domingo, 30 de maio de 2010

A reunião

     AMBIENTE: sala de reuniões de uma produtora de vídeos pornô. Estão reunidos ao redor da mesa todos os funcionários da empresa: produtores, editores, roteiristas, atores e atrizes. Na ponta, o presidente da produtora. O chefe. Ele está irritado.

     CHEFE: - Quero mostrar uma coisinha pra vocês.

     CHEFE abre um gráfico no Powerpoint de seu laptop e mostra-o a todos. Uma linha descendente.

     CHEFE: - Este é o crescimento da indústria de vídeos pornô no mundo.

     ATOR 1 levanta a mão para falar.

     ATOR 1: - Hã, chefe, acho que essa linha mostra uma queda, e não um crescimento...

     CHEFE bate com o punho na mesa. Responde gritando.

     CHEFE: - É claro que mostra uma queda, seu energúmeno! É porque a indústria não está crescendo! Se ela estivesse crescendo, eu estaria feliz! Eu pareço feliz? Não! E, se ela não está crescendo, está diminuíndo! E alguém sabe porque a indústria está diminuindo?

     ATOR 1 levanta a mão de novo, mas pensa melhor e resolve baixá-la. CHEFE respira fundo, e ele mesmo explica.

     CHEFE: - É por causa da internet. Temos que competir com a maldita internet. E eu não falo só de pirataria. Agora, com esses sites de vídeos em stream, qualquer um pode fazer seus próprios filminhos e mandar para o mundo. O cara só precisa de uma câmera, uma ou duas mulheres bêbadas e um tripé e voilá, pode se chamar de produtor pornô.

     CHEFE abre o navegador de seu laptop e acessa um site de vídeos adultos em stream. Clica num vídeo qualquer e mostra-o para todos.

     CHEFE: - Olhem isso. Olhem isso! É péssimo. Completamente amador. A mulher nem está maquiada! E esse enquadramento, parece que o cara colocou a câmera em qualquer lugar. E esses gemidos, meu Deus! Que gemidos são esses? Não se geme assim num filme.

     PRODUTOR 1: - Aonde você quer chegar?

     CHEFE: - Eu quero que vocês olhem as visualizações. Mil e duzentas. É mais do que o total de vendas do nosso último filme, "Eu Sei Com Quem Vocês Fizeram no Verão Passado". Um lixo desses. E olha que eu peguei um vídeo ao acaso. Tem uns piores e com mais visualizações. As nossas vendas estão em queda porque os nossos consumidores migram daqui para estes sites. Estão trocando a nossa produção especializada por qualquer filminho, porque é de graça.

     PRODUTOR: - Tá, mas o que você sugere? E porque você chamou toda a equipe para a reunião?

     ATOR 2: - É, eu estava na academia! O que eu tenho a ver com vendas e números? Isso é com o pessoal da, do... das vendas e números!    

     CHEFE: - O que eu sugiro, meus amigos, é trabalhar com o mercado. Claro, qualquer um pode fazer um vídeo pornô e lançar na web de graça, mas só nós podemos fazer um filme. Sempre haverá um público que quer mais qualidade, que não se rende a qualquer filmezinho de webcam. Esse é o nosso público. O público especializado. É nele que temos que investir forte. E, se qualidade é o que eles querem, qualidade é o que terão.

     O CHEFE aponta para o pessoal da equipe técnica.

     CHEFE: - Equipe técnica! Precisamos das melhores câmeras do mercado. Só quero filmar em Full HD agora. Aqueles vídeos quadriculados da internet não poderão competir com a nossa moderna aparelhagem. Quero que os espectadores possam ver cada penugem das coxas de nossa atrizes, uma por uma.

     TÉCNICO-CHEFE: - Chefinho, isso vai custar caro...

     CHEFE: - Não quero saber! Cada gasto é um investimento. E pesquisem essa tecnologia 3D. Quando houver TVs 3D, quero ser o primeiro a fazer filmes pornôs para elas. Total imersão! Quero que o espectador sinta cada fluido corporal de nosso elenco. É isso o que vai vender no futuro!

     CHEFE aponta para a equipe de roteiros.

     CHEFE: - Roteiristas! Não gostei do seu último trabalho. Muito raso. Eu quero uma história. Eu quero rir, eu quero chorar, eu quero me emocionar. Chega de mulheres traídas que resolvem dar o troco na mesma moeda e professoras sacanas. Eu quero originalidade.

     ROTEIRISTA 1: - Como assim? "Sacana e Boa de Cama" foi um grande filme!

     ROTEIRISTA 2: - É! E "Escola da Cama" foi muito criativo! Quer dizer, a menina recatada é transferida para uma escola nova. Aí ela descobre que é uma escola de sexo, e aprende com seus professores como deixar de ser tão inibida, com lições práticas e em grupo. É perfeito!

     CHEFE: - Não, eu quero mais do que isso... Eu quero aprofundamento... De onde veio essa menina? Por que ela é tão recatada? Como era a sua vida antes de vir para a escola? Lacunas, lacunas... E o dilema da personagem? Ela é tirada de seu meio e colocada em um ambiente completamente oposto. E seus conflitos, e suas fobias, onde estão? Ela poderia confessar tudo isso para a sua colega de quarto, que a ajudaria a aceitar sua nova realidade, fazendo-a se abrir aos poucos, primeiro figurativa e depois literalmente. É a cena emblemática, o simbolismo da nova realidade liberal penetrando no âmago da sociedade conservadora burguesa, talvez com a ajuda de brinquedinhos. É isso o que eu quero. Eu quero o equivalente a Dostoiévski se ele escrevesse sacanagem.

     ATRIZ 1: - E nós, chefe? Quer que botemos mais silicone?

     CHEFE: - Não só isso, minha cara. Eu quero acreditar na interpretação de vocês. No seu último papel como Mulher das Cavenas Sacana, você não convencia ninguém. Faltou entrar no personagem. O público quer acreditar no que está vendo, e o primeiro passo é vocês todos acreditarem no que estão fazendo. Por isso, gastei uma boa grana pra trazer o melhor professor de teatro de São Paulo para dar um curso intensivo. Eu quero ver interpretações dignas de Oscar. E para a direção...

     Um estagiário levanta a mão. O CHEFE se supreende.

     CHEFE: -Sim?

     ESTAGIÁRIO: - Com licença, mas acho que o senhor está se enganando.

     Todos os presentes olham-se com cara de espanto. Burburinhos. CHEFE olha para ESTAGIÁRIO com cara de incredulidade.

     CHEFE: - Como é que é?

     ESTAGIÁRIO: - Eu acho que o senhor está se enganando. O público não está interessado em qualidade de vídeo ou roteiros bons. O público quer sexo.

     CHEFE não consegue mudar de cara. Sua mão começa a tremer ligeiramente.

      CHEFE: - Masmasmas claro que sim! Imagens nítidas, segurança de encontrar qualidade, tudo isso contribui para a fidelização do...

     ESTAGIÁRIO: - Não é isso que o público está procurando. O público não está interessado em qualidade técnica, ele quer o sexo. O melhor sexo que conseguir encontrar.

      CHEFE: - Mas temos atrizes profissionais nos nossos elencos, elas vão estudar atuação para...

     ESTAGIÁRIO: - A única diferença das suas profissionais para as amadoras são as plásticas. O termo "profissional" é uma enganação. Escola de atores? Por que a audiência iria preferir o fake se ela pode assistir ao real? A credibilidade é muito maior quando sabemos que a pessoa está fazendo aquilo por amor ao sexo e não pelo dinheiro.

      CHEFE bate na mesa com a mão. Começa a perder a compostura.

      CHEFE: -Ora, jovenzinho! Como ousa chamar o meu elenco de enganação? Essas mulheres sabem trepar como nenhuma outra!

     ESTAGIÁRIO: - Ah, e você acha que é realmente difícil de achar alguém por aí que, sem especialização nenhuma, consiga trepar melhor que a maioria das suas mulheres? Claro que a maioria nunca chegará aos pés delas, mas algumas... ah, algumas possuem a prática. Algumas realmente sabem o que estão fazendo, mesmo sem especialização nenhuma. Elas possuem as manhas, elas treinaram para isso. Elas têm a vivência. Vai dizer que elas não merecem as 1200 visualizações, só porque não são "profissionais"?

     CHEFE: - Agora já chega. Você está demitido. Demitido! Saia já desta sala!

     ESTAGIÁRIO se levanta da cadeira e sai da sala. CHEFE respira fundo para se acalmar. Senta novamente.

     CHEFE: -Então, agora é a hora de falar do lado ruim: cortes de gastos. Primeiro, acabou a bolsa-academia. Sinto muito, mas agora vocês vão ter que malhar em casa. Quanto ao auxílio nas plásticas...

***

     E essa é a minha opinião sobre o diploma de Jornalismo.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A linha

     Fiquei revoltado e satisfeito com a matéria sobre zoofilia da Void. Revoltado porque é nojento. O satisfeito eu explico depois. Para quem não sabe, mês retrasado a Void publicou uma matéria ensinando como seduzir animais. Para o sexo. Isso. Primeiro ensinava os melindres para se dar bem com os animais domésticos, depois os da fazenda, e culminava com uma seção sobre como se divertir no oceano. Com sexo. Não tive a força de vontade necessária para ler tudo, mas tinha uma parte sensacional sobre como fazer amor com golfinhos. E digo fazer amor, porque a revista deixava sempre claro que não se tratava de abusar dos animaizinhos, e sim desfrutar de prazer conjunto. Menos mal.

     Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.

     E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.

     Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.

     Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.

     O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.

domingo, 16 de maio de 2010

O supermercado

     Quando percebeu, o homem estava num corredor de supermercado. Não sabia como chegara lá. Não lembrava de ter entrado num supermercado, nem de ter pensado em entrar em um supermercado. Foi como se piscasse os olhos e simplesmente aparecesse. Pensou. O que estava fazendo antes? Não lembrava. Notou que em uma das mãos segurava uma cesta de compras, vazia. Ao seu redor, pessoas passeavam com seus carrinhos, olhando mortamente as prateleiras, alheias à perplexidade do homem parado no meio do corredor. Ele esfregou os olhos. Resolveu sair dali. Dobrou à direita e seguiu reto. Estava no corredor de fraldas. Percorreu-o até o final, uma parede cheia de gêneros alimentícios. Dobrou à esquerda. Seguiu este corredor até o fim. Passou por materiais escolares, achocolatados, produtos de limpeza, geleias. Chegou ao fim, outra parede forrada de produtos. Virou novamente à esquerda. À direita, na geladeira dos sorvetes. Passou os refrigerantes. Parou, tentou se localizar. Não conhecia o lugar e não sabia para que lado sair. Pensou em pedir informações, mas sentia-se por demais envergonhado. Explicaria o quê? Que não se lembrava como fora parar ali? É um supermercado grande. Cosméticos, louças, farinha, feijão. Tentou outro caminho. Finalmente achou a direção certa. Passou pela seção de rações, seguiu-a até o final e encontrou a única direção que não havia tentado. Ao dobrar, finalmente encontraria os caixas e a porta de saída, depois de tanto sufoco.  Dobrou.
     Caiu em outro corredor.
***
     O homem deu sorte de achar a seção dos travesseiros e teve como passar a noite de um modo relativamente confortável. Não entendia o que era aquele lugar. Passou a manhã seguinte peregrinando pelas vias do supermercado em busca de algum ponto de referência, algo que lhe guiasse para a saída. Vez por outra ainda via alguma pessoa passando. Desistiu de tentar falar com elas. Pedia informações e recebia resmungos, pedindo para que não as incomodasse. Chegou a puxar o braço de um senhor, depois de se irritar com sua falta de reação, e este desvencilhou-se aborrecido, xingando o homem e reclamando que só queria comprar os seus produtos em paz. Mas as pessoas estavam ficando mais escassas. O homem se sentia só.
     Teve a ideia de fazer uma trilha com tiras de linguiça que pegara na seção de carnes. À medida que andava, ia soltando a tira no chão, depois mais uma, quando essa acabasse, depois outra e assim por diante. Assim, não se perderia e poderia achar uma lógica naquele labirinto.
     Resolveu testar: soltou a tira de linguiça no chão, virou à esquerda, no corredor macrobiótico. Seguiu em frente até os condicionadores, aí virou mais uma vez à esquerda. Frente, segunda à direita, esquerda nos lenços de papel, direita, frente até a seção de escovas de dente. Aí seguiu reto até o fim. Depois dobrou na seção de salgadinhos, esquerda, depois terceira  à esquerda, frente. Então virou à direita.
     Achou o começo da tira de linguiça.
***
    O homem ficou muito feliz em achar a seção de frutas. Não aguentava mais comer biscoitos Trakinas e barras de cereais. Certificou-se de encher a sua cesta com alguma coisa saudável. Lembrou que precisava encontrar algo para beber. O refrigerante estava acabando, e não sabia como voltar até o corredor de bebidas. A última vez que passou por lá foi... quando mesmo? Perdera a noção de há quanto tempo estava perdido. Dois dias, no mínimo, mas a ausência de janelas impedia o homem de se guiar pelo sol para ter certeza. A falta desses acessos ao exterior eliminava uma opção de fuga daquele lugar, já que não havia portas, também, nem nenhum outro meio de comunicação com o lado de fora. Precisava de um jeito de derrubar aquelas paredes. Lembrou de uma receita de bomba caseira que vira na internet. Envolvia álcool, cola escolar, bicarbonato de sódio e coca-cola, algo assim. Não sabia se era piada ou verdade, mas não custava tentar. Provavelmente era piada. Já tinha algumas coisas para começá-la, mas precisava de fósforos.
     As pessoas realmente faziam de tudo para ignorá-lo. Ele gritava, empurrava-as, fez um striptease na frente de uma velhinha, mas elas não estavam nem aí. Repetiam que queriam encontrar os seus produtos, e que o homem parasse de atormentá-las.
     - Ei, senhor! SENHOR!
     - Saia da frente, mocinho!
     - Ah, então o senhor me vê, não é? E vê que este lugar não tem saída, e que estamos todos presos, e que eu pareço ser o único que se importa com isso?
     - Eu só quero achar o meu xampu.
     - Por que você bota tudo isso no seu carrinho se este lugar NÃO TEM CAIXA?
     - Saia da frente, saia da frente...
     Achou os fósforos, mas perdeu a cola em algum lugar.
***
     O homem se sentiu muito mais confortável depois que queimou um travesseiro para fazer uma fogueira. Claro, agora não teria mais tanto conforto ao dormir, mas teve a chance de lembrar que, realmente, carne cozida é bem melhor do que crua. Além disso, naquela noite acamparia no corredor de cereais matinais, e as caixas de cereais são um ótimo substituto para travesseiros. A fogueira ajudou a passar o frio. Gostaria de achar algumas roupas para se esquentar, mas não sabia se vendiam isso no estabelecimento.  
     Fazia planos para quando saísse dali: viveria numa tribo nômade, onde os seus componentes devem caçar seu próprio alimento, e nunca mais pisaria num supermercado.
     A fogueira teve um efeito curioso: chamou a atenção de um outro homem que estava perdido entre os corredores. Este segundo era igual ao primeiro, não como os zumbis entorpecidos que vagavam aqui e ali, mas alguém com capacidade de analisar a situação e dizer que sim, estavam ambos presos e precisavam achar a saída. Finalmente não estava mais sozinho.
     - Como você chegou aqui?
     - Também não sei. Quando me dei conta estava aqui. Já faz um tempo, isso.
     - Você também tinha uma cesta de compras?
     - Não. Um carrinho. E uma lista.
     - Uma lista de compras?
     - É.
     - Chegou a completá-la?
     - Não. Nunca achei todos os produtos. Além disso, fiquei com medo.
     - Do quê?
     - Do que aconteceria, né? Caso eu completasse todas as compras. Vai que eu passasse para um estágio pior. Como chamar a atenção de um garçom em um restaurante.
     Achou a cola escolar e o bicarbonato de sódio, mas bebeu toda a coca-cola.
***
     - Me diz uma coisa...
     - Sim?
     - Você, que já está aqui há mais tempo... nunca viu algo parecido com um caixa?
     - Não. E olha que eu procurei.
     Estavam os dois jogados no canto dos lanches, comendo bobagens e olhando um ou outro transeunte passar pateticamente com seu carrinho por eles. O segundo homem, o que estava perdido há mais tempo, diz, ao observar um velhinho investigando todos os produtos das prateleiras que passa:
     - Sempre achei que o purgatório fosse algo assim.
     - Assim como?
     - Como um grande supermercado. A gente procurando eternamente por um produto que não acha, nunca acha... dando voltas e voltas no mesmo labirinto.
     O outro olha para o velho, procurando pateticamente o seu xampu entre os condimentos.
     - Eles nunca vão achar, vão?
     - O que procuram? Acho que não. O que você realmente procura você nunca acha. É por isso que você continua vagando. 
     O homem assentiu. E completou:
     - Vai ver nós estamos lúcidos agora, mas nos tornemos como eles em breve: apenas seres estúpidos, vagando atrás de uma busca sem sentido...
     - Ou talvez não...
     - Como?
     - Talvez seja o contrário. Nós éramos assim e acordamos. Percebemos a nossa situação. Talvez tenhamos vivido dentro do supermercado sempre, só não percebemos isso. Ficamos distraídos a vida inteira, indo atrás das nossas compras, imaginando uma vida, então pam! Acordamos. Talvez a nossa vida antes tenha sido um sonho. Nós nunca conseguimos lembrar dos sonhos direito. Ele é algo muito nítido, muito vívido na hora, e depois ele vai desbotando, ficando mais irreal, até não restar nem a lembrança. Você consegue lembrar da sua vida?
     O homem fez um esforço.
     - Não... bem não. Quer dizer, eu sei que tinha algo, mas...
     - Mas não consegue lembrar. Nós nunca lembramos de um sonho, em seus detalhes, algumas horas depois de acordar. Só fica a lembrança da lembrança. Só fica o nada.
     O homem concordou. Seu novo amigo continuou:
     - Ou talvez essas pessoas não sejam tão burras. Eu nunca vejo duas vezes a mesma pessoa. Vai ver algumas conseguem sair. Vai ver elas acharam o caixa...
    O homem esperou um pouco antes de falar:
     - Ou vai ver este é um mercado muito grande.
     Acharam o bicarbonato de sódio e a coca-cola, mas acabaram-se os fósforos.
***
     Ao tentar um caminho diferente, deram com a seção de vinhos. Eram várias estantes de madeira recheadas de tintos e secos, muitos deles importados e com preços absurdos. Fizeram uma pausa obrigatória para desfrutar do local.

     - Uma coisa que eu não entendo... - diz o que estava há mais tempo no mercado, enquanto desfrutava de um tinto, safra de 78 - ...é onde estão os funcionários. Certamente devem haver funcionários. No mínimo alguém que limpe o lugar. Está sempre impecável.

     O outro concordou. Raramente voltava pelos lugares por onde passou, mas quando o fazia não via sinais das embalagens que deixava pelo chão, das sobras de comida, das caixas de cereal onde defecava. Alguém limpava tudo isso. Mas nunca viu ninguém da equipe de limpeza. 


     - Nem o pessoal da reposição. - continuou o primeiro - Não vejo ninguém repondo os estoques. Alguém deve vir aqui repor os produtos quando eles acabam. Tem que vir. Eles não podem simplesmente reaparecer nas prateleiras.


     - Mas você já viu alguém fazendo isso?


     - Não. Nunca. Mas também nunca esperei para ver se alguém aparecia.


     O outro teve uma ideia.


     - Quer saber? Chega de vagar. Esquece esse negócio de achar uma saída. Nós vamos ficar andando para sempre e nunca saberemos se estamos indo para o lado certo. Vamos beber. Tudo.


     - Tudo?

     - É. Vamos acabar com os vinhos. Não deixaremos garrafa sobre garrafa. E, em algum momento, alguém vai ter que vir aqui repor as bebidas. E nós estaremos esperando.


     - Brilhante ideia. Quer um tinto?


    - Safra de 68?


     - É.

     - Manda.

***


     O homem acorda com uma sensação desagradável nas costelas. Logo depois leva outro chute. Levanta a cabeça, grogue. Um sujeito enorme, vestido num terno, o encara. Ao lado, o seu amigo está sendo acordado por um outro sujeito de terno, do mesmo jeito indelicado. Ao redor dos dois, garrafas e mais garrafas vazias. O homem tenta pegar uma que ainda não está aberta: estende a mão, mas a garrafa é afastada de seu alcance por um terceiro sujeito, baixinho, de bigode. Ele parece furioso. Na sua camisa, uma credencial de "Gerente".


     - Espero que vocês tenham como pagar tudo isso. - diz ele.


     O homem olha para a cara do gerente. Ele é gordo e tem um bigode engraçado. O homem ri. Um dos sujeitos grandes o pega pelas vestimentas, o sacode e joga para cima do seu amigo, que está completamente perdido.


     - O que vocês pensam que estão fazendo? Essa bagunça inteira, vocês acham que vai sair do bolso de quem? Estão me ouvindo?

     O homem se arrasta para sair de cima do amigo. Os dois se entreolham: riem. O gerente está furioso.


    - Estão rindo do quê? Vocês tem ideia de quem sou eu?

     Mas os dois não conseguem ouvir o que o gerente fala. Gargalham alto, totalmente embriagados.

     - Assim não dá. Segurança, eles não estão nos levando a sério. Dá uma liçãozinha neles.

     Um dos homens de terno assente e pega uma barra de aço. Aí fica tudo escuro.