domingo, 16 de maio de 2010

O supermercado

     Quando percebeu, o homem estava num corredor de supermercado. Não sabia como chegara lá. Não lembrava de ter entrado num supermercado, nem de ter pensado em entrar em um supermercado. Foi como se piscasse os olhos e simplesmente aparecesse. Pensou. O que estava fazendo antes? Não lembrava. Notou que em uma das mãos segurava uma cesta de compras, vazia. Ao seu redor, pessoas passeavam com seus carrinhos, olhando mortamente as prateleiras, alheias à perplexidade do homem parado no meio do corredor. Ele esfregou os olhos. Resolveu sair dali. Dobrou à direita e seguiu reto. Estava no corredor de fraldas. Percorreu-o até o final, uma parede cheia de gêneros alimentícios. Dobrou à esquerda. Seguiu este corredor até o fim. Passou por materiais escolares, achocolatados, produtos de limpeza, geleias. Chegou ao fim, outra parede forrada de produtos. Virou novamente à esquerda. À direita, na geladeira dos sorvetes. Passou os refrigerantes. Parou, tentou se localizar. Não conhecia o lugar e não sabia para que lado sair. Pensou em pedir informações, mas sentia-se por demais envergonhado. Explicaria o quê? Que não se lembrava como fora parar ali? É um supermercado grande. Cosméticos, louças, farinha, feijão. Tentou outro caminho. Finalmente achou a direção certa. Passou pela seção de rações, seguiu-a até o final e encontrou a única direção que não havia tentado. Ao dobrar, finalmente encontraria os caixas e a porta de saída, depois de tanto sufoco.  Dobrou.
     Caiu em outro corredor.
***
     O homem deu sorte de achar a seção dos travesseiros e teve como passar a noite de um modo relativamente confortável. Não entendia o que era aquele lugar. Passou a manhã seguinte peregrinando pelas vias do supermercado em busca de algum ponto de referência, algo que lhe guiasse para a saída. Vez por outra ainda via alguma pessoa passando. Desistiu de tentar falar com elas. Pedia informações e recebia resmungos, pedindo para que não as incomodasse. Chegou a puxar o braço de um senhor, depois de se irritar com sua falta de reação, e este desvencilhou-se aborrecido, xingando o homem e reclamando que só queria comprar os seus produtos em paz. Mas as pessoas estavam ficando mais escassas. O homem se sentia só.
     Teve a ideia de fazer uma trilha com tiras de linguiça que pegara na seção de carnes. À medida que andava, ia soltando a tira no chão, depois mais uma, quando essa acabasse, depois outra e assim por diante. Assim, não se perderia e poderia achar uma lógica naquele labirinto.
     Resolveu testar: soltou a tira de linguiça no chão, virou à esquerda, no corredor macrobiótico. Seguiu em frente até os condicionadores, aí virou mais uma vez à esquerda. Frente, segunda à direita, esquerda nos lenços de papel, direita, frente até a seção de escovas de dente. Aí seguiu reto até o fim. Depois dobrou na seção de salgadinhos, esquerda, depois terceira  à esquerda, frente. Então virou à direita.
     Achou o começo da tira de linguiça.
***
    O homem ficou muito feliz em achar a seção de frutas. Não aguentava mais comer biscoitos Trakinas e barras de cereais. Certificou-se de encher a sua cesta com alguma coisa saudável. Lembrou que precisava encontrar algo para beber. O refrigerante estava acabando, e não sabia como voltar até o corredor de bebidas. A última vez que passou por lá foi... quando mesmo? Perdera a noção de há quanto tempo estava perdido. Dois dias, no mínimo, mas a ausência de janelas impedia o homem de se guiar pelo sol para ter certeza. A falta desses acessos ao exterior eliminava uma opção de fuga daquele lugar, já que não havia portas, também, nem nenhum outro meio de comunicação com o lado de fora. Precisava de um jeito de derrubar aquelas paredes. Lembrou de uma receita de bomba caseira que vira na internet. Envolvia álcool, cola escolar, bicarbonato de sódio e coca-cola, algo assim. Não sabia se era piada ou verdade, mas não custava tentar. Provavelmente era piada. Já tinha algumas coisas para começá-la, mas precisava de fósforos.
     As pessoas realmente faziam de tudo para ignorá-lo. Ele gritava, empurrava-as, fez um striptease na frente de uma velhinha, mas elas não estavam nem aí. Repetiam que queriam encontrar os seus produtos, e que o homem parasse de atormentá-las.
     - Ei, senhor! SENHOR!
     - Saia da frente, mocinho!
     - Ah, então o senhor me vê, não é? E vê que este lugar não tem saída, e que estamos todos presos, e que eu pareço ser o único que se importa com isso?
     - Eu só quero achar o meu xampu.
     - Por que você bota tudo isso no seu carrinho se este lugar NÃO TEM CAIXA?
     - Saia da frente, saia da frente...
     Achou os fósforos, mas perdeu a cola em algum lugar.
***
     O homem se sentiu muito mais confortável depois que queimou um travesseiro para fazer uma fogueira. Claro, agora não teria mais tanto conforto ao dormir, mas teve a chance de lembrar que, realmente, carne cozida é bem melhor do que crua. Além disso, naquela noite acamparia no corredor de cereais matinais, e as caixas de cereais são um ótimo substituto para travesseiros. A fogueira ajudou a passar o frio. Gostaria de achar algumas roupas para se esquentar, mas não sabia se vendiam isso no estabelecimento.  
     Fazia planos para quando saísse dali: viveria numa tribo nômade, onde os seus componentes devem caçar seu próprio alimento, e nunca mais pisaria num supermercado.
     A fogueira teve um efeito curioso: chamou a atenção de um outro homem que estava perdido entre os corredores. Este segundo era igual ao primeiro, não como os zumbis entorpecidos que vagavam aqui e ali, mas alguém com capacidade de analisar a situação e dizer que sim, estavam ambos presos e precisavam achar a saída. Finalmente não estava mais sozinho.
     - Como você chegou aqui?
     - Também não sei. Quando me dei conta estava aqui. Já faz um tempo, isso.
     - Você também tinha uma cesta de compras?
     - Não. Um carrinho. E uma lista.
     - Uma lista de compras?
     - É.
     - Chegou a completá-la?
     - Não. Nunca achei todos os produtos. Além disso, fiquei com medo.
     - Do quê?
     - Do que aconteceria, né? Caso eu completasse todas as compras. Vai que eu passasse para um estágio pior. Como chamar a atenção de um garçom em um restaurante.
     Achou a cola escolar e o bicarbonato de sódio, mas bebeu toda a coca-cola.
***
     - Me diz uma coisa...
     - Sim?
     - Você, que já está aqui há mais tempo... nunca viu algo parecido com um caixa?
     - Não. E olha que eu procurei.
     Estavam os dois jogados no canto dos lanches, comendo bobagens e olhando um ou outro transeunte passar pateticamente com seu carrinho por eles. O segundo homem, o que estava perdido há mais tempo, diz, ao observar um velhinho investigando todos os produtos das prateleiras que passa:
     - Sempre achei que o purgatório fosse algo assim.
     - Assim como?
     - Como um grande supermercado. A gente procurando eternamente por um produto que não acha, nunca acha... dando voltas e voltas no mesmo labirinto.
     O outro olha para o velho, procurando pateticamente o seu xampu entre os condimentos.
     - Eles nunca vão achar, vão?
     - O que procuram? Acho que não. O que você realmente procura você nunca acha. É por isso que você continua vagando. 
     O homem assentiu. E completou:
     - Vai ver nós estamos lúcidos agora, mas nos tornemos como eles em breve: apenas seres estúpidos, vagando atrás de uma busca sem sentido...
     - Ou talvez não...
     - Como?
     - Talvez seja o contrário. Nós éramos assim e acordamos. Percebemos a nossa situação. Talvez tenhamos vivido dentro do supermercado sempre, só não percebemos isso. Ficamos distraídos a vida inteira, indo atrás das nossas compras, imaginando uma vida, então pam! Acordamos. Talvez a nossa vida antes tenha sido um sonho. Nós nunca conseguimos lembrar dos sonhos direito. Ele é algo muito nítido, muito vívido na hora, e depois ele vai desbotando, ficando mais irreal, até não restar nem a lembrança. Você consegue lembrar da sua vida?
     O homem fez um esforço.
     - Não... bem não. Quer dizer, eu sei que tinha algo, mas...
     - Mas não consegue lembrar. Nós nunca lembramos de um sonho, em seus detalhes, algumas horas depois de acordar. Só fica a lembrança da lembrança. Só fica o nada.
     O homem concordou. Seu novo amigo continuou:
     - Ou talvez essas pessoas não sejam tão burras. Eu nunca vejo duas vezes a mesma pessoa. Vai ver algumas conseguem sair. Vai ver elas acharam o caixa...
    O homem esperou um pouco antes de falar:
     - Ou vai ver este é um mercado muito grande.
     Acharam o bicarbonato de sódio e a coca-cola, mas acabaram-se os fósforos.
***
     Ao tentar um caminho diferente, deram com a seção de vinhos. Eram várias estantes de madeira recheadas de tintos e secos, muitos deles importados e com preços absurdos. Fizeram uma pausa obrigatória para desfrutar do local.

     - Uma coisa que eu não entendo... - diz o que estava há mais tempo no mercado, enquanto desfrutava de um tinto, safra de 78 - ...é onde estão os funcionários. Certamente devem haver funcionários. No mínimo alguém que limpe o lugar. Está sempre impecável.

     O outro concordou. Raramente voltava pelos lugares por onde passou, mas quando o fazia não via sinais das embalagens que deixava pelo chão, das sobras de comida, das caixas de cereal onde defecava. Alguém limpava tudo isso. Mas nunca viu ninguém da equipe de limpeza. 


     - Nem o pessoal da reposição. - continuou o primeiro - Não vejo ninguém repondo os estoques. Alguém deve vir aqui repor os produtos quando eles acabam. Tem que vir. Eles não podem simplesmente reaparecer nas prateleiras.


     - Mas você já viu alguém fazendo isso?


     - Não. Nunca. Mas também nunca esperei para ver se alguém aparecia.


     O outro teve uma ideia.


     - Quer saber? Chega de vagar. Esquece esse negócio de achar uma saída. Nós vamos ficar andando para sempre e nunca saberemos se estamos indo para o lado certo. Vamos beber. Tudo.


     - Tudo?

     - É. Vamos acabar com os vinhos. Não deixaremos garrafa sobre garrafa. E, em algum momento, alguém vai ter que vir aqui repor as bebidas. E nós estaremos esperando.


     - Brilhante ideia. Quer um tinto?


    - Safra de 68?


     - É.

     - Manda.

***


     O homem acorda com uma sensação desagradável nas costelas. Logo depois leva outro chute. Levanta a cabeça, grogue. Um sujeito enorme, vestido num terno, o encara. Ao lado, o seu amigo está sendo acordado por um outro sujeito de terno, do mesmo jeito indelicado. Ao redor dos dois, garrafas e mais garrafas vazias. O homem tenta pegar uma que ainda não está aberta: estende a mão, mas a garrafa é afastada de seu alcance por um terceiro sujeito, baixinho, de bigode. Ele parece furioso. Na sua camisa, uma credencial de "Gerente".


     - Espero que vocês tenham como pagar tudo isso. - diz ele.


     O homem olha para a cara do gerente. Ele é gordo e tem um bigode engraçado. O homem ri. Um dos sujeitos grandes o pega pelas vestimentas, o sacode e joga para cima do seu amigo, que está completamente perdido.


     - O que vocês pensam que estão fazendo? Essa bagunça inteira, vocês acham que vai sair do bolso de quem? Estão me ouvindo?

     O homem se arrasta para sair de cima do amigo. Os dois se entreolham: riem. O gerente está furioso.


    - Estão rindo do quê? Vocês tem ideia de quem sou eu?

     Mas os dois não conseguem ouvir o que o gerente fala. Gargalham alto, totalmente embriagados.

     - Assim não dá. Segurança, eles não estão nos levando a sério. Dá uma liçãozinha neles.

     Um dos homens de terno assente e pega uma barra de aço. Aí fica tudo escuro.

Um comentário:

  1. auhauhauhauha. caraca, fiquei muito ansiosa com o texto! tava nervosa com ele não chegando a qualquer lugar... exijo uma continuáção ou um fim, como preferir :)

    ResponderExcluir