quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A gravata amarela

     - Bom dia, seu Marcílio! Entre!

     - Bom dia, seu Juarez! A que devo a honra de ser chamado para a sua sala? É algo de bom ou ruim?

     - Que nada, seu Marcílio. Não precisa ficar preocupado. Você é o melhor funcionário da empresa. Suas vendas são maiores que a de todos os outros vendedores. Puxa vida, mês passado seu desempenho foi melhor que o do Gabardo e o do Pacheco, juntos.

     - Mas, cá entre nós, uma toupera vende mais que o seu Pacheco.

     - Rarará, é verdade. Enfim, piadas ofensivas à parte, você é o nosso funcionário modelo. Pontual. Eficiente. Sempre disponível.

     - Sim.

     - Mas... tem uma coisa, uma coisinha só, que eu gostaria que o senhor mudasse.

     - Sim?

     - É a sua gravata.

     - A minha gravata?

     - É.

     - O que tem a minha gravata?

     - Ela é amarela.

     - E...?

     - Não é profissional. É berrante demais. Eu vejo primeiro a sua gravata e depois você. Eu vejo um clarão amarelo e tenho que cobrir os olhos e perguntar: "quem está aí?", sabe? E você sempre usa essa gravata. Nada contra, até acho bonita para outras ocasiões, mas tente entender que usar uma gravata amarela no trabalho é uma atitute antiprofissional.

     - Você não gosta da minha gravata?

     - Não foi isso o que eu disse.

     - Com todo respeito, senhor Juarez, não é como se eu estivesse vindo trabalhar, digamos, de bermudas. Eu estou usando uma simples gravata. Além do mais, eu odeio gravatas, mas é obrigação usá-las, ok. Se eu tenho de usá-las, pelo menos uso de uma cor que eu gosto. Ela não piora meu desempenho, então não há problemas...

     - Mas o seu desempenho não é o caso, senhor Marcílio. O senhor é o profissional modelo, a não ser... por essa gravata! É só deixar de usá-la!

     - Não.

     - Não?

     - Eu cumpro prazos, faço vendas, uso terno no calor do verão e com o ar-condicionado estragado, ainda por cima. A gravata é o meu jeito de extravasar.

     - Você não vai tirar a gravata?

     - Não.

     - Bom, isso me obriga a adotar medidas drásticas...

     - Como o quê? Eu sou o melhor funcionário. Você não iria querer me perder. Esta reunião acabou.

     - Marcílio! Volte aqui!

     - Você mexeu num vespeiro, seu Juarez. Passar bem.

***

     - Pode entrar, seu Asdrúbal.

     - Bom dia, chefe. Vim reportar um comportamento inadequado do seu Marcílio. Ele está usando uma gravata com desenhos de personagens da Looney Tunes. Isso está causando um grande rebuliço no escritório.

     - É mesmo?

     - Sim. As pessoas perguntam se ele sabe o que está fazendo, se ele não tem medo de levar uma repreensão, mas ele insiste em dizer que está blindado. O seu Marcílio está zombando da empresa.

     - Sei...

     - Chefe, gostaria de sugerir um plano de ação...

     - Qual?

     - Demita o funcionário rebelde. Seu mau-comportamento irá se espalhar como um vírus. É preciso acabar com o câncer antes que ele germine. Dê o exemplo para o resto do escritório.

     - Eu não sei, o seu Marcílio é o nosso melhor funcionário.

     - Pense nisso como a amputação de uma perna para salvar o resto do corpo. E, caso o seu Marcílio faça falta, você pode me promover a chefe de vendas, já que as minhas vendas vêm crescendo a níveis...

     - Bom, acho melhor esperar para ver o que o Marcílio está tramando. Seu Asdrúbal, preciso que o senhor fique colado nele e me reporte todas as ações dignas de repreensão.

     - Sim, senhor. Considere cumprido.

     - E me traga um café. Esse está frio.

     - Sim, senhor. Num piscar de olhos.

     - Ah, duas colheres de açúcar, sim?

     - Com certeza, meu amo... digo, chefe.

***

     - Chefe, chefe!

     - O que foi, seu Asdrúbal?

     - O seu Marcílio... o resto do escritório... venha ver!

     O seu Juarez sai da sala com o seu Asdrúbal e vai para o grande escritório onde os vendedores trabalham. Todos estão usando gravatas numa profusão de cores absurda: vermelho, roxo, amarelo, laranja. A mandíbula do seu Juarez cai.

     - Quem é o responsável por isso!?

     - Seu Juarez, que prazer ver o senhor! Como vai?

     - Seu Marcílio, o que é isso na sua gravata?!

     - São pelos. Legal, não? Eles não se contentaram em desenhar uma mulher nua, também quiseram adicionar um efeito 3D...

     - Ora você. Eu vou, eu vou lhe...

     - Vai o quê? Estamos todos ouvindo.

     - Eu vou... seu Asdrúbal!

     - Sim, chefe!

     - Vamos para a minha sala!

     - Sim, senhor!

     Seu Juarez e seu Asdrúbal voltam para a sala de Juarez. Este se senta em sua mesa e põe as mãos no rosto.

     - É o pandemônio...

     - Chefe, para mim está claro o que o seu Marcílio está tramando. Ele quer derrubá-lo e pegar o seu cargo. Para isso, ele o está desacreditando na frente dos outros funcionários.

     - É pior que isso, é uma revolução... ele quer fazer uma revolução no escritório...

     - Faça o que eu disse: despeça-o enquanto ainda é tempo!

     - Eu não posso, Asdrúbal! Não vê? Ele iria embora como mártir! A bomba iria explodir toda na minha cara. Todos iam passar a me desobedecer. Um Poder só é Poder quando há pessoas que o obedecem. Seria o meu fim...

     - O que fazer?

     - Eu tenho que minar o poder das gravatas. Mas como? A não ser... já sei!

     Seu Juarez sai correndo de sua sala e adentra no escritório:

     - Escutem todos! À partir de amanhã, não é mais obrigatório o uso de gravatas no ambiente de trabalho! Rará, é isso mesmo! Ninguém mais é obrigado a vir engravatado para trabalhar! Por isso, podem tirar essa forca ao redor dos seus pescoços, a opressão terminou!

     Todos ouviram o seu Juarez em silêncio. Ele, arfante ao final do discurso, observou as caras neutras de seus funcionários. Então, todos voltaram ao trabalho.

     - Eu acho que eu consegui, Asdrúbal. Eu acho que eu consegui. Estou suando: me busque uma toalha.

     - Sim, mestre... digo, chefe.
    
***

     - Eu não acredito.

     No dia seguinte, todos os funcionários vieram usando bermudas e chinelos de dedos. E gravatas.

     - Eu não entendo, Asdrúbal... eu liberei as gravatas... por quê?

     - Essa é uma atitude totalmente não profissional, chefe. As bermudas então, nem se fala.

     - Eu sei, infeliz! Eu só... Opa, lá vem ele.

     Seu Marcílio entra na sala de seu Juarez, com suas bermudas, seu chinelo de dedo e sua gravata amarela.

     - Boa jogada, Juarez. Pena que falhou.

     - Seu maldito! Eu vou esganá-lo, seu infeliz!

     - Opa! Não toque em mim. Lembre-se que eu estou blindado. Fazer qualquer coisa comigo seria suicídio.

     - Por quê, Marcílio, por quê?

     - Por quê? Porque o senhor representa tudo o que ainda há de podre no sistema trabalhista! Toda a tirania dos chefes que acham que podem ditar o modo de vida de seus trabalhadores, o que fazer, quando comer, o que vestir. O senhor simboliza toda uma repressão sem sentido que nos faz ter de vir trabalhar em pleno verão, de terno preto e sapato, com a joça do ar-condicionado estragado! Por que você não manda consertá-lo? A sanidade mental dos seus funcionários não é importante?

     - Isso é por causa do ar-condicionado?

     - Vai muito além do ar-condicionado.

     - Mas eu cedi! Eu permiti que os funcionários viessem sem gravata! Não é isso o que você queria?

     - Ah, chefinho, a gravata é apenas um símbolo. Não é porque não precisamos mais ter uma corda em volta do pescoço que estamos livres de amarras. Ainda somos controlados por um senhor de terno preto e gravata no pescoço. A única forma de sermos livres é derrubando a ditadura corporativa dos homens de terno!

     - Eu não acredito... você realmente quer fazer uma revolução...

     - A classe operária tomará conta dos meios de produção! Basta de opressão! Viva Lênin! Viva Marx! Viva Che!

     - Asdrúbal! Tire ele daqui!

     - É pra já, chefe.

     - Ei, tire suas mãos de mim, seu discípulo de engravatado...

     Asdrúbal expulsa seu Marcílio e fecha a porta. Suspira.

     - Eu avisei, chefe. O caos está instaurado. Eu quero que saiba que estarei com você enquanto o navio afunda.

     - Cala a boca, Asdrúbal! Ainda não acabou. O seu Marcílio fez um grande teatrinho onde eu fui pintado como o monstro escravizador. Tenho que mostrar que sou como eles, que sou humano. Mas como? A não ser...

***

     No outro dia, o seu Juarez foi trabalhar de gravata amarela. O amarelo da gravata do seu Juarez era muito mais amarelo que o amarelo da gravata do seu Marcílio. O seu Juarez fez questão de cruzar pelo escritório várias vezes, de forma a exibir sua nova aquisição. E, sempre que passava pelos funcionários, fazia um elogio:

     - Bela gravata, seu Dutra!

     - Gostei da cor, seu Carvalho!

     - Legal o tom, seu Pacheco. Rosa. Progressivo.

     - É roxo, chefe.

     - Ainda assim. Muito bom. Continue fazendo... essa coisa de usar... isso.

     Seu Juarez comprou uma gravata amarela para cada dia da semana. Ele tinha as gravatas amarelas mais chamativas do escritório. Desconfiava-se que o seu Juarez pintova suas gravatas com marca-texto, para elas brilharem mais. Pouco a pouco, os funcionários foram deixando de usar as gravatas exóticas; dada algumas semanas, todos já estavam trabalhando novamente de terno. Agora que o chefe aderiu ao hábito, não tinha mais graça. O protesto perdeu a sua razão de ser. Até o seu Marcílio passou a usar uma gravata amarela mais sóbria. Seu Juarez venceu.

***

     O que não quer dizer que ele parou de usar as gravatas amarelas: seu Juarez acabou gostando do acessório. Seu Marcílio tinha razão: elas realmente davam um sentimento de liberdade, de extravasar. Por causa delas, seu Juarez ia de bom humor para o trabalho. Desse jeito, tratava melhor os funcionários, que rendiam mais e realizavam mais vendas. Logo, a divisão do seu Juarez bateu todas as vendas das outras divisões. Seu Juarez foi chamado para uma reunião com os cabeças da empresa:

     - Seu Juarez, em primeiro lugar, parabéns pelo ótimo desempenho apresentado nos últimos meses.

     - Obrigado.

     - A sua divisão é a que mais vende, muito mais que a divisão B ou a C juntas, por exemplo.

     - Bom, temos que ver que uma toupeira vende mais que a divisão C.

     - Rarará, é verdade. Gosto do seu espírito, seu Juarez. Por isso queremos elevá-lo a diretor regional da empresa.

     - Uau! É mesmo!?

     - Com certeza. Você é nosso melhor funcionário. Ninguém bate o seu desempenho em questão de gerência. Só que...

     - O quê?

     - Bom, gerente regional é um cargo que exige que se transmita confiança e profissionalismo. E, para que você assuma o cargo, tem uma coisinha que gostaríamos que o senhor mudasse...

     - O quê? O que é?

     - A sua gravata amarela.