segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sala de aula

Como todos sabem, ou devem saber, hoje teve início mais um Fórum Social Mundial em Porto Alegre. E como todos sabem, ou devem saber, trata-se de um encontro das esquerdas mundiais, que este ano dividiu-se entre diversas cidades do mundo, inclusive estando presente em cidades da grande Porto Alegre e não somente na Porto Alegre em si. Essa é apenas uma das diferenças do primeiro Fórum para este, o décimo. A maior das diferenças não é outra senão o próprio mundo. Dez anos atrás, o neoliberalismo estava no seu auge, ideologicamente falando. O Fórum surgiu inclusive como contraponto a essa ideia, daí o slogan "um outro mundo é possível", como alternativa ao mundo neoliberal em que nos encontrávamos.

Corta para: 2010. Crise econômica mundial. Pela primeira vez desde o novo século, os governos das potências mundiais frearam o livre mercado e reprivatizaram parte da economia. O mundo busca por formas de corrigir os erros econômicos do passado. Nesse quadro, o Fórum Social Mundial volta a ter relevância. Nunca antes, desde o fim da Guerra Fria, a esquerda teve tamanha chance de voltar a influenciar os rumos do mundo. Provada a ineficácia do modelo econômico vigente, as pessoas passam a se abrir e a ouvir sobre esse outro mundo possível. A esquerda sabe a oportunidade que tem nas mãos. E, mesmo assim, está prestes a cometer um erro já típico dela: divisões internas.

Desde o fim da Guerra Fria, a esquerda anda meio perdida. Grita por mudanças, critica o atual sistema capitalista, mas é ridicularizada justamente por não passar disso. Gritar sem agir para mudar. Criticar é muito fácil, todo mundo faz, agora propor soluções e pô-las em prática são outros quinhentos. Aproveitando a ótima hora para agir, um setor do Fórum propõe que este torne-se um veículo agente de mudança, não só um espaço de discussão. Através de uma carta onde seriam postos todos os pontos em comum dos participantes, o Fórum iria então agir para colocá-los em prática.
A ideia parece maravilhosa, o fim da conversa fiada e o começo da contrução desse outro mundo possível. Mas seria o Fórum o lugar certo para isso? O próprio criador do evento, Oded Grajew, acha que não. Mas um espaço com tantas representações populares, com gente de todo tipo e de todos os movimentos unidas em prol do bem comum, não seria o local ideal para começar uma ação prática? Só que, para uma ação bem sucedida, é preciso ter foco, e não há foco sem hierarquização. Se não me engano, é ele que dá esse exemplo muito bom: imagine dizer para o movimento gay que a prioridade de ação é a reforma agrária. Não dá. Isso cortaria a raiz do Fórum, que é a oportunidade de debater sobre todos os problemas que assolam o mundo, tratando-os com igualdade. Partindo para a ação, esse debate iria acabar priorizando alguns problemas em detrimento de outros. E o sucesso do Fórum vem de tratar todos os problemas sociais, quaisquer que sejam, com a mesma importância. O Fórum serve para pensar. A partir daí, age-se fora dele.

Entendo esse ponto de vista e simpatizo com ele. Mas temo que a hora de agir passe e acabemos perdendo o trem. Viveremos nesta semana um pouco do outro mundo possível. Conviveremos com gente de todos os lugares, de todos os tipos, conversando e trocando opiniões e respeitando-se mutuamente. Mas e depois? Terminará a teoria e começará a ação. Mas ninguém organiza essa ação. É preciso um segundo evento, ou minifóruns de cada área, para os grupos colocarem em prática o que se aprendeu no Fórum. Que, assim, continuará como um lugar para o pensamento livre. O Fórum é a sala de aula. Fora dele é o mundo real.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A brincadeira

O Emerson quis pregar uma peça na mãe dele.
- Mãe, eu tenho uma coisa pra te falar.
A mãe olhou pra ele, preocupada com a seriedade do tom de voz do filho. Emerson se segurava para não rir.
- É que... é que eu sou gay.
Pronto. Agora era esperar a mãe fazer um escândalo, perguntar como é que pode, o meu filhinho, que eu criei com tanto amor, ser gay, aí o Emerson diria que era piada e poderia desatar a rir à vontade.
Ao invés disso, a mãe olhou para ele, com uma expressão de compreensão e seriedade, colocou a mão em seu ombro e disse:
- Eu já sabia.
E contou que sempre soube que havia algo incomum no seu filho. Que, desde pequeno, observara que ele parecia mais afeminado que os amigos. Sempre estranhara que o filho nunca trouxera nenhuma menina para casa. Tinha vergonha de perguntar, morria de medo de que o filho tomasse aquilo como uma agressão à sua privacidade, mas agora se sentia aliviada por ele ter aberto o jogo.
- Quê?! Não, eu estava brincando... eu não sou...
- Tudo bem, filho. Não há motivo de vergonha. Vários homens são, só não admitem. Mas você foi mais corajoso que eles. Você abriu o jogo. Parabéns. - e lhe deu um abraço.

***

O Emerson, no mesmo dia, marcou de se encontrar com os amigos, o Tobias e o Flávio. Lá estavam eles, na esquina onde marcaram o encontro.
- Pessoal, vocês não vão acreditar na minha mãe, ela...
Mas o Flávio fez um sinal para ele parar de falar. Só então o Emerson notou que eles estavam anormalmente sérios.
- Sua mãe nos ligou. - disse o Flávio - Disse que precisava falar com os amigos do filho. Estava numa situação difícil. Contou que você abriu o jogo. Ela nos perguntou o que fazer, já que tinha certeza que você já tinha nos contado.
- Contado o quê?
O Tobias deu um passo adiante.
- Como é que você não abriu o jogo pra gente, cara? Pros seus amigos? Poxa, a gente é quase irmão, como é que você não conta isso pra gente?
- Vocês não entenderam, é que...
- É normal que você tenha medo do que as pessoas vão pensar, - continuou o Flávio - mas nós somos seu amigos, cara. E vamos continuar sendo, não importa se você seja homo, bi ou zoófilo.
- Zoófilo?
- Agora tudo faz sentido. - meditou o Tobias. - nas festas, você leva fora de todas as mulheres. Na verdade você faz de propósito. É só para manter a máscara, pra parecer que tentava. É claro, é impossível alguém levar tanto fora. Não tem como. Como nós nunca desconfiamos?
- Fora? Eu...
O Flávio botou a mão no ombro do Emerson.
- Olha, todas aquelas piadas... todas aquelas vezes que a gente te chamava de bichinha, de viadinho... a gente faz isso com todo mundo, viu? A gente não sabia que você... enfim, desculpe.
- E outra coisa - continuou o Tobias - todo mundo tem gostos estranhos. Tem quem goste de homem, de mulher, de outras coisas. Eu tenho um amigo arquiteto que se excita cada vez que vê o Centro Georges Pompidou. Você se excita com homens. Normal. Tranquilo. Só nos promete uma coisa: não esconde mais uma coisa dessa importância dos seus amigos, tá?
- Ehr... tá.
Terminada a conversa, resolveram ir embora. Tobias foi na frente. Antes de ir, o Flávio cochichou "me liga mais tarde" no ouvido do Emerson e passou a mão na sua bunda.

***

Emerson está vivendo um dilema. Agora todos pensam que ele é gay, e, o que no fundo mais o incomoda, ninguém achou estranho. É como se todos já esperassem isso dele. As pessoas aceitaram tão facilmente, que desfazer o mal-entendido iria dar um trabalho dos diabos. E, ao contrário do que pensava, as pessoas passaram a tratá-lo melhor. Eram inclusive mais cordiais, principalmente seus amigos, que não pegavam mais no seu pé. A única coisa que realmente mudara é que cada vez que alguém fazia uma piadinha sobre gays subitamente se dava conta de que o Emerson estava no recinto e pedia desculpas, visivelmente embaraçado. Fora isso, a vida corria tranquila, e o Flávio estava ali, dando sopa. Emerson estava numa seca danada com as mulheres. Quem sabe não seria mais fácil simplesmente... não, melhor não. Iria desmentir a história toda. Melhor ser um homem frustrado do que um gay falso. Integridade acima de tudo.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Histórias de Verão

1. BIA

Disse que seu nome era Bia, e ficou esperando por uma reação. O homem demorou um pouco para se lembrar. Ah, claro, a Bia do colégio!

- Bia! Quanto tempo!

- É! Faz uns vinte anos.

Eram colegas no ensino médio. Não se viam desde a formatura. Ela estava radiante, a Bia. Estava realmente feliz em reencontrá-lo. E, vestida naquele biquíni branco, estava um espetáculo. Há mais prazeres que a praia proporciona do que o sol e o mar. Revelar as curvas seminuas das mulheres é um deles.

- Veraneia sempre aqui?

- Pois é, é a minha primeira vez.

- Está gostando?

- Sim, sim. O mar é ótimo.

Continuaram conversando amenidades à beira-mar. Ele pensando, ela não envelheceu um dia sequer. Bia continuava como se ainda fosse uma adolescente na flor da idade. Bem diferente da sua mulher, que estava neste momento tomando sol ao seu lado. Torcia para que ela não percebesse a chegada de Bia. Casara-se muito cedo. Antigamente era bonita, até, a sua mulher, mas mais velha que ele. Pior, acabou deteriorando-se muito rápido. O tempo não é algo saudável para algumas pessoas. Estava decrépita, com uma aparência uns dez anos mais velha do que a realidade. E não fora só sua beleza que se perdera. Se antes era simpática, agora estava insuportável. Não era um casamento feliz. Se não fossem os dois filhos, o homem consideraria o divórcio, mas acabara se conformando com sua vida. Isto é, até Bia aparecer minutos atrás no seu biquíni branco.
A esposa, que estava tomando sol num estado de semi-torpor, levantou a cabeça para ver que som de conversa era aquele.

- Beto! Quem é essa?

Pronto, pensou ele. A besta despertou. Bia olha para ela, como se acabasse de perceber que ela e o homem estavam juntos, e pergunta o óbvio:

- Ah! Vocês dois estão juntos?

Ele olha para uma, depois para a outra. Sentia-se no meio de uma encruzilhada, prestes a decidir o caminho do resto de sua vida. Só dependia de para quem respondesse primeiro. Podia escolher uma vida de decepção com sua mulher, ou uma chance dourada de novas oportunidades com Bia. Virou-se para Bia:

- Ah, essa aí é a minha mãe. Eu trouxe ela para veranear comigo. O médico disse que o sol faria bem pra ela.

- Como é que é, Beto?!

A mulher olhava pra ele, boquiaberta.

- Ah, não enche, mãe! Com licença, que eu e a Bia vamos sair para tomar uma água de coco. - e, virando-se novamente para Bia - Aceita?

Ela faz que sim com a cabeça, sorrindo. Os dois vão embora, sob o olhar estupefado da esposa. Agora foi, pensou Beto. O jeito é aproveitar.


2. O VELHO SURFISTA

O Tadeu e o Milton morreram de rir quando o Otávio apareceu na praia caracterizado de surfista: bermuda de surfe, colar de surfista e, é claro, a prancha. Estavam todos no lado mais curto dos quarenta, e nenhum deles tinha a menor conexão com o mundo do surfe. Quanto mais o Otávio.

- Qualé, Otávio? Deu pra virar surfista nessa idade? - perguntou o Tadeu, ainda rindo.

- Vocês não entenderam nada. É pra pegar as menininhas. - defendeu-se o Otávio. E acrescentou: - elas gostam.

- Ah, e você acha que só posar de surfista vai adiantar alguma coisa? - questiona o Milton.

Antes do Otávio responder, é abordado por três meninas de seus dezenove anos, que vieram puxar papo com ele. Os dois amigos observaram o desenrolar da conversa, impressionados. Otávio dizia para elas que surfava desde jovem, e agora buscava o seu eu entre as ondas. As meninas perguntavam sobre a prancha. Essa prancha?, dizia o Otávio. É uma semi long-short seis ponto dois quartos. As meninas sorriam, impressionadas. Queriam ver o Otávio em ação. Por que ele não ia surfar agora?

O Otávio olhava para os surfistas no mar e balançava a cabeça negativamente. Disse:

- Esses aí surfam qualquer coisinha. Estou esperando pelas ondas boas.

E as meninas se derretiam.

Quando elas foram embora, o Otávio explicou para os amigos que existia um tipo de mulher que era vidrada em surfista. Era só essas mulheres verem um surfista que saíam correndo atrás. O Otávio, diferente do Milton e do Tadeu, não tinha barriga, se cuidava, ia à academia. Dava pra enganar como surfista.

- Dá muito certo - explicou. - o segredo é só ficar longe do mar.

No outro dia, o Milton apareceu com uma prancha de bodyboard. De isopor.

- Que é isso? - ria-se o Otávio. - você acha que vai enganar alguém com isso? E com essa barriga, ainda por cima?

O Milton disse que vira a pranchinha por 30 reais no caminho da praia, e lembrou-se do Otávio. Deu de ombros.

- Não custa tentar.


3. A VOLTA DO EDSON

O Edson nunca estava satisfeito com o que tinha. Era essa a conclusão de seus amigos. Mas chegaram a pensar por um momento que dessa vez ele tomaria jeito. Convidara a Sandra para veranear com eles, algo que faziam todos os anos. Talvez, pensaram, o Edson se acomodasse com a Sandra.

***

Estavam o Téo, o Jorge, o Silva, o Edson e a Sandra na praia. O Téo deu a ideia de o grupo dar uma volta pela beira do mar, só pra se mexer, mesmo. A Sandra preferiu ficar tomando sol. O Edson disse que ia e já voltava, ela disse pra ele voltar logo, amor, e os dois se deram um longo e apaixonado beijo.
Assim que se afastaram o suficiente, o Edson disse:

- Tá legal, preciso de ajuda pra me livrar dela.

O Jorge soltou um palavrão. O Téo disse algo como "de novo, Edson?". O Silva não disse nada. O Silva não falava muito.

- Deixa eu me explicar. A Sandra é superlegal, é linda...

- Ela é perfeita pra você! - exclamou o Jorge.

- Deixa eu me explicar, pô! Tá, ela é legal e tal, e eu realmente achei que a gente ia dar certo juntos. Não havia o que dar errado: a mina tinha tudo o que eu queria numa mulher. Só que...

- Só que o quê?

- Vocês não notaram uma coisa nela nesse verão?

Não. Ninguém notara. A Sandra continuava tão perfeita quanto sempre fora. O Edson notara.

- Vocês sabem que a Sandra anda muito de tênis. Anda sempre de tênis. Tanto que eu vi o pé dela pela primeira vez aqui na praia. Vocês viram o pé dela, não viram?

Não, ninguém vira. O Edson mandou o grupo se aproximar, como quem conta um segredo:

- Ela tem dedos gordos.

O Jorge gritou um "ah, para!" tão alto que assustou o Edson, que estava falando baixinho. Os outros também estavam indignados. Pediam explicações.

- É um pé gordo! É um pé gordo! - exclamava o Edson, como se fosse lógico. - eu não posso namorar uma mulher sabendo que ela tem um pé gordo. Mesmo que ela coloque um tênis, eu ainda vou saber que ali estão aqueles dedos gordinhos, escondidos, me olhando... não dá.

- Edson, pensa bem no que você está fazendo, terminando com ela só por causa do pé... - argumentou o Téo.

- Não dá, cara. Você sabe quais são os meus critérios.

Ah, sim. O Edson tinha os seus critérios. Eram características que todas as suas namoradas deveriam ter.

- E então, Téo? Você lembra quais são os meus critérios?

O Téo suspirou. Repetiu, como uma criança que repete uma conjugação de verbo no pretérito perfeito que acabou de decorar:

- Ter menos de um metro e setenta, cabelos no mínimo na altura dos ombros e pés bem cuidados.

- Exato! E pés com dedos gordos não se enquadram como pés bem cuidados. - sentenciou.

Os amigos diziam para ele não fazer isso, para esperar pelo menos até o término do verão, mas o Edson estava decidido. Não estava pedindo uma opinião, estava relatando a sua decisão.

- Eu também queria que tivesse dado certo. Mais do que vocês. Mas não dá pra namorar alguém que tenha um pé daqueles. Por mais que o resto do corpo seja bom, vai sempre existir aquele pé pra me atormentar. Desculpem. Inclusive, vou lá agora mesmo acabar com isso.

E ele deu meia-volta em direção à Sandra. Quando o Edson já estava longe, o Silva disse que era uma boa considerarem procurar novos amigos.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Expressões

Os esquimós supostamente possuem 70 palavras para descrever diferentes tipos de neve. O que faz sentido, pois é praticamente tudo o que eles veem durante o ano. Por conviver com neve o tempo inteiro, conseguem diferenciá-la em categorias. Eles devem ter palavras específicas para a neve mais molhadinha, quase água, para a neve mais dura, quase pedra, e algumas dezenas de jargões para tudo o que há entre esses extremos.

A nossa sociedade ocidental moderna não parece ser tão evoluída quanto a dos esquimós, em termos de riqueza gramatical, ao menos. Não temos 70 verbetes diferentes para neve, o que é desculpável já que ela não é parte essencial da nossa vida, mas poderíamos ter, por exemplo, verbetes para os diferentes tipos de expressões faciais com as quais nos comunicamos. Deve existir ao menos algumas dezenas de tipos diferentes de sorrisos, que vão do sorriso genuíno, mostrando-se as duas fileiras de dentes até quase a altura da gengiva, até o anti-sorriso, com as laterais da boca puxadas para baixo ao invés de para cima, na posição de meia lua invertida. Pouco lembrado, o anti-sorriso é usado justamente nas situações inversas às passíveis de um sorriso genuíno: ao receber uma notícia ruim, ao ver uma catástrofe iminente e ao ouvir que o Collor foi eleito senador, por exemplo. Geralmente é seguido de um barulho de sucção de ar entre os dentes, um substituto para uma interjeição como "ouch!", "quase!" ou "bah!". Não confundir com o barulho de sucção emitido por alguns machos ao verem uma fêmea com características corporais avantajadas. Som parecido, origens comportamentais diferentes.
Os gestos corporais e expressões faciais substituem o uso da palavra e são universais. Existem antes da linguagem, e alguns são inerentes ao instinto humano. Sombrancelhas arqueadas pra dentro vão ser entendidas como sinal de raiva em qualquer lugar. Um soco na cara também. Qualquer um, seja um chinês ou um aborígine, vai entender um soco na cara como um sinal de desprezo, e irá reagir igualmente, e responder com a mesma expressão universal de ódio, surpresa e dor, além de contraatacar, com a intenção assassina de desfigurar o oponente. É universal. A comunicação é uma coisa linda.

***

Os gestos e expressões corporais, mesmo depois da invenção da palavra, ainda são úteis. Muita gente ainda usa-os em situações específicas no lugar de palavras. Um muito usado é o olhar questionador, que o seu vizinho dá quando você pisa no pé dele em um elevador lotado ou que um cara em uma festa lança quando você esbarra acidentalmente nele e derruba bebida em sua roupa. É um olhar que mistura incompreensão e raiva. "O que foi isso garoto? O que acabou de acontecer aqui?", misturado com "e aí? Vai fazer o quê a respeito?". É um olhar que possivelmente atravessou os milênios, e era usado desde a pré-história, quando um homem das cavernas dava um golpe de tacape na cabeça de uma mulher e, já puxando-a pelos cabelos, esbarrava num outro homem das cavernas, que havia pego a mulher primeiro. E usava esse olhar contra o ladrão de mulher. "Qualé?". Sem dizer nada, ele questiona e espera uma resposta. Que também pode ser não verbal: uma mão levantada, com a palma virada para fora, como um "opa!" tardio, que também pode significar um "não me bate!", seguido de um polegar para cima. "Tudo certo". O polegar pra cima é uma afirmação, está tudo certo, não aconteceu nada. Quem declara que está tudo ok é você. Ok, não foi por mal. Agora com licença, vou seguir a minha vida. Quem questiona é o outro, mas quem dá a situação por resolvida é você, com o seu polegar. O que não poderia ser feito numa discussão verbal. Bem jogado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ensinando a pensar

Entrei no elevador e apertei para descer pra garagem. A porta fechou-se, e esperei por um tempo que pareceu anormalmente longo. A porta abriu no décimo andar. Estava antes no quarto andar, o elevador subiu seis andares. A menina que havia chamado o elevador, de seus dez anos, entrou, me deu um oi econômico e apertou no sete. O elevador desceu três andares e parou no sete. A menina deu um tchau econômico e saiu.

Pensei: "essa juventude está perdida".

Não há como conceber um mundo onde uma menina, no auge de seus dez anos de idade, precise de um elevador para descer três andares. E ainda mais de um elevador que estava no quarto andar. Isso significa que ela precisou esperar o elevador subir seis andares para poder descer três. Isso tudo para não ter que usar a escada.

O elevador, para subir seis andares, leva cerca de um minuto. O que, na geração banda-larga, equivale a uns cinco minutos, multiplicados por três, para corresponder à percepção de uma criança de dez anos à passagem do tempo. O mais assustador, o que me tira o sono, é que ela preferiu esperar isso tudo só para não usar a escada. Descartou o método mais saudável e recomendável em termos de aproveitamento para poder usar as pernas o mínimo possível. Sem se importar se havia alguém (eu) preocupado em usar o elevador para descer. A menina me fez subir até o décimo andar para então descer à garagem porque ela não queria usar as pernas. Isso revelaria uma falta de consideração grave para com o próximo por parte dela, mas eu tenho a certeza de que a hipótese de que alguém mais precisasse utilizar o elevador nem passou por sua mente. O mundo, na sua percepção, não existe fora ela. E as suas pernas.

***

Em outra nota, o Colégio Anchieta completou esta semana 120 anos. É o colégio onde estudei, pra quem não sabe. Não posso dizer que foi um lugar onde me senti bem, mas isso não foi culpa do corpo docente nem da direção. O Anchieta é um colégio que preza pelos valores humanos acima da competição, pela caridade acima do ganho próprio. O modo como os alunos entendiam isso era por ajudar o colega a colar na prova, mas enfim, a mensagem era válida. O fato da direção da escola seguir essa linha e de boatos espalhados de má fé (diziam, com tom de desprezo, que os professores eram todos petistas) ajudaram a construir uma imagem esquerdista do estabelescimento de ensino. Ano passado, a revista Veja aproveitou-se dessa imagem para publicar uma matéria onde chamava o Anchieta (juntamente com outras escolas) de comunista e retrógrado. Foi o começo do meu ódio com a Veja.

O slogan "Ensinando a Pensar" não era totalmente verdade: o foco do ensino não diferia-se das fórmulas prontas que qualquer colégio ensina. O método de muitos professores era centrado na decoreba, mesmo. Por isso, faz mais sentido a mudança no slogan feita ano passado para "Ensinando a Pensar no Outro", que é condizente com a realidade. Estranhamente, há algum ruído que não faz essa mensagem chegar aos alunos. O Anchieta tem uma fama ruim entre os jovens de outros colégios, como o recanto de gente rica e esnobe, que nada tem a ver com o foco educacional da direção. Talvez porque trata-se de um colégio de elite, com uma mensalidade cara que só pode ser paga por quem é rico ou ao menos possui certo conforto financeiro. Infelizmente, o que deveria ser só uma caricatura não está muito longe da verdade. A minha tese é a de que a mensagem não chega ao público por não ter nada a ver com este. Uma educação de caridade e cuidado com o próximo não condiz a alguém que já está no topo e não irá ganhar nada com isso. Essa não é a realidade dele.

***

Talvez o colégio espere que haja um caso em cada dez em que a mensagem chegue ao seu destino. Eu fui um destes casos. Sinto que a menina do elevador é do Anchieta, embora não tenha certeza. Vamos ver se o colégio tem algum sucesso em ensiná-la a pensar. No próximo, ao menos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O narrador

A história é sempre uma versão da história. É a versão do narrador. Quando lemos um livro, não estamos acompanhando uma história em primeira mão, estamos acompanhando o narrador dizer o que aconteceu. Um livro é sempre um relato. É impossível escrever um livro sem narrador: mesmo onisciente, este existe. Foi ele quem presenciou a história, não nós. Estamos lendo as suas impressões, as suas observações. A presença do narrador impossibilita um contato direto do leitor com a história. Ele sempre estará lá, como um penetra, entre nós e o fato. O que faz dele um cara muito suspeito. Como confiar se o que o narrador diz é verdade? Não temos escolha, só há a versão dele. Caso o narrador seja onisciente, é mais suspeito ainda: como eu vou acreditar na história de um cara que nem revela quem é? Como vou saber se ele realmente viu tudo aquilo, se não há registros de sua existência? Muito suspeito.


Exemplo clássico: Dom Casmurro. Na obra temos somente a versão de Bentinho, que é a de que sua mulher o traiu. Se o narrador diz, é porque deve ser verdade. Quando questionaram a veracidade do narrador em Dom Casmurro, os estudiosos da literatura botaram em xeque todo o sistema de narrativa literária construído pelo homem. De repente, o narrador não era mais confiável. Passaríamos a ler os livros com uma pontinha de desconfiança, sempre nos perguntando se foi bem assim mesmo. Isso implicaria em muitas questões metafísicas, pois, se mesmo uma história de ficção pode não ter acontecido bem assim, então o que é real? Se a mentira admitida não é verdade, o que é? Sem saber, Bentinho abriu espaço para questionamentos metafísicos que vão desde a existência de Deus até a margarina diet. É margarina? É plástico? Como saber?

 Há ainda um terceiro fator em Dom Casmurro, que é o de que Bentinho poderia, em sua culpa, estar ele mesmo se enganando da verdade. Por querer acreditar que fez o certo, contava a hipótese como verdade absoluta, como forma de autoafirmação, enganando a si mesmo e a nós por tabela. Os únicos que saberiam ao certo seriam Capitu e o próprio autor, Machado de Assis. Neste caso, Assis é o grande culpado. Ele poderia ter com a mesma facilidade escolhido Capitu para ser a narradora, alguém com muito mais crédito para contar a verdadeira história. Ao invés disso, escolheu o marido enciumado, o marido responsável pela desgraça da mulher. O autor é cúmplice de Bentinho em suas ações. Escolhendo a sua versão como a oficial, ele colabora com o crime, um crime ficcional, mas nesse jogo de mentiras e verdades, quem vai saber?

O autor é um cúmplice do narrador, pois escolhe a versão deste em detrimento de outras. Que seriam dos livros se outros personagens fossem os narradores? E se Capitu narrasse? Se Long John Silver fosse o narrador da Ilha do Tesouro, ele ainda seria um pirata desprezível ou seria um libertador da tripulação, amotinada por maus-tratos do antigo capitão? Não há registros desses maus-tratos no livro, mas é Jim Hawkins o narrador, e, como ele era o queridinho do capitão, seria muito fácil omitir algumas informações comprometedoras. Será que Sauron era um cara tão mau assim? Vai ver era o contrário, eram os hobbits os vilões e nós fomos acreditar na versão dos vencedores.

Jesus Cristo teve a sua vida escrita por quatro apóstolos diferentes. São quatro pontos de vista de uma mesma história. Sem notar, Mateus, Marcos, Lucas e João solucionaram o problema criado por Machado de Assis mais de um milênio depois. Uma história com multinarradores. Sem dúvida, homens muito à frente do seu tempo. Este é o futuro da literatura: livros com multinarradores. Pra ser justa, cada obra precisa ser narrada por todos os personagens envolvidos. Até os figurantes, que, por não estarem envolvidos diretamente, são até mais confiáveis. Sim, dá uma mão desgraçada escrever tudo isso. Mas é necessário. Quem disse que é fácil ser justo?

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Tarantino

Vi um cara na rua com uma camiseta do filme Cães de Aluguel com a frase "Every dog has it's day". Fiquei pensando que, como os cães do título são os assaltantes contratados, faria mais sentido se eles tivessem o nome de raças de cachorro ao invés de cores. Casaria perfeitamente. Será que o Tarantino deixou passar essa? Pouca coisa teria que mudar. No máximo algumas falas.

CHEFE: - Muito bem: você vai ser o Mr. Husky, você o Mr. Schnauzer, você o Mr. Dobermann, você o Mr. Foxhound, você o Mr. Chiuaua e você o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ei, eu não quero ser o Mr. Poodle!
MR. CHIUAUA: - Ei, você está reclamando? Eu sou o Mr. Chiuaua. É quase um Mr. Merda.
MR. POODLE: - Por que não podemos escolher nossos próprios nomes?
CHEFE: - Não dá certo. Se eu deixasse, vocês iriam ficar brigando para ver quem fica com o Mr. Pit Bull. Eu escolho. Você é o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ao menos Mr. Yorkshire. Eu vou ser o Mr. Yorkshire.
CHEFE: - Não dá, já tem um cara em outra missão que é o Mr. Yorkshire. Você é o Mr. Poodle.
MR. FOXHOUND: - Cara, tanto faz qual é o seu nome.
MR. POODLE: - Ah, muito fácil pra você dizer, o seu nome é o mais legal, Mr. Foxhound!

***

Temos Tarantino. E com Tarantino, temos Pulp Fiction. E Kill Bill, e Cães de Aluguel, e mais recentemente Bastardos Inglórios. Mais ou menos nessa ordem. Mas ninguém se lembra de Jackie Brown. Ou, no máximo, lembram-no como o filme que tem o Robert de Niro interpretando um cara que fica sentado num sofá. Jackie Brown não tem cenas sangrentas como os outros filmes, nem, até onde eu me lembro, nenhum Impasse Mexicano, ou seja lá como chamam aquele negócio de todos os personagens se apontarem armas ao mesmo tempo. E justamente por isso deveria levar o crédito que não recebe. É uma tentativa de Tarantino fazer um filme de Tarantino sem ser Tarantino. E ele consegue, apesar de isso ser meio que um paradoxo. Jackie Brown não tem as características dos seus outros filmes, mas dá para sentir a ironia do diretor nas cenas, nos seus personagens. E é um bom filme. Eu gosto mais de Jackie Brown inclusive que muitos clássicos do diretor. Se você já viu e achou sem graça, dê mais uma chance, mas dessa vez sem esperar por um Pulp Fiction dois. Tarantino agradeceria.


Agora, Bastardos Inglórios é o filme. Me desculpem os fãs de Pulp Fiction, mas esta é a obra-prima do Quentin. É o mais engraçado, tem os melhores atores e é magistralmente dirigido. O final poderia ter sido feito por uma criança de 7 anos, é verdade, mas isso é natural do diretor. Quando se trata de cinema, Tarantino é uma criança deslumbrada, que se comporta como se estivesse num parque de diversões. No cinema, tudo é possível, até alterar a História. Quentin não vai se prender a regras como veracidade histórica, pois elas limitam a diversão, a dele e a nossa. Ele vai fazer o que achar mais divertido. E se isso quer dizer, por exemplo, matar metade do elenco em uma cena, ele o fará. O que não surpreende, pois todo mundo já espera que o elenco inteiro morra até o final do filme.

***

Faça o seu filme de Tarantino:
- Dê um jeito de conseguir o Samuel L. Jackson. Nem que seja a voz dele.
- Divida seu filme em capítulos.
- Armas.
- Certifique-se de que o sangue jorra em jatos.
- Armas apontando umas para as outras.
- Coloque referências à cultura pop. Não se preocupe: por mais obscura que ela seja, sempre haverá alguém na internet que a entenderá.
- Comédia violenta é como uma roleta: você deixa violento demais até deixar de ser engraçado, aí você deixa ainda mais violento que a roleta dá a volta completa e volta a ser engraçado de novo.
- Redija um diálogo sobre hambúrgueres, massagens ou algo que pareça sem sentido, mas que, a uma segunda análise, pareça inteligente. Com uma terceira análise, vê-se que na verdade não havia sentido, mesmo.
- Lembre-se: palavrões são seus amigos. Use vários.
- Se até as velhinhas no seu filme estão falando palavrões, é porque você está no caminho certo.
- Se palavrões são seus amigos, sangue é a sua amante. E ela gosta de ser abusada.
- J-rock e Nancy Sinatra combinam? Ah, combinam.
- Quanto mais obscura a trilha sonora, melhor. E se contiver referências pop, melhor ainda.
- Se, ao final do filme, mais de um quarto do elenco sobreviveu, você fez algo errado.
- Se o filme fizer sucesso, o seu próximo será um fracasso. Mas o depois deste será um sucesso.

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Quentin inaugurou um novo gênero de cinema, uma espécie de "gore-comedy", filmes com diálogos beirando o cômico e o filosófico e uma violência ultrarealista, que de tão exagerada não tem como ser levada a sério. Quando se entende isso, não há como achar seus filmes pesados. É o que diferencia o mau gosto do humor negro. Se Tarantino fizesse as suas cenas com o intuito de causar repúdio ao espectador, seus filmes seriam de mau gosto, mas não é o caso. Ao contrário, eles não causam repúdio e sim fascinação, principalmente aos seus milhares de fãs. Longa vida a Tarantino.