 24 horas, fez um discurso em tom de ameaça para os países em desenvolvimento, negociou uma proposta pífia e foi embora. Ao invés do Obama conciliador, vimos uma outra face do governante que só agora está ficando aparente. Discursou como se o assunto fosse de interesse só dos outros países e os EUA estivessem concedendo caridade ao ajudar no fundo de combate às mudanças climáticas, quando na verdade estamos todos no mesmo barco. Muito estranho, vindo de um presidente que usava o combate às mudanças climáticas como promessa de governo.

Fuga em massa: esperava-se uma bonita foto com todos os governantes mundiais juntos ao final do evento para selar o suposto acordo ao final da cúpula. Infelizmente essa foto nunca pode ser feita, pois todos debandaram assim que ficou claro o tamanho do desastre em que se meteram. Espertamente, ninguém queria a sua imagem associada a uma vergonha do tamanho da COP 15. A delegação brasileira inteira foi embora, deixando para trás um confuso Carlos Minc para contar o que aconteceu.

Pra não dizer que foi tudo uma vergonha, vale falar bem de quem negociou direito: Sarkozy merece crédito por ser um dos únicos ricos que estava disposto a destravar as negociações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O delegado sudanês Lumumba Di-Aping, presidente do G77, também mostrou fibra ao peitar as grandes economias e por sua nação ser a única africana a recusar assinar um acordo malfeito. Quem saiu-se muito bem também foi o nosso companheiro, presidente Lula. Lula, ao chegar, mostrava-se otimista, mas ao decorrer das negociações percebeu a canoa furada em que todos estavam. O otimismo foi substituído por uma expressão cansada e desgastada. No penúltimo dia, subiu à bancada e fez um discurso criticando a incompetência da cúpula e dos países desenvolvidos em lidar com o problema. Para finalizar, prometeu contribuir com o fundo de apoio, mesmo o Brasil se enquadrando nos países em desenvolvimento. Verdade ou blefe, o discurso serviu para destravar as discussões naquele dia.

***

Apesar de tudo, ainda não acho que é o fim. Dificilmente um acordo sem adesão mundial irá funcionar, o que significa que cedo ou tarde os países vão ter que voltar para a prancheta e fazer algo melhor. Espera-se que até fim do próximo ano as más repercussões de Copenhague constranjam os países a assumir suas responsabilidades. Talvez em Bonn, no meio do ano que vem. Talvez no México, na COP 16. Além dessas datas, é desaconselhável esperar. Lembremo-nos que o mundo não espera.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Quero ser John Frusciante

Soube ontem que o John Frusciante deixou o Red Hot Chili Peppers. Se eu disser que não esperava é mentira. Há algum tempo, John disse em uma entrevista de rádio que já não tinha mais vontade de tocar em uma banda, e eu então já dava os Chili Peppers como terminados. Porque quando John Frusciante diz que não quer mais tocar, é porque ele não quer mais e não irá continuar. Não é a primeira vez que isso acontece.

O anúncio recente de que um novo álbum estava sendo feito e até mesmo que os Peppers iriam tocar em um show em homenagem a Neil Young reacendeu as minhas esperanças de que, afinal, a banda não estava morta. Porém, o medo voltou quando o baterista Chad Smith se recusou a falar de John em uma entrevista, se não me engano mês passado. Senti que algo de ruim estava acontecendo. Esta semana, o próprio John, que estava incomunicável há meses, escreveu em um blog que estava fora da banda. Já fazia um ano. Por um ano fui enrolado de que ainda havia esperanças, mas desde aquela entrevista de rádio que o John já não fazia mais parte dos Peppers. Só agora, porém, veio a confirmação definitiva do próprio.

Por total coincidência, quarta-feira passada aluguei o dvd do show que o Red Hot Chili Peppers fez no Slane Castle. Para ver pela milionésima vez. A primeira vez foi na tv, lá por 2004. Estava eu vendo um filme do 007 na TNT quando vejo o comercial do show. Iria ser exibido no canal dali há alguns dias. Entrei em êxtase: tratava-se da minha banda preferida, e eu nunca os havia visto ao vivo. Na verdade, fora os clipes, eu nunca havia visto os Chili Peppers em outros lugares. Apesar de serem imensamente populares, você não os vê na mídia muito, nem mesmo em entrevistas. Mas agora eu iria ver as pessoas por trás daquelas músicas em ação.

A TNT exibiu uma versão de 1 hora do show, apenas com as canções mais conhecidas. Quando a banda estava finalizando Scar Tissue, percebi que iria querer gravar aquilo. Devo ter visto aquele videocassete umas quantas vezes, e nunca me cansava. Principalmente por causa do John. Ouvir os Chili Peppers ao vivo não é como ouvi-los nas gravações: o John muda tudo, improvisa em todos os solos, cria introduções e finalizações que não existem na gravação original. No show do Slane Castle, todos os solos ganharam versões melhores, feitas de improviso no calor do momento. Aquilo era música gerada na hora, que para mim é a música verdadeira.

Nos intervalos, aparecia uma chamada de promoção que pedia para você ligar para um número e dizer porque o Red Hot Chili Peppers mudou a sua vida, ou algo assim, e você concorria a um cd da banda. Liguei para o número, sem esperança de atenderem. Atenderam. Fui pego de surpresa. "Então", disse a voz feminina do outro lado da linha, "qual é a sua resposta?". Tive que bolar algo de improviso. "Ah, o Red Hot Chili Peppers mudou a minha vida porque... porque eles me fizeram gostar de música". Não percebi na hora, mas, por mais boba e menos criativa que fosse, a frase era muito verdadeira, ainda que não houvesse como saber disso naquele momento. Eu só amo música do jeito que eu amo por causa daquele show. Por consequência, por causa dos Peppers. Ganhei o cd.

***

Um bom guitarrista não é aquele que consegue tocar super rápido, é aquele que consegue criar super rápido.  E nisso o John é mestre: sua capacidade de improviso é invejável, sua construção de frases musicais em perfeito enlace com os outros instrumentos é soberba. Nunca houve uma dupla com tanta sintonia como John e Flea. John sabe deixar espaços. As linhas de baixo de Flea preenchem com perfeição os espaços que o John deixa, e vice versa. No final é o conjunto, o groove, que chama a atenção, e não a guitarra individualmente.

Isso não se vê no rock, principalmente nas bandas onde o guitarrista toca seiscentas notas por segundo. John só precisa de três ou quatro, e elas se mesclam perfeitamente com os outros sons. Nenhum guitarrista faz isso, nenhum guitarrista tem essa caridade com os outros instrumentos. Isso faz a sonoridade da banda ser original, prova é que não há, até hoje, nada parecido com os Chili Peppers. Nenhuma banda repete essa temática de entrelaçamento de instrumentos como eles fazem.

O show do Slane Castle mudou a minha vida porque me fez amar a música e porque foi o responsável por eu ter comprado a minha guitarra. Eu queria ser John Frusciante. Nenhum outro guitarrista me interessava. Nenhuma outra banda significava o mesmo pra mim. Nunca me conectei com Beatles, Led Zeppelin ou qualquer banda clássica que todo mundo idolatra. Quando eu ouço Beatles, sinto que aquele som não é da minha época, não foi feito para mim. Parece algo vindo de uma realidade que não me pertence; pertença a meus pais, talvez, mas não à mim. Eu ouço o John tocando, e eu entendo. Entendo o que ele quer dizer, o que ele quer fazer e para onde ele vai. Aquela música é a minha música, da minha época, da minha realidade. É a trilha sonora da minha vida. Uma ligação assim com uma banda é algo muito bonito; espero que todos tenham a oportunidade de achar o seu som, assim como eu achei o meu. Ter essa conexão, conseguir sentir o significado da música, mesmo que as letras não façam sentido. Conseguir ver as cores da música. Isso é o mais perto que eu vi de magia nesse mundo.

John também tem essa conexão com a música. Ele passava dezesseis horas por dia tocando guitarra. Depois de um dia de dez horas de gravação, ele voltava para casa e ouvia música até adormecer. John não gostava de sair em turnê pois lhe desagradava ter de esperar horas para a montagem de palco: queria tocar assim que pudesse. Ele consegue compor uma osquestração de quatro guitarras mentalmente, sem nem por a mão em uma, como fez com Turn it Again. Como ele faz isso? Ao contrário de outros profissonais do ramo musical, John recusa-se a dizer que tudo já foi feito. "Música é infinita", ele costuma dizer, e é por isso que sempre consegue criar algo novo, não importa quando ou quantas vezes for preciso.

A fonte dessa magia secou, e eu soube disso ontem. Não há mais Chili Peppers como eu os conhecia. O meu heroi resolveu se aventurar por outros caminhos musicais. Diferente do pessoal que diz que está feliz por ele fazer o que gosta, eu não estou. Por mais genial que John seja, ele nunca conseguirá fazer sozinho o que fez com os outros três gênios. Era a conexão de mentes que fazia o troço ser especial. Agora não há mais isso, e não há o que fazer. Boa sorte para o próximo guitarrista dos Peppers: além de ter que se igualar com os outros três, ele terá a missão de substituir a maior mente musical da nossa época. Enquanto aguardo para ver o que vai ser da banda, ponho o dvd do Slane Castle pra tocar e relembro a melhor fase da melhor banda da minha vida.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Lição de casa

As geleiras estão derretendo, mas as negociações de Copenhague congelaram. Em compensação, as manifestações estão pegando fogo: ontem, ativistas tentaram adentrar na sala de discussões de forma a transformar a reunião da cúpula numa assembleia pública, com participação direta do povo. A polícia reprimiu os avanços dos manifestantes, que não conseguiram realizar seus objetivos. Apesar de a participação da sociedade ser de grande importância na tomada de decisões relevantes para o futuro do mundo, a confusão gerada pela invasão dos manifestantes aos quarenta e cinco do segundo tempo iria enredar ainda mais uma situação que já está mais enrolada que novelo de lã.

Para quem anda por fora do assunto, eu estou falando da COP 15, conferência que está em seu penúltimo dia e que tem como objetivo traçar metas para a política climática mundial, e que, por sinal, não está chegando a consenso algum. Antes do início desta, a Dinamarca (país sede da conferência), os EUA e a China já haviam assinalado que a cúpula serviria só para discutir o problema, e não para definir números de redução, o que já anularia o principal motivo de sua realização. Infelizmente, nem para traçar alguns pontos básicos ela está servindo: apesar de (ponto a favor) ter sido decidida a criação de um fundo internacional de ajuda a países pobres para que reduzam suas emissões de CO2, não ficou decidido quem irá contribuir (Brasil e China não querem, alegando que também são países pobres) nem quem irá receber seus benefícios (novamente, Brasil e China o querem pois alegam que são países pobres). Mas o que realmente entravou as negociações foi a polarização entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Os países pobres se eximem do compromisso de reduzir suas emissões, alegando que historicamente a culpa é dos ricos. Os países ricos se comprometem a reduzir suas emissões, mas cobram dos pobres que façam o mesmo.

É mais ou menos isso. E é assim que nos encaminhamos para o último dia de cúpula. Está claro pra mim que a Dinamarca tinha razão em não querer fazer um tratado formal ainda. Se feito agora, vai estar cheio de furos e questões mal resolvidas, e, na prática, irá servir só para os líderes mundiais mostrarem para o mundo que a reunião não foi um fracasso. Falando nos líderes, estes deixaram para aparecer só nestes últimos dias de cúpula, para dar uma olhada no texto final elaborado por diplomatas e dizer se concordam ou não. Alguns, como o Barack Obama, perigam nem aparecer.

Pensando agora, é meio idiota que o mundo tenha marcado uma data para assinar o tratado sem ter discutido antes sobre o assunto. Como é que ninguém nunca pensou que a situação fosse complexa demais para se resolver na hora? Há muitos problemas nesses dois últimos dias que terão de ser acertados literalmente em cima da hora. Esse tratado, em vez de uma solução, virou um problema. Virou uma lição de casa que os líderes mundiais deixaram para fazer na noite de domingo. Será feita às pressas, algumas questões ficarão em branco e várias incompletas. Será o suficiente para ganhar uma boa nota? Tudo indica que não. Vamos torcer para que a próxima reunião, ano que vem no México, possa servir como um trabalho de substituição.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sobre meninas e lobos (e vampiros)

Sim, eu admito, eu vi Lua Nova. Sem ter sido arrastado ao cinema por alguma mulher. Tem que ser muito macho para admitir que se viu Lua Nova sem a influência do sexo feminino. E tem que ser duas vezes mais macho para admitir que viu o filme duas vezes. Sim, eu vi o filme duas vezes. Aceitei ir de novo acompanhando uns amigos que ainda não o tinham visto. Amigos homens. Que não deixaram de ser homens por ver o filme. O meu interesse era puramente antropológico, diga-se de passagem. Queria ver qual é a dessa onda de Crepúsculo que está aí pela mídia. Sou um comunicador, afinal de contas. Trabalho puramente profissional, essas coisas.

Digo que é preciso ser macho para admitir isso porque trata-se claramente de um filme voltado para o público feminino. Mais especificamente, para garotas de seus 14 anos de idade. Como sei disso? O vampiro brilha na luz do sol. Ele não morre, não vira cinzas, ele brilha. Importante dizer que ele não é feio, também. Ele tem aquela beleza meio metrossexual com cara de vômito que faz sucesso hoje em dia. E há uma tribo de lobisomens bombados alérgicos a camisetas. Temos então o vampiro mais magrinho e maquiado e o lobisomem forte e musculoso. Tem pra todos os gostos.

Os dois arrastam asa para a mesma mulher, a tal da Bella, fazendo juras de amor eterno e desnudando seus torsos na frente dela. A colega de um amigo meu, e isso é verdade, disse que teve um orgasmo enquanto assistia ao filme. Um orgasmo. Não sei em que cena foi, mas suspeito que envolveu algum torso desnudo. Não ouvi mais histórias de orgasmos no cinema, mas de caras que levaram a namorada e tiveram que ouvir ela gemendo cada vez que os mocinhos apareciam em tela tem várias. Pobres namorados. Não bastasse serem obrigados a ver o filme, ainda têm que passar por isso.

***

Dá pra ver que a história é trabalho de uma mente feminina só olhando para os personagens. Não existem homens assim na vida real. O tal do vampirinho, o Edward, diz que ama a Bella, mas não pode chegar perto dela pois tem medo de não se controlar e sugar seu sangue. Tá, mulheres, desculpem, mas isso não existe. Como ele conseguiria aguentar um relacionamento onde é um sacrifício trocar uns beijinhos que sejam? Nenhum amor resiste a isso. Essa coisa de promessa de amor eterno também é difícil de engolir. Ainda mais amor eterno sem aproximação física.

É claro que esse Edward pode estar sendo um baita de um esperto. Sendo um imortal, ele não transforma a mocinha num vampiro justamente por não querer ficar pra sempre carregando aquela mala junto dele. Imagina, e quando ele enjoar? Uma eternidade demora um bocado. O que fazer? Melhor ficar enganando a mocinha, fazendo juras de amor eterno, sabendo que daqui a um século ela vai estar morta e ele ainda vai estar na flor da idade, pronto para enganar mais uma jovem inocente.

- Bella, eu te amo, eu poderia te amar pra sempre...
- É isso! Então me faça viver pra sempre! Me transforme numa vampira e viveremos juntos por toda a eternidade!
- Hm, ah, pois é... sei lá, acho que não é uma boa ideia... viver pra sempre não é tão legal assim...
- Ah é?!
- Ah, sim. Esperimente passar um século com a mesma dentição. Chega uma hora em que não há tratamento dentário que resolva.
- Puxa...
- Quem sabe a gente pensa nisso depois? Ano que vem... ou próxima década, talvez. Eu poderia te amar pra sempre, mas vamos com calma...

Quanto ao problema da falta de sexo... nada que umas saídas às escondidas não resolva.

***

A autora errou ao retratar os homens, mas com as mulheres ela acertou direitinho. A personagem do filme, ao ser abandonada pelo amor de sua vida, vai buscar consolo nos braços (musculosos) do lobisomem. O coitado fica todo esperançoso, pensando que vão ficar juntos, aí o vampiro volta e a mulher dá um pé na bunda do pobre lobinho. Típico.

Ela estava mal, se sentindo desprezada, aí ficou dando esperanças falsas para um cara que realmente gostava dela. Algumas mulheres, quando levam um pé na bunda, procuram alguém que lhes levante a autoestima novamente. Mas eles só servem pra isso: levantar a autoestima. E é sempre assim, elas ficam ao redor desses caras, se sentem bem de novo, prontas para acordar para a vida, aí bam: o cara que descartou elas dá mais uma chance e elas voltam correndo. E os homens que são jogados fora, como ficam os sentimentos deles?

Na boa, eu não tenho nada contra esses Crepúsculos, Lua Nova ou raio que o parta, mesmo, mas me preocupa a sua influência na mente das meninas de hoje em dia. Primeiro: elas vão correr atrás de um cara que não existe. Quanta decepção isso irá gerar na vida delas, quantos romances frustrados! Segundo: o mau exemplo com essa história do lobisomem. Sim, pois essas meninas se identificam com a personagem, e passam a agir como ela, inclusive copiando o seu comportamento. Tem uma fala no filme que a Bella diz algo como "não me faça escolher entre vocês dois, porque será ele". Referindo-se, é claro, ao vampiro purpurina. O quê? Depois de passar o filme inteiro se esfregando no lobinho, ela tem coragem de dizer isso, na cara dele? Essa aí, perdoem a sinceridade, não é nem um lobo nem um morcego, é uma vaca.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A calcinha

O sinal já havia batido mas a Bia nem queria saber de subir para a aula. Estava contando para as amigas sobre como o Rafa era um cretino, sacana, enganador, duas caras, mentiroso... os adjetivos não paravam de brotar. Às vezes na mesma frase:
- Não acredito que caí na conversa daquele cretino sacana, daquele enganador, daquele duas caras mentiroso...
As amigas ouviam e balançavam a cabeça, concordando. Ele era mesmo. Para ter feito aquilo que a Bia disse que ele fez, só podia ser tudo aquilo.
- Aquele safado sem-vergonha... acha que pode brincar comigo, o traíra enganador, falsário... - seguem-se mais adjetivos pejorativos. Alguns não publicáveis.
A Bia repetia e repetia a história, que o Rafa a usara, que prometera amor incondicional, que disse que ela era importante para ele... fez com que ela confiasse nele (o maldito!), até que, naquela noite, depois de ela relutar muito, depois de ele insistir muito, dizendo que iria respeitá-la, que se importava com ela... naquela noite ela concordou, finalmente, em entregar-se para ele, e tiveram uma noite juntos, e ela o amou intensamente... para o quê, para o quê mesmo?
- Para ele me jogar fora no outro dia! - disse ela, e ameaçou chorar outra vez.
A Jé passou a mão na cabeça da amiga, dizendo "não chora, não chora", enquanto a Deia pegava a mão da amiga e dizia "chora, chora que passa...".
- Mas ele vai ver, - dizia Bia - um dia ele vai ver a canalhice que fez e vai correr atrás de mim, pedindo perdão, e eu vou dizer não mesmo, cachorro, vira-lata de uma figa...
Como que por mágica, nesse exato momento o Rafa aparece diante das três, com a sua mochila nas costas e uma cara séria no rosto, o qual usualmente carregava sempre uma expressão divertida.
- Bia, quero falar contigo. - disse ele, bem sério.
A Bia olhou para as duas amigas com um olhar de triunfo. Depois olhou para o Rafa e disse, na voz mais indiferente que conseguiu fingir:
- Ah é?
- Sim, preciso falar contigo. Pode ser?
- Fala, então. O que é?
Ele olha para as duas amigas da Bia.
- Pode ser em particular?
Bia solta uma risadinha.
- Por quê? É alguma coisa séria que você quer me dizer? Diz agora.
- Eu realmente acho melhor que isso seja em particular...
- Ah é? Eu estou muito bem aqui. Qualquer coisa que você disser, as minhas amigas podem ouvir.
Isso, se humilhe na frente delas, pensa Bia. Peça perdão, cachorrinho. O Rafa olha sem jeito.
- Tem certeza?
- Ah se tenho.
O Rafa dá de ombros. Então abre a mochila e tira dela uma calcinha rosa com os dizeres "Lick me!" em letras emendadas douradas, e uma abertura no tecido logo abaixo dessas palavras.
- Você esqueceu isto lá em casa. - e atira a calcinha para a Bia, que observa atônita ela pousar no seu colo, a abertura na calcinha escancaradamente aparente. - Era isso. Agora eu vou pra aula, que eu tô atrasado.
Ele vai embora e deixa Bia paralisada, com a calcinha ainda na mesma posição em que pousou. Ela então olha para as amigas, as duas de olhos fixos na calcinha. Pois uma calcinha assim não é uma calcinha qualquer. É uma calcinha de alguém que espera sexo. É uma calcinha de alguém que planejou antecipadamente o momento do sexo para poder usá-la, e certamente não de alguém que foi convencida relutantemente.
- Eh... eu posso explicar. - disse Bia às amigas.
Mas elas disseram que a explicação ficava pra depois. O sinal já tinham batido, olha só a hora, elas tinha que subir logo. E saíram depressa, deixando Bia e a sua calcinha sozinhas.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

[Ironia]

Ironia em 2 exemplos:

Exemplo: O Gato Sério
O blog O Gato Sério é um blog basicamente feito de humor. Salvo uma que outra postagem de conteúdo político, o intuito do blog é sempre o humor.
O fato de chamá-lo de O Gato Sério é justamente uma ironia, pelo fato de que ele é, em síntese, o oposto do sério. Ele não é nada sério. Nada sério pra caramba.
Portanto, a graça está em saber que o nome é uma ironia. Tirado do contexto, perde a graça e torna-se potencialmente ofensivo, afinal, sempre há pessoas donas de gatos sérios de verdade que podem se ofender.

Exemplo 2:
Escrever textos humorísticos que não recebem comentário nenhum, enquanto que outro texto humorístico com um tema mais específico ganha vários comentários. Comentários estes vindos principalmente de pessoas que não acompanhavam ou desconheciam o blog, tendo apenas lido este texto em específico, indicadas por outras pessoas com opiniões já formadas sobre o texto. Elas não pegaram o espírito do texto. Elas não têm culpa de desconhecer o teor de seriedade nulo do blog, mas acabaram por confundir o texto em questão com uma declaração séria. Isso é irônico pra caramba.

***

A ironia é uma coisa complicada, porque, mesmo se você usá-la de um jeito inteligente, se ninguém entendê-la quem vai passar por burro é você. Isso por si só é bem irônico. É por isso que esse tipo de humor, e também o sarcasmo, seu irmão mais apimentado, deve ser usado com cuidado. Imagino que alguns de vocês tenham ouvido falar da história da professora que escreveu um texto ironizando o racismo, mas de um jeito onde ela incorporava o papel de uma racista, fazendo afirmações tão estapafúrdias que não poderiam ser levadas a sério. Os leitores, na teoria, notariam o quão absurdo é discriminar alguém pela cor da pele e todos seriam felizes. Teve gente que não entendeu, a professora foi indiciada e, até onde eu acompanhei a matéria, estava prestes a ser julgada, podendo ser presa. Vale lembrar que a professora fazia parte de uma ong contra o racismo e seu marido era negro.

Outro caso parecido: um certo estudante de jornalismo escreve um texto bem humorado sobre profissionais em geral de comunicação, e o coloca na internet. Por ser ele próprio um estudante de comunicação, não vê mal algum nisso, e espera pacientemente seus amigos lerem, crente de que todos poderiam rir juntos dos clichês do mundo da comunicação. Não é o que acontece. Não só os colegas falham em reconhecer o caráter do texto, ou seja, que não reflete a verdadeira opinião do autor e sim uma visão propositalmente distorcida do assunto, mas alguns deles acabam por se identificar no texto e o levam para o lado pessoal. Principalmente publicitários, mas também RPs e, por estranho que parece, nenhum jornalista, sendo que o texto fala mal, sim, deste último profissional, ainda que de forma mais sutil mas igualmente ácida. Vale lembrar que os melhores amigos do estudante de jornalismo em questão são publicitários, e ele mesmo já se candidatou para estágios de PP por interesse próprio pela área.

A professora e esse outro cara, obviamente, fizeram uma piada infeliz. Muito infeliz. Às vezes acontece isso, o humor falha, o sarcasmo é incompreendido e passamos por idiotas. A solução talvez fosse criar um reformatório do humor, que poderia substituir a cadeia para a professora. Especialistas ensinariam a fazer uso da ironia de um jeito apropriado. Haveriam cadeiras de História do Humor, onde seriam exibidos as boas comédias mudas dos filmes de antigamente, redação humorística, para não se errar mais o teor dos textos ao redigi-los e um laboratório prático de stand up comedy. Depois de uma aula básica de Teoria do Sarcasmo, alguns vídeos dos melhores momentos de Chandler em Friends iriam guiar os alunos para o caminho certo.

***
Outra: Robin Williams no programa do David Letterman. O cara fez uma gracinha com o Rio, aquele negócio das strippers e do pó. Obviamente o ator não crê que o Rio seja uma cidade de strippers e pó, ele estava brincando com um clichê brasileiro que sabe-se que é exagerado. Ele fez graça com essa visão geral que há no imaginário internacional sobre o Rio de Janeiro, que é apenas uma caricatura, não o negócio real (bom, se bem que o lance da cocaína no Rio de Janeiro... deixa pra lá). Uma caricatura é justamente brincar com o exagero. Nele está a origem da graça. Isso ficou claro para mim, mas não para o prefeito Eduardo Paes, que levou a declaração para o lado pessoal. Já estão falando até em processo. Nunca fui fã do Robin Williams, mas, por algum estranho motivo, me sinto extremamente solidário com ele nessa situação. Nem sei bem porquê.

***
A solução seria anunciar o sarcasmo antes de usá-lo. Isso mesmo. Antes do Robin Williams ter dito aquilo, ele deveria ter virado para a câmera, apontado e dito: "lá vai uma tiradinha com o Brasil!", e, depois da piada, ter falado algo como:
 "Lembrando que isso é uma gracinha exagerada levando em conta aspectos que não condizem cem por cento com a realidade brasileira. É apenas uma caricatura difundida em alguns países mas que não tem um comprometimento fiel com a verdade. Eu amo o Brasil, assim como todos os americanos. Votem nos democratas".
Ia matar o timing, não ia ter graça nenhuma, mas pelo menos não poderiam culpá-lo de nada. No texto escrito isso também é necessário. Talvez colocar uns sinais anunciando o começo e o final de uma tiradinha sarcástica, pra não causar confusão em ninguém. Vai tirar a graça, mas daí ninguém se ofende.

***

- Porra, Lula...
- Sinto muito, companheiro...
- O que foi que eu falei? Você tem que maneirar nas piadinhas.
- Pessoalmente, eu não vi o que eu fiz de errado. Eu estava só brincando que eu era um presidente com dois mandatos e o Gordon Brown nem presidente é.
- O problema foi o sinal, Lula. Os dois dedos levantados em forma de V.
- Ué, era pra ser expressivo. Pra ele me entender. Dois mandatos. Eu não sei falar inglês. Me no speak english.
- Esse sinal é considerado um insulto no Reino Unido. Ele pensou que era outra coisa.
- Como é que eu ia saber?
- Tá, só não faz mais isso, ok? Já bastou aquela piadinha com o Kirschner ser estrábico. Consegui convencê-lo de que você estava só coçando o olho. Eu sempre consertando os seus vacilos...
- Desculpa...
- Sabe o que que eu fiz? Evitei uma guerra. Só isso. Evitei a porra de uma guerra.
- Muito obrigado... eu não sei o que faria sem o meu relações-públicas...

Só pra lembrar que RPs fazem sim muito mais que eventos.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Os comunicadores

Não sei se é bem verdade aquele discurso que diz que, não importa se você faz jornalismo, publicidade ou relações públicas, é tudo comunicação. Tá, tá, todos comunicam, de certa forma, eu sei, mas a frase dá a entender que é tudo homogêneo, que uma profissão tem a ver com a outra. Não tem. Pense num jornalista: ele tem mais a ver com um historiador ou com um cientista político do que com um publicitário. Pelo menos com eles o jornalista teria mais assunto para bater papo. Agora imagine colocá-lo para conversar com um relações públicas numa festa. O jornalista vai tentar puxar assunto sobre o Irã ou a campanha presidencial, e o RP vai escutar desinteressado, balançando a cabeça, esperando por uma deixa para mencionar que ele foi o organizador da festa.

- ...Agora, os EUA precisam se preocupar, pois o Irã negou a proposta de enriquecer o urânio em outros países. Esse era justamente o maior temor dos países do ocidente e de Israel. Assim, os EUA não tem como controlar um possível desenvolvimento de uma bomba...
- Sim, sim. Mas falando em bomba, sabe quem organizou esta festa de arromba? Hein, hein?

Podem ver que, numa faculdade de Comunicação, é possível identificar os alunos de cada curso só com uma rápida olhada. O jornalista é o cara de óculos de aro grosso, com um exemplar de um livro de cinema francês embaixo do braço. Em uma mão, um café; na outra, um cigarro. Para cada tragada, dois goles de café, ou vice versa. O publicitário é o que está com as roupas moderninas, ironicamente adquiridas num brechó. No rosto, óculos escuros, os mais espalhafatosos possíveis. As meninas usam cabelo curto pintado em tons de vermelho, ou então descoloridos. O RP é o que não está de All Star. Simples assim.

***

Converse com um jornalista e você vai se entediar. É incrível como alguém que vê tanta coisa e tem tantas histórias pra contar não sabe como fazê-lo de um jeito interessante. É consenso que um jornalista, mesmo que seja um bom entrevistador, nunca pode ser entrevistado. Jornalista não sabe falar. Quando dá uma palestra, sempre o faz de um jeito maçante. O RP não. O RP pode não ter nada pra contar, mas o contará do jeito mais energético possível. Ele sabe fazer uma história inexistente virar uma epopeia. Por outro lado, isso pode também ser uma característa inerente às mulheres, e não à profissão, já que 90% dos RPs são mulheres. Os 10% restantes, como se sabe, são homens que não conseguiram entrar para Jornalismo.

Os publicitários ficariam em algum lugar entre os RPs e os jornalistas. Os jornalistas são fechados, os RPs são exageradamente sociáveis, os publicitários são mais ou menos. Numa festa de Comunicação, estarão lá: todos os RPs, metade dos publicitários e uns cinco jornalistas. Que ficarão conversando entre si, possivelmente sobre o Irã ou a eleição presidencial. Os RPs tentarão conversar com todo mundo, o que resulta em trocar de círculo de conversa a cada cinco minutos. Os publicitários vão falar com quem conhecem, e era isso. Eles são o fiel da balança. Não puxam nem para um lado, nem para o outro. Na real, não fazem muita coisa. Por mais que seja preciso estudar para se dar bem em uma profissão, convenhamos: Publicidade, das três, é a menos puxada. Inclusive, tem gente que entra em Publicidade só porque o curso tem essa fama de ser fácil, de só precisar ser criativo. Não é verdade, é claro, mas isso faz aumentar e muito o número de vagabundos por metro quadrado do curso.

***

Um amigo meu (publicitário) inventou a seguinte situação, para demonstrar como funcionam as diferenças entre os três profissionais: num trabalho em grupo, os RPs conversam entre si, discutindo cada aspecto do trabalho, de forma que o resultado final espelhe a opinião de todos. Os jornalistas dividem o trabalho entre si, cada um fica com uma parte e a faz sozinha. Os publicitários ficam desenhando.
Acredito que seja bem por aí. Seguindo o modelo, inventei outras situações onde pode-se notar a diferença entre os cursos:

No fim do mundo:
Os RPs se reunem para todos ficarem juntos no momento final, e se abraçam, e dizem o quanto cada um foi importante na sua vida. Aproveitam o grande número de pessoas reunidas para organizar um grande evento, que precisará ser melhor que os eventos de final de ano, afinal, vamos combinar, é uma festa de Final de Mundo, precisa ser do caceta. Os jornalistas, informados, já sabem o dia exato do fim do mundo há muito tempo, e vão se esconder nos seus bunkers individuais, previamente construídos, onde organizaram suprimentos de livros e uma videoteca do Antonioni. Os publicitários ficam desenhando.

Numa revolução: 
Os jornalistas se polarizam, alguns defendendo com todos os argumentos a revolução, outros chamando os revolucionários de tudo, de fascistas até rameiras do Lênin; depois, são contratados pelo jornal de ideologia contrária e mudam completamente de opinião. Os RPs se botam na frente dos tanques, distribuem flores numa ação de imagem previamente planejada e pedem que todos se deem as mãos. Os tanques passam por cima deles. Os publicitários ficam desenhando.

Num enterro:
O jornalista comparece, demonstra seu respeito pelo defunto, depois olha a toda hora para o relógio, perguntando-se se pega mal sair muito cedo. Para matar tempo, fica discutindo sobre Cuba com seus colegas. O RP chora compulsivamente, depois pergunta se haverá algum evento organizado para depois do velório. O publicitário chega atrasado, pergunta o nome do defunto por quatro vezes, fica confuso, pensando se está no velório certo, e então se retira para um canto. Possivelmente para ficar desenhando.

Num jogo de pôquer:
O RP fica dizendo que não gosta de jogar, porque não sabe mentir. Mas isso é uma mentira. O jornalista faz pacto com um dos adversários previamente, depois o sacaneia, pega todas as suas fichas e ganha o jogo. O publicitário se pergunta por que ninguém fez canastra ainda.


Numa estreia de cinema:
Os RPs riem (ou choram, depende do filme) alto, e conversam no meio do cinema, para descontento do jornalista, que está vendo o filme sozinho, num assento próximo, e odeia que atrapalhem o seu processo de imersão na película. O publicitário acha o filme muito bom, mas gostaria de ter chegado na hora para ver o início.


Numa entrega de trabalho:
O jornalista faz o trabalho correndo, na madrugada do dia da entrega, movido a café. O trabalho fica bom, mas ao entregá-lo ele acaba por não notar a mancha de café na capa. O RP faz um trabalho com o dobro de folhas que o professor pediu, e escreve um recadinho para o mestre desculpando-se caso ele ache que faltou alguma coisa. O publicitário não faz o trabalho.

Num perfil de Orkut:
Jornalista: foto de perfil em preto-e-branco, humor seco/sarcástico, citações de escritores europeus na descrição do perfil.
Publicitário: lista de música/banda preferida com cinquenta bandas indie que ninguém ouviu, álbum de fotos com todos os tipos de cabelos que já usou.
RP: dois perfis lotados.

Eu acho que deixei claro o meu ponto.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A lady

É mais do que normal passar por situações que dão errado. Você planeja tudo, nos mínimos detalhes, para que seja perfeito, mas tudo não sai perfeito. Tudo sai o oposto do perfeito. Sai uma caca. É sua culpa? Bem, é, na verdade. Mas às vezes há situações em que o Destino, esse safado brincalhão, parece querer implicar com você. Não culpe o Destino: a culpa é de uma mulher. Uma temperamental, sacana, sem noção, que aparece de vez em quando para ferrar com a sua vida. A lady. A Lady Murphy.
De lady, só o nome. A Lady Murphy é uma vadia e ela sabe disso. Ela sempre estará presente ao longo da sua vida, fazendo manifestações em horários inapropriados. Quando algumas coisas fogem do controle, não se irrite, é normal. Agora, quando tudo o que podia dar errado dá errado, pode ter certeza que há um dedo da lady nisso. É ela quem transforma um fail num epic fail. É ela quem fará seu carro estragar quando você está indo ao hospital para o parto do seu filho. E todos os táxis estarão ocupados. E o que não estiver será assaltado. E, quando você finalmente chegar no hospital, saberá que era alarme falso, apenas contrações mais fortes que o normal. Malditas mulheres.

***

O Nando volta do banheiro com a cara encharcada. Na mesa da praça de alimentação do shopping, a Jana o está esperando há algum tempo.
- Credo, Nando! O que houve?
- Nada, só joguei uma água no rosto para me acordar.
Ele senta de frente para ela. Finalmente, depois de anos de espera do Nando, a Jana terminara com o namorado. Desde que a Jana contara ao Nando que o namoro não ia bem, há um tempão atrás, aquela chama tênue de esperança que sempre existira dentro dele virara uma grande fogueira. Só não esperava que ela ainda demorasse um ano para finalmente decidir largar o Paulo. O Paulo era o ex. Tudo bem: Nando esperou pacientemente por todo esse tempo, e agora o momento chegou. Ela está livre. A mulher dos seus sonhos, só esperando por ele tomar uma atitude. Por causa de Jana, Nando entrara na academia e começara o tratamento contra as espinhas. Se preparara física e psicologicamente para o momento de hoje. Porém, quando nos vemos confrontados com algo que parecia ser tão distante, apenas um sonho futuro, é normal ficar nervoso. Nando esperara muito por esse dia, e agora não poderia desperdiçar o momento.
- Pois é, achei estranho você marcar de almoçar comigo no meio da semana... achei que os seus horários eram meio apertados - diz ela enquanto saboreia a sua refeição.
- Pra você eu sempre acho tempo. Sempre.
- Desculpa, não ouvi.
- Nada. Come aí.
Ele já havia terminado a refeição. Havia comido extremamente rápido, e queria que ela também o fizesse. Planejou que o momento deveria ser logo após o almoço. Tinha ensaiado tudo. Primeiro, a isca:
- Sabe que eu tenho uma colega de intercâmbio que está dando em cima de mim...
- Ah, é? - disse a Jana, curiosa.
- Ah, sim, se vazando horrores. Litros. É alemã.
- As alemãs são bem safadas, mesmo. É bonita?
- Ô. Todos os meninos da sala ficam babando por ela.
- Eita. Então vai em frente!
Era agora.
- Sabe, eu acho que não... - diz ele, coçando a cabeça.
- Ué, porque não? Você não disse que ela era bonita?
- Sim, mas, por mais linda que ela seja e por mais que todos os caras quisessem estar no meu lugar, eu acho melhor não fazer nada...
A Jana estranha:
- Como assim?
- Eu acho que tem mulheres mais certas para mim...
- Ah é? Tipo quem?
- Ah, mulheres que são lindas mas também são interessantes, divertidas, engraçadas...
- Que papo de bicha. A alemã tá te querendo. Vai nela.
- Ah, mas eu disse que eu queria uma mulher interessante, divertida...
- E como você sabe que ela não é isso tudo? Eu tô te dizendo, se eu fosse homem, eu ia atrás dela.
- Mas, mas...
- Já chega grudando.
- Mas eu não quero ela, eu quero outra pessoa!
- Quem?
- Ah, você sabe, quer dizer, acho que você já sabe, não sabe?
- Não, não sei! Ai, me conta! Quem é? - ela se debruça sobre a mesa para ouvi-lo melhor, seus olhinhos brilhando. Nando fica nervoso.
- Eu, quer dizer, ah, ah...
- Quem é? Eu conheço?
- Eh... sim, sim, é uma amiga minha.
Ela volta a sentar direito.
- Ih, então vai pra alemã, que eu conheço as tuas amigas e elas são todas feias.
- Não, você não entendeu ainda? Não são elas... é... é...
- Então é quem?
Nando se sente mais nervoso.
- Nossa, Nando, como você está pálido... - Jana o olha com preocupação.
- É? Não sei, estou? Ah...
- Tá passando bem?
- Estou bem. Olha, eu queria dizer que você está linda, quer dizer, é linda, quer dizer...
- Oi?
Nando se sente enjoado. Uma sensação quente começa a subir pela sua garganta.
- Eu... olha só, eu...
Nando sente um refluxo. A sensação quente quase passa da garganta. A cara de Jana mistura medo, nojo e preocupação.
- Com li-*refluxo*-licença!
Nando sai em direção ao banheiro.
- Nando! - Jana vai atrás dele.

***

- Desculpa aê a demora.
- Imagine. Você estava mal. Foi a comida?
- Sei lá. Deve ter sido.
- Tá, tá, só fala mais pra lá, por favor. Olha, acho que eu vou embora, então.
- Mas já? É tão cedo.
- Pois é, mas sei lá, melhor eu ir...
- Espera, senta aí que eu tenho uma coisa muito importante pra falar contigo...
Os dois sentam num banco no meio do shopping. Desde que saiu do banheiro, Jana notou que Nando consumia freneticamente vários Halls que tirava de uma embalagem do bolso. Nando saca a embalagem novamente e pega dois de uma vez. Oferece à Jana, que recusa.
- Eu esperei por muito tempo por esse momento... - diz ele, num tom de voz supostamente sedutor.
- Hein?! - Jana confusa. Ele pega na mão dela.
- Eu tenho tanta coisa pra te dizer, mas eu acho que palavras não são o melhor jeito para isso...
- O quê?
- Fecha os olhos.
Nando se aproxima. Jana consegue sentir seu hálito de Halls misturado com uma leve fragrância. De vômito. Seu sentido de aranha desperta.
- Epa. Vamos com calma.
- Como assim?
- Peraí. Vamos conversar.
- Conversamos depois. Agora fecha os olhos que eu quero te mostrar uma coisa...
- Não! Sai pra lá!
Jana empurra o Nando para longe. Ele parece chocado.
- Credo, Nando, que nojo! O que você tá fazendo?
- Você não entende? Eu te amo, Jana, eu te amo! Antes você estava com o Paulo, mas agora não está mais, e nós podemos ficar juntos! É perfeito! - ele volta a se aproximar dela.
- Peraí, chega pra lá! Como assim, você me ama?
- Eu posso te dar tudo o que ele não te deu. Eu posso te fazer feliz. É só fechar os olhos...
- Não, Nando! Eu não quero nada com você!
Nando para.
- Por que não?
- Olha o que você tá dizendo! A gente é amigo! Eu não quero ficar com você!
- Mas, mas eu esperei por tanto tempo...
- E que mau gosto de me falar isso agora! Eu acabei de acabar com o Paulo! Pô, me dá um tempo!
Nando muda a postura. Fala num tom mais agressivo:
- Dar um tempo? Eu esperei um ano -UM ANO!- pra você acabar de vez com o Paulo, ouvindo você falar mal dele, dizendo que ele não te dá atenção e coisa e tal... - seu lábio inferior começa a tremer - Não me fale sobre esperar!
Para a surpresa de Jana, Nando começa a chorar. Desesperadamente. Os passantes viram as cabeças para ver o que está acontecendo. Jana está morrendo de vergonha: não tem a mínima ideia do que fazer. Tudo o que sabe é que precisa fazer o Nando parar de chorar de algum jeito. Tenta uma mão amigável no ombro.
- Calma, Nando, calma...
Nando levanta a cabeça e olha para ela com o olhar mais odioso que consegue fazer. Jana nota que suas lágrimas desenharam pequenas trilhas no creme anti-acne de seu rosto.
- Se você não me quer, eu não quero mais saber de você! Me corta! Me corta do teu Orkut, me bloqueia do teu MSN... espero que a gente nunca mais se fale!
Nando espera uma reação desesperada de Jana para não perder o amigo, mas ela não fala nada. Apenas olha para os lados calculando quantas pessoas estão vendo a cena. Mais do que ela gostaria, conclui. Nando tenta mais uma abordagem:
- Vamos lá... no fundo, você sabia que eu gostava de você esse tempo todo... no fundo, você sabia que eu te chamei aqui pra te dizer isso... e você veio mesmo assim. Você gosta de mim. Vamos, diga o meu nome, diga...
- Paulo!
- Não! É Nando! O meu nome é Nando!
Mas ela nem ouve: se levanta e vai correndo abraçar o Paulo, que, por pura coincidência, está passando pelo local junto com dois amigos. O Paulo olha surpreso para a ex-namorada enquanto ela o abraça, desesperada.
- Ai, Paulo, ainda bem que você está aqui! - diz ela, e depois cochicha em seu ouvido: - Por favor, me tira daqui!
O Paulo olha para a sua ex, olha para o Nando, que está olhando pateticamente os dois abraçados, soma dois mais dois e se dá conta do que está acontecendo. Subitamente se sente muito bem consigo mesmo.
- Ah, quer que eu te leve pra casa? - pergunta ele.
- Sim, sim, por favor! Eu faço qualquer coisa!
- Tá certo. Só vamos nos despedir do seu amigo...
Paulo caminha decidido em direção ao Nando, arrastando junto a Jana, que não tem tempo de negar a proposta. Ele é mais alto que o Nando e bem mais bonito. Os dois nunca haviam se encontrado.
- E aí, cara! Prazer, eu sou o Paulo.
Estende a mão para o Nando, que o cumprimenta, abobado. Depois continua:
- Olha só, a Jana (passa o braço em volta dela) vai voltar comigo pra casa. Acho que ela vai se despedir agora.
- Tá, me espera ali com os seus amigos que eu já vou lá. - diz Jana, indicando os amigos de Paulo com a cabeça. Os dois estão a alguns metros de distância e rindo horrores da situação.
- Não, não - responde o Paulo -, eu estou bem aqui.
E fica parado, olhando os dois, com as mãos nos bolsos.
A Jana se volta para o Nando. Por um momento fica pensando no que falar. Finalmente suspira e diz, como se estivesse se despedindo de um técnico de televisão que viera consertar a antena de sua casa:
- Bom, então é isso!
Nando se levanta. Não vai se deixar humilhar assim.
- Sim, é isso. Agora com licença, eu também vou embora.
Dá uma encarada nervosa, vira de costas para Jana e sai andando, decidido. Alguns segundos depois, ouve ela chamar seu nome:
- Nando!
Ele se vira, esperançoso. Ela está se segurando para não rir.
- A parada de ônibus é pro outro lado!

domingo, 22 de novembro de 2009

A Ângela

Talvez alguns de vocês lembrem da crônica a seguir. Ela ficou no blog por menos de uma semana, sendo retirada após eu ter recebido reclamações por a personagem da história lembrar demais uma pessoa real, que poderia ficar ofendida com o texto. Reitero aqui que todos os textos presentes no blog "O Gato Sério" são puramente ficcionais, no máximo baseados livremente em eventos ou pessoas reais, mas nunca cem por cento retirados da realidade. Portanto, qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais são apenas isso, semelhanças, e as personagens não são de jeito algum transposições diretas de pessoas reais para o meio ficcional. Era isso. Aproveitem a leitura.

***

A Ângela era perfeita. Um anjo, poderia se dizer. Nunca ninguém havia visto uma menina tão prendada quanto ela - e prendada era a palavra certa. Ela, acreditem, costumava limpar a casa por hobby. Por hobby! Não bebia -nem refrigerante!-, dormia às nove da noite e levantava às seis e meia. Nos fins de semana. E era linda. Os garotos se derretiam por sua beleza. O problema é que a Ângela não ficava, simplesmente. Não, não, senão não seria a Ângela, a pura Ângela. A Ângela era garota de se namorar firme. De se casar. E ninguém se importava com isso: quem pegasse a Ângela não iria querer largar nunca. Era consenso. Todos desejavam a Ângela, mas chegar às vias de fato era complicado. Era preciso criar terreno, se aproximar aos poucos, como se estivesse caçando uma gazela. Era preciso fazer ela se acostumar com a sua presença antes de dar o bote. Não era só chegar e perguntar "e aí, rola?," porque a Ângela não era assim. A Ângela era pura.

E foi para a surpresa de todos que o Marcelo apareceu certo dia dizendo que estava namorando a Ângela. O Marcelo não tinha nada de especial. Mas todos tiveram que reconhecer que ele se esforçou bastante para alcançar a sua meta. Foram meses de preparação de terreno, de conversar, marcar programas e eteceteras. E ele finalmente tinha conseguido. O Marcelo estava feliz. Exibia a namorada como um troféu, e todo dia falava dela ela para os amigos.
- Ela é perfeita. Ela faz de tudo. Ela cozinha maravilhosamente, ela pinta telas!
- Pinta tipo o quê?
- Ah, sei lá. Mas ela pinta. E borda. Sim, ela sabe até bordar! Mulheres assim não existem mais.
E os outros concordavam. Não existem, mesmo. Estava claro que o Marcelo nunca iria largar a Ângela. A Ângela era o ápice. Ele nunca encontraria ninguém melhor que ela. Melhor dizendo, não existia ninguém melhor que ela.

***

Certo dia o Marcelo sumiu. Sumiu, assim, de repente. Os amigos ligavam para a sua casa e ninguém atendia. A Ângela estava em prantos. Não entendia o que aconteceu. Procuraram a família do Marcelo, que disse apenas que ele se mudou. Pra onde? Não sabiam. Por quê? Não davam maiores explicações. Os amigos do Marcelo começaram a discutir o ocorrido. O que poderia ter acontecido para um cara como o Marcelo sumir do mapa, assim, sem aviso? E ainda mais deixando a Ângela, a pura Ângela, a mulher perfeita, para trás? A não ser... a não ser que a Ângela fosse a causa do sumiço. Uma facção dos amigos defendia a tese de que o Marcelo se frustrou por ter chegado ao ápice tão cedo. Certas pessoas têm um objetivo na vida, como ficar rico, encontrar a mulher ideal, e passam a vida perseguindo essa meta. O Marcelo tinha encontrado a mulher ideal muito cedo. Não tinha mais objetivos. Resolveu começar tudo de novo, do zero. A outra facção dizia que não, é impossível se cansar da Ângela. Simplesmente porque a Ângela é perfeita.

Finalmente um amigo apareceu com notícias do Marcelo. Estava em um mosteiro budista. A turma toda resolveu se reunir para falar com ele. Mas acharam melhor não levar a Ângela. Encontraram-no de quimono, rodeado por incensos. Estava meditando, na posição de lótus. Quando abriu os olhos e viu os amigos, tomou um susto.
- C-como vocês me acharam?!
Os amigos logo saíram perguntando o que deu nele para sumir assim, sem avisar ninguém. E, afinal, o que ele estava fazendo num mosteiro? O Marcelo não quis falar. Era horrível demais remoer as lembranças. Os amigos insistiram. Um, mais corajoso, perguntou:
- Foi a Ângela?
Ao ouvir esse nome, o Marcelo deu um gemido. Depois confirmou. Foi a Ângela, sim. A facção da teoria do ápice comemorou. Estavam certos! Mas não, desmentiu Marcelo, não foi por isso que ele sumiu.
- Eu, enjoar dela? É claro que não! A Ângela era perfeita!
Arrá, bradou a outra facção. Mas, afinal, se não foi por ele ter enjoado da Ângela, o que ela teve a ver com o sumiço? O Marcelo relutou um pouco, mas contou. Ele fugiu um dia depois de ter ido pela primeira vez na casa da Ângela. Para conhecer os pais.
- Ah, você não se deu bem com o sogro, foi isso?
Não, não foi isso. Tinham se dado super bem. Os pais dela eram ótimas pessoas e, para a sua surpresa, gostaram dele. Quando a Ângela tinha se retirado para lavar a louça, o Marcelo não resistiu e parabenizou-os. Pelo quê?, perguntaram. Por terem feito ela, oras! Todos riram, enfim, estavam todos de bem com a vida.
- E então, o que aconteceu?
Depois do almoço, a Ângela convidou-o para visitar o seu atelier. Nesse ponto, o Marcelo deu uma pausa. Não sabia se queria continuar contando. A lembrança era terrível demais. Se soubesse que a sua vida estava prestes a ser destruída, disse ele, nunca teria entrado naquele atelier. Viveria feliz para sempre, com a Ângela, amando-a até o fim da vida. Contanto que não entrasse nunca no atelier. Os amigos pediram para ele ser forte. Marcelo respirou fundo e continuou a história. Desceram para o atelier, que ficava no porão da casa. Ângela estava muito entusiasmada; queria mostrar a sua série de quadros para Marcelo. Tratava-se de uma série de releituras de uma mesma obra sua: O Falo.
- Por "falo" você quer dizer...
- Isso mesmo.
Então Ângela ligou a luz do porão e Marcelo teve a visão que destruiu a sua vida: quadros e mais quadros retratando falos e mais falos. Enquanto Marcelo observava atônito, Ângela explicava que esta série era uma obsessão sua. Como Monet e as suas pinturas da catedral. Não sabia por quê, mas tinha aquele impulso de pintar falos. Pintava-os e repintava-os e então pintava mais. Eram a sua temática preferida. Ângela, sorrindo, perguntou para Marcelo o que ele achou. Marcelo estava mudo. Não queria olhar para os quadros, mas não conseguia desviar os olhos. Como quando se olha um acidente de trânsito. Aqueles falos eram o acidente da sua vida. Deu um jeito de sair dali. No dia seguinte, foi para o mosteiro.
- Vocês entendem? Existem três coisas sobre as quais eu baseio a minha vida: a Terra é redonda, o céu é azul e a Ângela é pura como um anjo. Só que eu descobri que ela é um anjo pornográfico. Que nem o Nelson Rodrigues, o do "Bonitinha mas Ordinária," sabem?
Marcelo contou que sentiu como se tivessem puxado um tapete sob seus pés. Perdera totalmente os seus pontos de referência, se sentira totalmente desnorteado. O mundo estava louco, não estava fazendo sentido nenhum. Decidira entrar em profunda meditação e se desconectar do plano material da existência. Aquele mundo não era mais para ele.
- Agora, se vocês me dão licença, eu gostaria de continuar a me fundir com o nada.
Resolveram deixar o Marcelo no mosteiro; notaram que era um caso perdido. Saíram de lá discutindo a descoberta. Mas que coisa, a Ângela, com aquela cara de santa... realmente perturbador. Mas, ao invés de se internar num mosteiro como o Marcelo, acharam melhor esquecer da descoberta tomando umas cervejas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O lado vencedor

Estávamos eu e meu amigo Lucas Costa fazendo o que fazemos de melhor: discutir. Desta vez sobre ideologias: ele tomando o lado do capitalismo, eu do comunismo. Apenas um debate saudável, nem eu nem ele somos radicais nas nossas posições, mas o negócio acabou evoluindo de forma acalorada. Para encerrar o debate, O Lucas disse uma frase que até hoje não desceu pela minha garganta: "bom, pelo menos o capitalismo funciona". Na hora não quis replicar, pois a discussão estava se encaminhando para o final e despejar meus argumentos naquela hora significaria começar toda a briga de novo. Mas eu tenho algumas palavrinhas para dizer sobre isso. Ah, e como tenho.
Primeiro, é comum inferir no erro de que o lado que vence é o certo. Afinal, por que outro motivo ele seria o vencedor? O fato de o capitalismo ter triunfado na Guerra Fria não é de modo algum uma garantia de que ele é funcional, significa apenas que o comunismo acabou caindo antes. E não vou entrar no mérito do comunismo aqui: não estou defendendo o seu lado, mas sim apontando as falhas do outro. Há uma diferença. Pois bem, com o fim da Guerra Fria começou a era da globalização e o mundo se tornou uno. Um planeta, sob jurisdição de um mesmo sistema econômico. Na teoria, o que deveria acontecer é que a livre circulação do capital não por um país, mas por um planeta inteiro, deveria trazer benefícios para todas as nações. Com as economias ligadas, o aumento no capital, digamos, nos EUA, para pegar como exemplo a nação mais forte, deveria repercutir nas economias de todos os países ligados em sua economia. Por quê, então, desde os anos 90 a diferença entre as nações mais ricas e as mais pobres aumentou ao invés de diminuir?
Agora, ao contrário, um crash na economia estadounidense repercute por todo o mundo, trazendo prejuízos em todas as nações por meio de uma teia de economias interdependentes em que os benefícios não são repassados, mas os prejuízos, em maior ou menor grau, afetam a todos.
O Papa João Paulo II, segundo Lech Walesa o grande responsável pela queda do Muro (vide post anterior), disse certa vez que o comunismo era uma árvore podre, ele só sacudiu-a para que caísse de vez. Um sistema com crises cíclicas de proporções mundiais também é, na minha concepção, uma árvore podre. Os pobres países da África, que após séculos de exploração como colônias viam agora um avanço substancial em suas economias, levaram uma rasteira com a última crise. Como é esperado que eles alcancem as nações mais desenvolvidas tendo que aguentar uma crise dessas a cada século? Onde está a justiça?
Agora, isso é pequeno, muito pequeno se comparado com o pior lado do capitalismo. Há uma faceta muito mais terrível. O capitalismo em sua forma atual não é só falho, ele é, a longo prazo, perigoso.
Lembrem-se que um conceito básico do capitalismo atual é que o lucro vem acompanhado do crescimento, e não há como aumentar o lucro sem desenvolver-se. Na hora em que o capital estanca, o negócio para de funcionar. É preciso que ele se multiplique, gerando o lucro e o crescimento consequente, e mais lucro, e mais crescimento, e mais lucro... ad infinitum. O problema é que vivemos num planeta com recursos limitados. Não há como crescer infinitamente com os recursos finitos da Terra. Não há como frear o crescimento, também, pois um mercado estanque significa a falência da empresas. Não há como crescer mais, e não há como parar. Estamos condenados a chegar a um limite, e estamos nos aproximando dele a passos largos. Assim que o cruzarmos, o caos: crise, desemprego, sem contar problemas ambientais gerados pela exploração agressiva dos recursos naturais, o que tornaria algumas regiões inabitáveis. O capitalismo não funciona. A bem da verdade, funciona tão mal que condenou a todos nós a um futuro totalmente incerto. Se não houver reformas profundas em nosso sistema nos próximos 50 anos, a nossa geração já irá acompanhar essa derrocada. Tem gente que tem medo de 2012. Não tenham: economia é uma coisa bem mais assustadora.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Gorba

Pobre Gorbachev. Cada vez que alguém lhe dá os parabéns por ter desmantelado a União Soviética, ele deve dar um sorriso e, por dentro, se segurar para não socar a pessoa. Ontem, no evento comemorativo dos 20 anos da queda do Muro, quando a chanceler alemã Angela Merkel agradeceu publicamente a ele por ter deixado os eventos finais da Guerra Fria acontecerem sem intervir, Gorba deve ter sorrido o seu milésimo sorriso irônico. Mais uma vez, estavam expondo em rede mundial a sua incompetência em reformar a URSS e em virar a guerra. Incompetência, sim. Se as reformas políticas propostas por ele tivessem saído conforme o plano, a URSS, em primeiro lugar, ainda existiria, e seria algo parecido com a China de hoje: uma república comunista, porém com um mercado aberto e crescimento econômico acelerado. O negócio deu tão errado que em um espaço de tempo curtíssimo já não existia nem mais uma URSS para ser salva.

Gorba virou heroi por ter falhado em sua missão. Analisando friamente, as pessoas na verdade lhe dão os parabéns por ter sido um governista incompetente. Até lhe deram um prêmio por isso. O Prêmio Nobel ganho por Gorbachev foi o maior prêmio joinha da história. Foi mais ou menos como, "ei cara, você fez a gente ganhar a guerra! Tá bom que pra isso você teve que perder, mas, uau, isso é muito legal! Valeu!", seguido por umas palmadas nas costas. Muito bem, Gorba. Muito bem.
Lech Walesa, antigo chefe do sindicato polonês Solidaridad, recentemente tirou o mérito da queda do Muro de Berlim de Gorba. Disse ele que o responsável pela queda foi o Papa João Paulo II, o próprio Walesa e em, certa medida, o resto do mundo, mas não Gorba. Agora nem reconhecem mais o mérito de ele não ter feito nada para salvar a Alemanha comunista. Coitado. Nem pela sua incompetência ele pode ser parabenizado.

Dito isso, quero que fique claro que, mesmo sendo responsável pela derrota da URSS, eu admiro o cara. É sério. Sou fã do Gorba. A missão dele era difícil. A Guerra Fria já se arrastava por décadas. A URSS, depois do atoleiro que foi o Afeganistão, já estava sem recursos. Ao perceber que suas reformas serviram para acelerar a queda do comunismo, ao invés de fortalecê-lo, Gorba não tentou lutar contra: admitiu a derrota. Na queda do Muro, ele poderia se meter e acabar com a festa geral, mas não o fez. É como um homem preso em alto mar: ele pode nadar, mas sabe que cedo ou tarde irá cansar e se afogar. Gorbachev soube na hora que era inútil continuar nadando. Não esperou se cansar. Afundou, sim, mas com honra. Afinal, já que é para ser assim, ao menos afundemo-nos nós mesmos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A chance

Hoje faz 20 anos que o muro caiu. Há exatos 20 anos atrás, a divisão ideológica que separava o mundo em dois foi literalmente botada abaixo para dar lugar ao pensamento único e à globalização. O mundo era enfim um só. 9 de novembro de 89 foi a data do reencontro de milhares de alemães separados durante décadas. As pessoas cantavam e se abraçavam, inclusive com desconhecidos. Não importava: eram todos irmãos, todos finalmente de uma mesma nação.
A queda do Muro talvez seja o meu momento favorito da história mundial, porque foi uma revolução pacífica. Até onde eu sei, ninguém morreu ao derrubar o Muro. A data foi uma festa, uma grande festa, uma celebração. No calor da hora, os alemães presentes não celebravam o fim da Guerra Fria, do comunismo. Para o mundo, esse era o significado geral. Para os alemães, a celebração era sobre o direito de poder derrubar aquela coisa horrível que ficava no meio da cidade, bloqueando a passagem para o outro lado. Finalmente, poderíamos ver o que havia do outro lado. Finalmente poderíamos conversar com as pessoas do lado oposto. Depois de se esperar décadas para isso, não havia tempo a perder: pessoas pegavam marretas e destruíam elas mesmas a barreira. Elas esperaram anos por isso e não queria esperar nem um segundo a mais. Foi um momento de ação. Foi um momento lindo.

***

Se a queda do muro é o meu momento preferido, a Guerra Fria é sem dúvida o meu assunto predileto em História. Eu não acho que é dada a importância merecida à Guerra Fria. Acho que as pessoas gostam mais da II Guerra porque foi uma guerra maniqueísta. Nunca o lado do mal foi tão fácil de ser identificado quanto nessa guerra. Hitler representava o algoz máximo, e os Aliados a equipe do bem que colocou as diferenças de lado para salvar o mundo. EUA e União Soviética que o digam. Mas o conceito da Guerra Fria é muito mais interessante: foi uma guerra de ideologias opostas, capitalismo versus comunismo. O mundo caminhava para ser um só, e, num cenário onde havia cada vez mais interdependência de países, o mundo estava num mesmo carro e precisava decidir se dobrava para a esquerda ou para a direita. Uma ideologia temia ser dominada pela outra. Nenhum deles representava o Mal: eram tão somente dois lados que falharam em coexistir. O medo fez com que se separassem, se isolassem, isolamento esse materializado no Muro de Berlim.
O tempo passou, até que esse isolamento se esfacelou, há exatos 20 anos atrás. Tudo foi muito rápido: cinco dias antes alemães orientais fizeram um megaprotesto pedindo por reformas. Foram boladas novas regras para visitação fora das barreiras orientais: agora poderia-se passar pela fronteira sem precisar de condições prévias além de um visto. O secretário do Comitê de Informação da Alemanha Oriental, Günter Schabowski, acabou falando em entrevista sobre a decisão antes de ser preparada a infraestrutura necessária para colocá-la em prática. O resultado: milhares de alemães se encaminharam para o Muro e não puderam ser contidos. Mandaram um dedo médio para a burocracia e resolveram que aquele seria o dia em que atravessariam o Muro, com ou sem visto.

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Acabou a divisória, mas não o problema de que, afinal, havia duas ideologias regendo a mesma cidade. E é aí que poderíamos ter dado o passo fundamental para a construção de um novo mundo, sem polarização. Poderíamos ter trilhado um caminho do meio, poderíamos, frente a realidade de que agora não éramos mais separados um do outro, entrelaçar as ideias e procurar um jeito de nos entendermos. Não foi o que aconteceu. O capitalismo abocanhou vorazmente a parte oriental de Berlim. Velhos profissionais da Berlim comunista perderam suas funções e ficaram obsoletos. A conversão tão rápida a um novo sistema gerou desemprego e não melhorou a condição de vida para todos os berlinenses. Se antes eles não tinham a condição de crescer monetariamente e viviam com escassez de recursos, tampouco agora conseguem se adaptar à realidade de mercado voraz. Não há mais o antigo sentimento de camaradagem: agora é cada um por si, passando por cima do outro. Isso gera o sentimento da "ostalgia", que é o nome dado à saudade que alguns sentem de certos aspectos da antiga Berlim Oriental.
A Alemanha poderia ter pego os bons aspectos de ambos os lados, combinado as oportunidades de crescimento de uma economia capitalista com um pensamento comunista de companheirismo social, preocupando-se com o bem estar do todo. Não foi o que aconteceu, e agora temos uma Alemanha unida politicamente, mas até hoje dividida economicamente. A união das Alemanhas foi uma revolução, mas a possibilidade de uma revolução maior foi perdida. Mas, naquele 9 de novembro, o futuro não tinha a ver com ideologias: o futuro era o agora, era o reencontro, era a chance de ser, enfim, um só.

***

A fim de comemorar os 20 anos da queda do Muro, durante toda esta semana estarei postando crônicas relacionadas à Guerra Fria. Faço isso porque um marco histórico como esse traz a chance de debater sobre questões que ficaram para trás, mas, ao mesmo tempo, permanecem muito atuais. Até o próximo post!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Enquanto isso, numa mesa de bar...

Podólatra 1: - eu curto um pezinho...
Podólatra 2: - pezinho é tri.
Anti-Podólatra: - eu não sei o que vocês veem num pé.
Podólatra 1: - ah, meu! Vai dizer que você não curte?
Anti-Podólatra: - cara, é só um pé. Qual é a graça num pé?
Podólatra 1: - qual a graça? Vou te dizer qual é a graça... assim que eu pedir mais uma cerveja... garçom! Mais uma!
Podólatra 2: - pé é uma coisa bonita, delicada.
Anti-Podólatra: - pra mim, pé é, sei lá, uma coisa que fica em contato com o chão. Uma coisa suja...
Podólatra 1: - não, meu!
Podólatra 2: - nada a ver!
Podólatra 1: - pelo pé é que se conhece a mulher... não adianta ela ser bonita e ter um pé feio, mal cuidado... o pé mostra a essência da pessoa. Pelo pé é que se sabe se a mulher é uma lady ou se é da roça.
Anti-Podólatra: - tá, então é isso, o fetiche é pelo pé bem cuidado, lisinho, unhas pintadas e tal...
Podólatra 1: - unhas pintadas, não.
Podólatra 2: - unhas pintadas é bagaceiro.
Podólatra 1: - unhas pintadas é bagaceiro. De vermelho então, nem se fala. Mulher de classe não pinta as unhas de vermelho. Deixa bem cuidada, mas não pinta. Pintar é coisa...
Podólatra 2: - é coisa assim, de mulher...
Podólatra 1: - simplesmente não é coisa de mulher direita. Mas como eu ia dizendo... como era, mesmo? Ah, sim, é pelo pé que se conhece a mulher. As extremidades, se bem cuidadas, dizem tudo. Pés lisinhos, mãos lisinhas... A mão também. Mãos lisinhas e delicadas, vai dizer que você não gosta?
Anti-Podólatra: - eu só não sei como tem gente que fica excitada vendo um pé... mão eu até entendo, tem a coisa do toque, é legal. Mas o que eu vou fazer com um pé? Lamber? Não é muito legal.
Podólatra 2: - como não? Só porque você tem essa frescura de que pé é coisa suja.
Anti-Podólatra: - e outra coisa. Homem também tem pé. Imaginem um homem com o pé pequeno e bem cuidado, igual ao de uma mulher. Vocês achariam sexy? Porque não tem diferença.
Podólatra 1: - tem sim! Pé de homem e de mulher é totalmente diferente! Pé de homem é nojento, peludo...
Anti-Podólatra: - tá, tira os pelos, então.
Podólatra 1: - mesmo assim, não é igual. Eu sei, eu já depilei meu pé. Dá pra ver que é pé de homem, com ou sem pelo.
Podólatra 2: - peraí, você depilou o pé?
Podólatra 1: - eu estava em casa de tarde, sem nada pra fazer... sabe como é.
Anti-Podólatra: - vocês falam como se eu fosse estranho, mas é normal não gostar de pé... não quer dizer que eu não tenha nenhum fetiche. Eu curto ruivas, por exemplo.
Podólatra 1: - ah, sim. Mas todo mundo curte ruivas.
Anti-Podólatra: - eu nunca fiquei com uma ruiva. Um dia ficarei. É o meu grande objetivo.
Podólatra 1: - eu também não.
Podólatra 2: - eu já.
Podólatra 1: - uau! Sério? E como é que foi?
Podólatra 2: - normal, até. Vocês conhecem ela. É a Michele.
Podólatra 1: - a Michele não é ruiva. É louro-escura.
Podólatra 2: - cala a boca. Ela é ruiva, sim.
Podólatra 1: - é nada. Louro-escura.
Podólatra 2: - sei. O cabelo dela é mais vermelho que esta parede.
Anti-Podólatra: - sempre me perguntei o que os daltônicos devem achar das ruivas. Acho que eles não devem ver graça nenhuma.
Podólatra 1: - até que ponto dá pra dizer que a mulher é ruiva e até que ponto ela vira louro-escura?
Anti-Podólatra: - sei lá. Ruiva é a que tem sardas...
Podólatra 1: - nããão... nada a ver, você está falando da ruiva-ferrugem. Não é esse tipo de ruiva que você gosta, é?
Anti-Podólatra: - pra mim, ruiva genuína tem cabelo vermelho, sardas e pele muito branca. Qualquer outro tipo é falsificação barata.
Podólatra 1: - e você? O que acha?
Podólatra 2: - acho que é uma questão muito delicada, essa do pé...
Anti-Podólatra: - cara, a gente já mudou de assunto. Faz tempo.
Podólatra 1: - estou descobrindo que você tem gostos estranhos... prefere mulher mais nova ou mais velha?
Anti-Podólatra 1: - eu? Ah, eu curto as mais velhas. Espera... defina velha.
Podólatra 1: - tipo, mais de vinte anos.
Anti-Podólatra: - você considera mulher de mais de vinte anos velha?
Podólatra 1: - sim, são mais velhas que nós. Espera aí, que tipo de velha você achava que eu estava falando?
Anti-Podólatra: - nada não. Deixa pra lá.
Podólatra 1: - hmm... tô sabendo dos teus fetiches... eu já curto uma mais novinha.
Podólatra 2: - eu também!
Podólatra 1: - é, né? Umas adolescentes mais crescidinhas...
Podólatra 2: - bah, eu curto mesmo são as pré-adolescentes.
Podólatra 1: - epa.
Anti-Podólatra: - como assim? Explique-se.
Podólatra 2: - hein? Ah, vai dizer que vocês não curtem?
Anti-Podólatra: - claro que não! Eca! Pré-adolescente, nem peito tem ainda...
Podólatra 2: - espera aí! Estamos falando da mesma coisa?
Podólatra 1: - sei lá, cara, eu acho meio doentio essa coisa de curtir menina de doze anos...
Podólatra 2: - quê? Nãããão! Que idade você considera que é pré-adolescente?
Podólatra 1: - como assim que eu considero? É dos onze aos treze. Está no ECA, eu acho.
Podólatra 2: - onze? Não mesmo! É a partir dos dezesseis, não é?
Anti-Podólatra: - claro que não! E a pessoa vira adolescente quando? Aos dezoito?
Podólatra 2: - eu estava me referindo a garotas de dezesseis anos... dezesseis tudo bem, né?
Podólatra 1: - é...
Anti-Podólatra: - desde que sejam bem desenvolvidas. Que susto, cara, não faz mais isso com a gente.
Podólatra 1: - imagina se alguém ouvisse isso o que você disse?
Podólatra 2: - tem razão, tem razão...
Anti-Podólatra: - que merda, a gente só falando besteira a noite toda... de que adianta? De que nos acrescenta?
Podólatra 1: - tá certo. O mundo não é só pés e ruivas e garotas de dezesseis anos...
Anti-Podólatra: - bem desenvolvidas.
Podólatra 1: - ...bem desenvolvidas, isso. Vamos mudar o assunto.
No bar, há uma televisão onde está sendo exibido um noticiário. Na tela, o presidente da França.
Anti-Podólatra: - é isso! Vamos falar de política mundial!
Podólatra 2: - isso!
Todos olham para a televisão. Silêncio. Então:
Podólatra 1: - do Sarkozy eu não sei, mas aquela Carla Bruni tem um pezinho...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O tio chato

É universal: todo mundo tem um tio gordo, careca, beberrão, que depois dos churrascos de domingo dorme no sofá da sua sala e, sempre que o vê, faz a fatídica pergunta:
- E as menininhas?
Ah, ele sempre quer saber das menininhas. O seu tio não dorme sem antes saber das menininhas. Ele poderia puxar assunto sobre tudo: política, economia, cinema europeu. Mas não. Ele é um tio descolado. Ele quer provar que é legal. Ele quer saber é das menininhas.
- E aí? E as menininhas?
Talvez o tio pense que precise conversar sobre coisas que você se constrange de falar com seu pai. Por algum motivo, que só é compreensível para o seu tio, é menos embaraçoso você falar sobre isso com ele. O que não faz sentido, porque numa regra geral os tios que fazem esse tipo de pergunta são os que você tem menos intimidade. Talvez esse seja o jeito que o tio chato vê de se aproximar de você, o sobrinho. Só que o que você menos quer é bater papo com alguém da família sobre sua vida sexual. Ou a falta dela.
- E aí? Como é que andam as menininhas?
- É, pois é...
E o que mais ele espera de resposta? Um "pois é" é muitas vezes usado para cortar o assunto sem ser grosso, e, falando francamente, não há muito mais opções para responder a esse tipo de pergunta. Físicos e estudiosos já pesquisaram respostas melhores, mas, por mais capenga que seja, a melhor solução encontrada ainda é o "pois é". Um "pois é" com um sorriso sem graça, e torça para que o assunto morra logo.
Mas não. O verdadeiro tio chato não desiste fácil. Ele vai tentar emendar com uma pergunta mais direta, mais incisiva.
- Pois é, tio...
- Tá se dando bem com as menininhas ou não?
No que se segue uma risada divertida porém debochada do tio. Você ri junto, enquanto imagina como seria bom se uma fuinha selvagem aparecesse agora mesmo, nesse instante, e pulasse na cara do seu tio. Você tem vontade de fazer exatamente o que a fuinha faria. O tio termina de se deliciar com a risada, e fica olhando pra você, ainda sorrindo, esperando uma resposta.
-E aí?
Se você está feliz com o seu desempenho atual com as "menininhas", então você pode contar para o seu tio, sem problemas. Mas você não estará. Não, não, pois a lei física que rege a pergunta das menininhas diz que o seu tio só a perguntará para você quando você não estiver se dando bem com as menininhas. Você, na sua passagem da infância para a adolescência, quando existe a vontade mas não há condescência do sexo oposto, ouvirá muitas vezes a pergunta do tio chato. Quando você abandonar essa fase e virar um garanhão, o seu tio nunca mais vai perguntá-lo sobre as menininhas. Caso você cresça e continue um merda, a pergunta o seguirá até a morte. De um ou do outro.
Neste caso só há uma opção: mentir.
- Ah, vão bem, vão bem.
- Arrá, rapaz. E são muitas?
- Ô. Uma atrás da outra.
Pode ser mais categórico:
- Estou muitíssimo satisfeito com o meu desempenho com as ditas "menininhas". Obrigado por perguntar.
Ou desistir de vez e ser sincero:
-Não tio. Não pego ninguém. Na verdade, sou um repelente de mulheres. Se eu fosse um imã, a minha polaridade seria inversa a da delas. Eu permanentemente as afasto da minha volta. Ultimamente, então, estou numa fase em que não pego nem resfriado. É sério, neste inverno todo mundo lá em casa pegou, mas eu não. Nem os vírus me querem. Sinto muito.
Se você responder assim o seu tio certamente nunca mais fará semelhante pergunta. Mas se ele continuar, não há opção a não ser pular na cara dele como uma fuinha selvagem.

***

Recentemente estávamos falando sobre esse tópico no programa Congestão, e fiquei feliz quando soube, pela minha amiga Marcella, que as mulheres possuem uma versão feminina do tio chato. Bom, não exatamente feliz, mas senti que o peso diminuiu ao saber que este fardo é compartilhado com o sexo feminino. Só que no caso delas pode ser a avó, e não a tia. E a pergunta é mais agressiva:
- E os namoradinhos, netinha?
Só que a pergunta é feita não de modo descontraído, tipo "e os namoradinhos, rárá", mas com um tom inquisidor. E os namoradinhos? Onde estão os namoradinhos? Por que eu nunca vejo você com um homem? E às vezes a pergunta é seguida de uma afirmação, quase que uma ameaça:
- Ah, se eu fosse você eu ia atrás de algum homem...
- Ah, sim, vó, pode deixar, hoje eu vou pra festa e vou dar para o primeiro que aparecer. Quer saber, para o segundo também. E pra mais quem quiser. Inclusive, vou chegar já anunciando: "dou pra quem quiser". Vai encher de homem em volta. Aí eu compenso todas as vezes que eu te decepcionei. Tá bom pra senhora? Não é isso o que a senhora quer?
Às vezes um pouquinho de ironia também é bom.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Classe B

A Classe B se vê ameaçada. Seu espaço está sendo ocupado pela Classe C, que cresce desenfreadamente. A Classe C está tomando coisas que antes eram exclusividade da Classe B e A: máquina digital, computador, DVD player. O celular já foi perdido há tempos. A Classe B não gosta de dividir com a Classe C. A Classe C é chinela. A Classe C não tem cultura. A Classe C contamina os setores que antes eram um ponto de segurança da Classe B.
Um exemplo é a internet. A Classe B considera a inclusão digital a pior ideia da história. Antes, a Classe B era obrigada a se misturar com a Classe C durante o dia-a-dia, mas pelo menos o reduto virtual era exclusivo para os mais abonados. Agora, com surtos de lan houses nas vilas e computadores com acesso a internet com preços, bem, acessiveis, a Classe B tem que suportar milhares de perfis da Classe C poluindo o Orkut. E a Classe B não gosta de suportar. Ela já tem que suportar não ser Classe A, e agora ainda tem que suportar a Classe C, invadindo o seu espaço. A Classe B jura que, da próxima vez que ver um perfil no Orkut de alguém com o nome terminado com "son", ela vai se dar um tiro. Estejam avisados.

***

Esse ódio vem muito de uma crise de identidade: se a Classe C está virando a Classe B, e a Classe B não está virando a Classe A, então o que ela vai ser? A Classe B se considera a Classe A com menos dinheiro. Com o seu espaço tomado pela Classe C, ela naturalmente vai procurar por espaços onde a Classe C não possa entrar. Só que a Classe B não tem dinheiro para entrar nestes espaços. Estes espaços pertencem à Classe A, que assiste ao dilema da amiga de cima de sua cobertura, com um sorrisinho e uma taça de champagne na mão. Então aí está o problema: a Classe B quer sair do mundo Classe C e viver no mundo Classe A, mas não possui dinheiro. Então ela tem duas opções: ou se resigna a viver com a Classe C ou segue enganando até onde puder.

- E aí, Bê! Vamos na nova casa de festas que abriu ontem?
- Vamos! Quanto é a entrada?
- Só 20 contos.
- Irc! Quer dizer, não sei. Talvez a gente pudesse ir em outro lugar. Ouvi dizer que lá não é muito legal...
- Se entrar antes da meia-noite sai por 15.
- Argh... tá, tá bem. Só que eu não vou gastar em bebida. Sabe como é, estou tomando um remédio lá, não dá pra ingerir álcool junto...
- Ah, ok.
- E olha só, não rola uma carona? Eu até iria de táxi, na boa, mas sabe como é, eu tenho ouvido essas histórias sobre estupradores, podem ser qualquer um... vai saber, né.
- Ah, sim.
- Melhor não arriscar.

domingo, 25 de outubro de 2009

O jardim

Lembro da minha infância querida, correndo no jardim de casa com os meus amigos. Sentia o vento no rosto, a grama no chão e o cheiro das plantas. As plantas têm perfume: não só as flores, mas também as árvores, as folhagens. Era tudo uma profusão de cores e cheiros, uma sinestesia de sensações. Era livre, e, acima de tudo, era feliz. Era muito fácil ser feliz, então: não precisava mais do que o canto dos pássaros para me fazer sorrir.
Na primavera de meus cinco anos, tive meu primeiro ataque de rinite crônica. Problema comum, mas o meu era pior que o normal. Vocês devem imaginar o que foi para mim passar uma estação inteira sem sentir os perfumes que antes me faziam tão feliz. Correr e pular e brincar com meus amigos não tinha mais a mesma graça, era uma experiência incompleta. No mesmo ano, ganhei um violão de meu pai. Arranhar suas cordas me dirvertia, gostava da sensação de sentir o ressoar das cordas soltas na caixa do instrumento, apesar de, em tão jovem idade, não saber tocar nada. Mas não precisava de mais do que isso. Só a sensação de sentir-me dono daquele som me fazia rei, de poder eu brincar com as notas, mesmo fazendo algo que não poderia ser chamado de música. O violão, naquela época, era literalmente um brinquedo meu.
Aos sete anos descobri a música clássica. Chopin, Mozart, Bach, Tchaikovsky. Quanto mais eu descobria, mais me interessava. Comecei a encarar a música a sério. Depois de um tempo, só ouvir não me satisfazia: sentia o ímpeto de eu mesmo gerar aquela música. Peguei meu violão e decidi aprender a tocá-lo de verdade. Com a ajuda de um professor, treinava todos os dias. Castigava meus dedos, mas gostava. Para cada calo, para cada bolha, sentia-me mais feliz, mais experiente. Estes foram os momentos que, mais tarde, levariam a tornar-me músico clássico.
Minha rinite piorou. Agora ela durava mais da metade do ano. Os médicos disseram que a situação iria continuar ruim até os meus 11, 12 anos. A partir daí, iria melhorar. Para amenizar, os meus pais tentaram medicação homeopática. Não funcionou. Enquanto isso, continuava tocando o meu violão. Entrei para a orquestra da escola. Era o mais jovem dos músicos, mas um dos melhores. Meus professores viram o meu talento e encorajaram que eu seguisse carreira. Foi o que eu fiz.
Terminei o segundo grau sem ter me curado da rinite. Mudei-me para a capital e ingressei na faculdade de Música. Adorava aquela atmosfera. Por todo o lado respirava-se música. Tocava os clássicos durante o dia e à noite escrevia secretamente minhas próprias composições. Queria reproduzir a sensação que eu tinha ao ouvir o canto dos pássaros em minha infância. Aquilo era a verdadeira música: sem escala, sem métrica, mas emociona a quem ouve. Meus mestres me tinham em grande estima. Terminei o curso já indicado para tocar em uma grande orquestra. Apesar de estar junto com grandes talentos, esforcei-me para me destacar, e tive sucesso. O meu sucesso causou ciúmes em muitos músicos. Havia muita competição, muita gente querendo passar por cima dos outros. Eu estava muito cedo ocupando um lugar de prestígio. Não era olhado com bons olhos. Meus veteranos me esnobavam. Meus comtemporâneos queriam o meu lugar. Antigamente era mais fácil fazer amigos. Isso me incomodava.
Por volta dessa época comecei a perder a visão. Começou aos poucos, como apenas um desfoque. Imaginei que uns óculos curassem esse problema, mas, por me dedicar integralmente à música, nunca achava tempo para ir a um oculista. Depois de uns três anos a situação se tornou insustentável, e tive que me consultar. A resposta me atingiu violentamente. Eu ia ficar cego. Não havia nada a ser feito. Segundo o médico, eu ainda tinha algum tempo de visão, anos, talvez uns dez. Por ensaiar muito tempo, conseguia decorar as partituras, o que fez com que a minha pouca visão não fosse problema. Conseguia enganar, e, enfim, ainda tinha a minha música, o que me servia de consolo.
Por todo esse tempo a minha rinite não se curou. Tentei alguns remédios errados, que acabaram me prejudicando mais ainda, viciando meu septo nasal. Agora, eles fechavam completamente caso eu não usasse os remédios todos os dias. Fiz uma cirurgia para corrigir o septo, e por algum tempo pareceu ter funcionado. A mucosa acabou crescendo de volta, e fiquei tão ruim quanto antes. Nos piores dias eu não conseguia sentir nem o gosto da comida. Imagine ter o nariz bloqueado todos os dias de sua vida. Era uma sensação parecida com a que eu sentia.
Minha visão acabou durando mais do que o imaginado. Antes de perdê-la de vez, resolvi voltar para a casa onde eu passei a minha infância. Precisava recuperar as lembranças. Fui ao meu jardim e vi a árvore que eu escalava. Ela estava relativamente menor agora, para a minha percepção de adulto, mas ainda era imponente. Se já não tivesse passado da idade, me encorajaria a subi-la mais uma vez. Não consegui sentir o perfume das plantas. Passei a mão pela grama, mas minhas mãos calejadas de décadas de música já não tinham a mesma sensibilidade de antes.
Um dia, finalmente aconteceu: acordei sem ver nada. Tudo escuro. Me mantive calmo. Já estava esperando este momento há anos. Não tive medo. Quando souberam, anos atrás, que eventualmente perderia a visão, fui convidado a participar de uma famosa orquestra de cegos que se apresentava nas maiores cidades do mundo. Não respondi o convite, pois mesmo quase cego ainda conseguia acompanhar a orquestra em que trabalhava como nenhum outro, mas nessa manhã senti que era hora de uma mudança. Estava na hora de começar uma outra fase de minha vida. Aceitei o convite. Desde pequeno sonhava em viajar pelo mundo, conhecer Nova York, Paris, Lisboa, e agora finalmente poderia fazê-lo. O fiz e não conheci nada. Apenas ficava lá, preso no meu canto escuro, acompanhando a música com minhas mãos já velhas. E assim passei os anos, pensando se algum dia veria ou sentiria alguma coisa. Tinha saudade de viver. A única coisa que ainda me prendia ao mundo era a música. E com a música vivi por mais vários anos.
Então, algo que eu esperava aconteceu. Algo que eu temia há muito tempo, inconscientemente, desde que eu era um garoto que ficava deitado no sofá ouvindo Tchaikovsky, mas que tomei consciência com a chegada da minha velhice, e aguardava ansiosamente. Fiquei surdo. Sem luz, sem tato, sem música. Então já estava no final da minha vida. De algum jeito, sabia que isso iria acontecer. Seria estranho se não acontecesse. E, falando francamente, fiquei feliz que aconteceu. Em júbilo. Não tinha mais nenhum vínculo com o mundo. Agora era só eu, sem sentir nada, sem nada para me dizer o que era o mundo real. Agora, quem dizia o que era o mundo real era eu. E eu dizia que ele tinha cheiro de grama. Eu dizia que ele tinha cantos de pássaro. Eu dizia que ele era muito verde, e também muito azul, muito claro e muito brilhante. E que eu, obviamente, era jovem para aproveitar tudo isso. Desde meus cinco anos, nunca fui tão feliz.