sábado, 22 de dezembro de 2012

Preservação



O homem passou pelo grupo de quatro cabeludos, então parou e voltou, como num filme rebobinado.

- Por Deus! Metaleiros!

O senhorzinho, um tipo estranho de óculos e cavanhaque pontudo, olhou fascinado para o quarteto, que o olhou de volta, confuso.

- Como é que é?

- Metaleiros genuínos! Pensei que vocês estavam extintos! Bom Deus, não vejo um metaleiro desde... Nossa, acho que desde 2005! Fascinante!

- Ei, larga a minha roupa!

- Perdão. Só queria inspecionar o tecido. Camiseta preta do Guns n' Roses, falsificada. O cabelo, as correntes, o colar de pentagrama... Sim, é tudo como nos livros...

- Olha, não sei qual a sua intenção com isso, mas não acho...

- Só um momentinho, estou ligando para a minha esposa. Alô, Lourdes? Lourdes, você tem que ver isso!

Os metaleiros, desconfortados, trocaram olhares. Por um lado pensavam que deviam se sentir ofendidos, de algum modo, mas a excitação do homem parecia tão verdadeira que nenhum deles tinha coragem de repreendê-lo.

- Desculpem por isso – disse o homem, ao desligar o celular - Eu e minha mulher somos antropólogos, e isso é realmente uma descoberta especial... Quem diria, metaleiros! Em plenos anos dois-mil-e-dez! Pensei que todos tinham desaparecido após o Grande Inverno de 2006... Sim, um período terrível para a música em geral. Como se safaram dessa?

- Sei lá, cara, nós não escutamos rádio, então ficamos meio alheios do que a galera anda ouvindo. Eu ligo o meu som de casa, boto o Iron pra tocar e fica tudo certo.

- Hmm... Se entocaram para preservar a energia vital... Muito esperto, muito esperto.

- E, bom, sempre tem a Internet. A gente se encontra por afinidades, marca de dar umas bandas juntos, ouvir uns sons...

- E ainda por cima deram um jeito de manter a coletividade! Oh, os artigos que eu poderia escrever sobre isso! Mas quantos de vocês sobraram? Como se reproduzem? Noto que só há machos no grupo.

- Ei! O que está sugerindo?

- Não sobrou nenhuma fêmea? Ai, meu Pai! Estou com representantes de uma civilização extinta, bem na minha frente!

- Isso é uma piada sobre a gente não comer ninguém? Já tive que aturar bastante disso no colégio.

- Do que se alimentam? Noto que estão magros. Pobres almas, devem vagar errantes por esta terra estranha atrás de pedaços de carniça...

- Na verdade o Beto mora bem ali...

- Façamos o seguinte: hoje vocês jantarão na minha casa. Vou ligar para a Lourdes e pedir para ela preparar a mesa. Pai Celestial! Ela vai ficar maluquinha!

Na verdade estavam todos meio quebrados e um jantarzinho de graça não seria má ideia. Além do mais, o homem parecia muito empolgado e seria uma crueldade com ele recusar o convite.

- Tá bom, mas é só um jantar rápido.

- Não se preocupem, vou pedir para a Lourdes deixar a carne quase crua. Afinal, não queremos dar nada que o organismo de vocês não esteja acostumado... - e deu uma piscadela.

***

- Querida, trouxe visitas!

Já era noite quando chegaram na mansão do homem. Era uma casa enorme, afastada, no meio do nada. O hall de entrada desembocava numa grande sala com decoração medieval. No centro, uma mesa de madeira com seis pratos. Uma mulher entrou na sala carregando uma terrina. O senhorzinho a apresentou:

- Metaleiros, esta é a minha mulher, Lourdes.

Lourdes largou a terrina na mesa e parou em frente ao grupo, examinando-o com olhos desconfiados.

- Hmm, o cabelo, as correntes, o colar de pentagrama... Tem certeza de que eles são legítimos?

- Absoluta, meu amor. Chequei todos os detalhes.

- A camiseta do Guns n' Roses?

- Legitimamente falsificada - disse, abrindo um grande sorriso.

A mulher continuou a inspecioná-los com os olhos durante mais algum tempo. O grupo já estava cheio disso. Tá bom, iam ganhar um banquete de graça, mas a situação estava ficando chata. A mulher os estava examinando como animais, o que era, no mínimo, uma insensibilidade, ainda mais com as visitas.

Lourdes se deu por satisfeita:

- Está certo. Desculpem os meus modos e os de meu marido. Sejam bem-vindos. Por favor, sentem-se à mesa, fiz um belo assado de porco para vocês.

Ufa, pelo menos agora ela falou conosco, pensaram. E o assado tinha um cheiro delicioso. O grupo prontamente obedeceu o pedido da anfitriã e sentou-se à grande mesa. Enquanto se 
serviam da carne de porco, Lourdes trouxe mais comida.

- Muito bom mesmo, dona Lourdes! - disse um dos metaleiros - O assado está ótimo. E as batatas, então, nem se fala.

A comida estava tão boa que o grupo não ousou questionar por que o casal não se sentara à mesa com eles. Dúvida esta que foi sanada quando, de súbito, grades subiram do chão e os cercaram, formando uma jaula. Os prisioneiros gritaram, mas o casal sabia que era só não dar atenção e logo eles desistiriam. Foi o que aconteceu com todos os outros.

Às vezes o marido se sentia mal por aprisionar pessoas em sua casa, mas sabia que estava fazendo um bem para a espécie. Eles provavelmente não sobreviveriam muito tempo no mundo lá fora, onde a seleção natural destruiria as minorias já enfraquecidas. E além do mais, era um belo presente para se redimir com a mulher.

- Que bacana, né, Lourdes? Você sempre quis metaleiros...

- Cala a boca Mauro, que eu não me esqueci do João.

João era o dark que morreu quando Mauro esqueceu de alimentá-lo por duas semanas. Mauro ficou calado. Ela tinha razão, mas aquilo já fazia dois anos, pombas. O tempo passa. A gente aprende.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Natureza animal

- Ai!

- Opa.

- Você me mordeu?!

- Desculpa.

- Você me mordeu, seu tarado!

- Eu? Não.

- Mordeu sim! Tarado! Tarado!

As pessoas em volta notam o início de tumulto. Um homem alto, parrudo, pergunta:

- Está tudo bem, moça?

- Esse tarado me mordeu! No meio do ônibus!

- Olha, não vamos fazer alarde... - tentou o autor da mordida.

- Fica quieto! Qual é a sua, cara? Cê tem problemas?

- Você mordeu a moça?

O sujeito reluta, mas dá de ombros e admite.

- Sabe como é, ônibus lotado, aquele ombro nu...

- Eca!

- Tá maluco, rapaz? Morder a moça?

- Foi sem querer...

Princípio de comoção no ônibus. Uma velhinha escuta a palavra "tarado", pensa que é o homem alto e bate nele com o jornal. O autor da mordida aproveita o momento de distração para negociar com a moça:

- Olha só, desculpe, quem sabe se eu compensar isso com dinheiro...

- Quer me comprar?! É assim que você trata as mulheres? Dá mordidas e paga depois?

O homem está suando. A opinião pública não lhe é favorável e, pra piorar, o ar-condicionado do veículo não dá conta do calor. Ele tenta se explicar:

- É... É a natureza animal. Foi instinto, sabe? Estava olhando para o seu ombro e, quando vi, já tinha mordido. Eu normalmente não faço isso, juro. Sou um homem direito. Pago contas. Imposto de renda, acho que nunca soneguei.

- Ah, tá. Daqui a pouco vai dizer que sentiu o meu cheiro e não conseguiu se controlar.

- Mais ou menos. É o clima. Fez frio o mês inteiro, e agora esse veranico. Um mês inteiro sofrendo, encasacado, e daí hoje faz esse calor e eu fico prensado no ônibus bem na frente de um ombro nu, bronzeado... Nem tinha notado o quanto sentia falta de ver ombros bronzeados. Aqueles ombros redondinhos, lisinhos, com uma leve penugem loira...

Vozes em todos os cantos chamam-no de "tarado". O homem corpulento aproxima-se ameaçadoramente. Outros homens põem-se entre o tarado e a moça. Um deles diz:

- Você é uma vergonha.

O homem da mordida ouve aquela palavra. "Vergonha". Aquilo mexe com seus brios. Não, não era uma vergonha. Tinha seguido uma vida correta até ali. Correta demais, até. Um incidente no ônibus não iria derrubar sua reputação, ah não. Deixou de manter uma postura defensiva. Encheu o peito.

- Vergonha, é? Vergonha nada. Se estivessem na minha situação, a menos de um palmo do ombro da moça, em que um movimento de cabeça é tudo o que lhes separa de cravar os dentes num ombro com o encaixe perfeito de uma arcada dentária... Isso não é vergonha. Não devemos ter vergonha dos nossos instintos. Não devemos perder o contato com o barro da vida. Olhem para nós! O que nos diferencia dos animais são essas fantasias que usamos para esconder nossa nudez. Por baixo desses ternos e gravatas encontra-se um símio desesperado para copular.

As palavras surtem efeito. Os gritos de tarado pararam. Todos ouvem o monólogo.

- Você! - disse o homem da mordida ao homem parrudo - Você é como eu. Um macaco domesticado. Mas às vezes... Às vezes nos encontramos numa situação limiar. Uma situação que desperta nossos instintos. Todos nós. Pode ser uma mãe que vê o filho em perigo, ou um homem há muito tempo sem contato feminino diante de um ombro nu. Nesse momento, o macaco dentro de nós toma o controle. Nesse momento, não somos mais responsáveis por nossas ações. Vai dizer que isso nunca aconteceu com você, com todos vocês! Hein? Hein?

O autor da mordida aponta o dedo para o peito do homem parrudo. Silêncio no ônibus. Então:

- Você me chamou de macaco?

- Hein?!

- Chamou sim! Chamou de macaco! - grita a velhinha.

- Não foi isso que eu quis dizer...

Mas aí o homem já tinha puxado uma arma.

domingo, 8 de abril de 2012

Confronto no Condomínio São Sebastião

Completa quarenta e oito horas o confronto entre a administração do condomínio São Sebastião e os rebeldes que ocuparam o salão de festas. O conflito teve início quando João de Marcos Rolim, 26 anos, até recentemente morador do apartamento 410, resolveu reunir os amigos para o que seria sua última festa antes da mudança. O síndico Allan Mesquita Silveira Alves, 60 anos, conhecido pelos condôminos como Seu Mesquita, lembra que a confusão já começou com o número de convidados, que excedia em muito o permitido pelo regulamento interno, mas que isso poderia ter sido resolvido sem prejuízo entre as partes. O real estopim foi quando, às três horas e vinte minutos da madrugada do dia 26, após ter reclamado do barulho por diversas vezes, dona Clotilde, moradora do 201, uma senhora de muita coragem e pouca paciência, foi pessoalmente resolver o problema e levou uma lata de cerveja na cara.

"Foi horrível", relata Alice, filha de Clotilde e também moradora do 201. "Ficaram fazendo piadas com mamãe, chamando-a de 'Bruxa do 201'. Isso depois de acertarem a latinha!". Num misto de tristeza e ódio, Alice rompe em lágrimas e não consegue terminar o depoimento.

Após horas de agonia, dona Clotilde veio a falecer. O condomínio em peso pediu retaliação ao síndico, que rapidamente abraçou a missão de expulsar os rebeldes. "Eles são muitos. O povo cobra ações rápidas, mas não dá pra fazer tudo na pressa. É preciso estratégia", conta Seu Mesquita. Desde as quinze horas do dia do incidente ele se encontra reunido na Sala de Jogos em reunião extraordinária com o conselho do condomínio. São momentos de tensão. Alice resume bem a situação: "Eles tiraram um dos nossos. Vamos querer um deles".

***

Terceiro dia do conflito. Para se proteger, os rebeldes erguem barricadas em volta do perímetro do salão utilizando engradados de cerveja. Moradores cobram ações do poder público, mas a prefeitura, com a repercussão popular do incidente na reserva indígena do Alto Cairú ainda vívida na memória, desautoriza a polícia a agir, alegando que uma ação militar em território não diretamente administrado pelo município implica uma interferência ilegal na autonomia política do condomínio. À tarde, uma das caixas de som que vinha tocando ininterruptamente as mesmas músicas durante 110 horas queima. Disfarçado de visitante, um amigo dos rebeldes entra no condomínio com uma caixa de som nova e um pendrive com música eletrônica. Ele consegue passar pela barreira, não sem antes sofrer uma tentativa de apedrejamento das velhinhas que patrulham o perímetro.

O conselho do condomínio alega que uma invasão à força, apesar dos pedidos dos moradores, não é opção pois os rebeldes são jovens e a maior parte dos condôminos têm problemas de articulação nas juntas. Uma das moradoras pede ajuda a Jorge de Almeida Couto, 27 anos, vulgo "Jorjão", seu fisioterapeuta e personal-trainer no contraturno, para expulsar os rebeldes. A população aplaude a chegada da arma secreta. Jorjão abre caminho facilmente através da barricada de engradados. Tumulto dentro do salão; o aparelho de som é desligado. Ouve-se gritos. Depois de minutos de suspense, Jorjão aparece à porta, visivelmente alcoolizado e com uma garrafa de Natasha na mão. O herói fora convertido. Começa a música eletrônica.

***

Quinto dia. Os rebeldes anunciam publicamente que pretendem fazer "a Maior Festa da História". Eles agora ocuparam a área da piscina e entram de roupa na água, o que Seu Mesquita identifica como "uma afronta direta às regras de uso da área recreativa". Os moradores tentam expulsá-los jogando estátuas de gatos de porcelana e caixas de remédios vencidos, sem sucesso. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Seu Mesquita reclama da omissão da polícia, dizendo que ela "tem a minha autorização para agir aqui dentro, mas não age, pombas". Procurado, o prefeito responde que o conflito e sua resolução são responsabilidade integral dos condôminos e se recusa a envolver as forças municipais no assunto. Também pede que, por favor, parem de contatá-lo, pois está no Rio de Janeiro para fechar parcerias importantes para a cidade e não gosta de levar celular à beira-mar.

À tarde, os moradores têm sua primeira vitória: dois rebeldes morrem na piscina. Após tomar o equivalente a duas garrafas de rum com energético cada um, os jovens sofrem um colapso dentro d'água e morrem afogados. Alice, integrante do movimento "Dona Clotilde Vive", diz que o álcool é uma variável importante na guerra e pode ser o responsável por desmoronar a resistência rebelde a médio prazo. João Rolim, líder dos rebeldes, recebe tal afirmação com desdém. Em entrevista coletiva para jornalistas, ele afirmou que a festa nunca esteve tão longe de terminar e que a resistência tem a situação sob controle, ainda que admita que todos estão alcoolizados há dias. Ao final da entrevista, continuou respondendo a perguntas de um repórter invisível sobre a louraça que está pegando.

***

Já faz nove dias do início do conflito e a festa ainda não tem hora para acabar. Moradores dos andares mais baixos relatam não dormir há uma semana. O confronto transforma-se numa guerra de resistência: qual dos lados aguenta mais tempo?

Às dezenove horas, tensão no salão de festas: falta luz. O síndico teve a ideia de desligar a chave de energia, deixando o salão no escuro. A bateria do MacBook dos rebeldes eventualmente acaba e a música também. Um mártir suicida do lado de fora consegue fazer passar um violão pela barreira, sendo logo depois desmembrado por velhinhas raivosas. Os rebeldes fazem uma roda de viola. Uma garota acha velas na despensa e organiza um luau. Em entrevista, o síndico diz que os rebeldes não resistirão à cerveja quente. A batalha está perto do fim.

***

Décimo dia. A condição higiênica dos banheiros leva a dois óbitos. Rebeldes colocam os corpos na geladeira, bêbados demais para lembrar que ela não funciona sem luz. Pela manhã, os primeiros despilhados cruzam a barreira, sóbrios, enjoados e pedindo, por favor, um celular para ligar para o pai vir buscar. À noite, o cheiro dos banheiros e dos corpos leva a dois desmaios, os primeiros não causados pela bebida. O grupo de revoltosos agora já é bem menor.

***

Na manhã do décimo-quinto dia os rebeldes apresentam suas condições de rendição: anulação de todas as dívidas de guerra, multas de condomínio e pendências no aluguel do salão, além de socorro imediato aos enfermos. O síndico aceita reduzir as multas em 50%, um abatimento estimado em US$ 16 bilhões. Rebeldes negam responsabilidade pelo pagamento e entregam o dono do apartamento e responsável pela festa, João Rolim, para os condôminos. Após a cerimônia de execução do líder revoltoso em praça pública, o síndico declara feriado. Ele diz à CBN que esta é uma vitória do povo sobre a opressão, da Justiça sobre a anarquia, da ordem sobre a selvageria. Uma vitória do Estado republicano, liberal, trabalhador, casado e com 2,5 filhos sobre o que ele chama de "esses guri (sic) com cocô na cabeça".

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No restaurante

O homem estava sentado numa mesa de um restaurante fino, com uma taça de vinho na mão. Ele sacudiu o vinho na taça, sem olhar para o líquido. Seu olhar estava no infinito. Disse:

- A História é apenas uma versão da História.

O garçom que estava próximo não escutara direito.

- Como?

- A História é apenas uma versão da História.

O garçom bufou.

- Sei...

O homem continuou girando o líquido róseo dentro de sua taça, encarando-a firmemente. Disse:

- A vida parece muito com uma taça de vinho: embriaga, traz felicidade, mas no final vira um copo vazio. E dá azia.

O garçom nada comentou. Os cantos da boca do homem levantaram-se levemente, divertidos com a própria tirada. Ele bebeu um gole do vinho e passou a admirar a vista do restaurante. Talvez seja importante mencionar que o restaurante tinha uma vista lindíssima que dava para a parte nobre de uma cidade lindíssima, mas com um custo de vida muito alto, o que fazia o custo do restaurante ser alto também. O homem que agora estava admirando a cidade trajava um terno branco e tinha um bigode fino do tipo que, caso não esteja acompanhado do terno branco correto, corre o risco de ser muito brega.

- Dizem que a beleza é menor que a honra, por ser efêmera. Não seria a honra de todo homem tão efêmera quanto a beleza?

O garçom evitou responder a pergunta, que ele sabia ser retórica. Até porque o homem não estava falando com ninguém em especial. Talvez com o vinho. Ao invés disso, retrucou:

- Claro, e quem sabe o senhor não pede um prato do nosso cardápio para acompanhar a filosofia barata?

O homem deu um risinho, mas continuou falando para a sua taça:

- A humanidade está perdida em ódio e impaciência. Por outro lado, por que será que ninguém se impacienta com a espera da morte?

O garçom se irritou:

- O quê? Olha só, senhor, você vem todo o dia aqui no nosso restaurante, pede uma taça de vinho e fica horas aí rodopiando a sua bebida e falando frases pseudointeligentes, que não significam nada! Eu não sei se você acha que engana alguém com esse falso ar de personagem existencialista de romance europeu, mas o meu trabalho aqui é servir os clientes e não ficar ouvindo baboseiras!

- Sabe por que os ocidentais são um povo triste? Porque perderam o contato com o barro - continuou o homem, ainda sem encarar o garçom - o barro, é claro, é ilusório; o homem, uma falácia. O barro é a falácia da falácia.

- O que raios isso significa?

- Voulez-vous couché avec moi, ce soir. Voulez-vous couché avec moi.

- Isso é a letra de Lady Marmalade! Você não pode achar que disse uma coisa inteligente só porque é em francês!

O homem agarrou o garçom pela lapela e encarou-o, com ódio. Disse:

- Quem guardará os guardiões? Quem guardará os guardiões!

- Essa frase não é sua, é do poeta grego Juvenal! Sua farsa! Pensa que pode me subestimar só porque sou um garçom? Pensa que essa sua pose, essas suas tiradas e esse seu vinho enganam alguém?

O homem soltou o garçom e atirou-se na cadeira, entediado. Falou:

- Os que se julgam fortes precisavam primeiro derrotar suas fraquezas...

- Outra frase que não significa nada! Eu sei o que você está fazendo! Está inventando frases que parecem profundas, mas que se você ver bem de perto não significam nada! Acha que engana alguém, seu charlatão? Acha que basta um punhado de frases de efeito para virar um intelectual? Acha que...

Nisso aproxima-se uma mulher, vestido vermelho, cabelo loiro e curvas estonteantes, e interrompe o discurso do garçom ao chamar a atenção do homem de bigode:

- Com licença... Aquela sua frase, dos fortes que precisam derrotar suas fraquezas... O que quer dizer?

O homem dá um sorriso blasé, atira-se para trás na cadeira e cruza as pernas com muito charme.

- O que são pedidos de explicações senão um jeito de adiar outras perguntas?

O garçom faz um ruído de desprezo.

- Nossa... isso é Nietzche? - pergunta a mulher ao homem. Ele sorri.

- Os pensadores são apenas aqueles que pensaram primeiro.

A mulher fica boquiabera.

- Uau... Se importa se eu me sentar?

O garçom fica boquiaberto. Pelo resto da noite os olhos da mulher não desgrudam da boca do homem, que continua desferido vários pequenos pensamentos em sequência. A mulher acompanha tudo muito interessada e pergunta se o homem não quer continuar a explanação na sua casa. Na saída o homem sente que alguém o cutucou: vira-se e dá com o garçom, com uma caneta e um bloco de notas em punho e um sorriso muito conciliador no rosto.

- Com licença... aquela sua frase da História ser a versão da História, como é que era mesmo?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sem pé, com cabeça

Tem uma banda chamada Hotel Santa Clara da qual gosto muito. Eles são daqui de Porto Alegre mas fazem um som em inglês, que chamam de twee-pop, um estilo de folk/pop britânico. Só que o som deles é muito melhor do que o fabricado em terras bretãs. Não que eu seja ou não um fã da música britânica, mas é que eles são muito bons. Mesmo.

Lá por 2009 eles postaram várias músicas apaixonantes no Myspace. Descobri-os através da minha irmã, que me mostrou um clipe de uma música, chamada Hopefully Foolness, e eu pirei. Depois achei outras músicas, Witty Song, Fitting Silhouettes, Cold as Your Heart, boa, linda, ótima. Apesar das gravações serem demos, a qualidade musical do grupo era inegável. Eles têm um vocalista muito bom que, apesar de não cantar em todas as músicas, tem voz, pronúncia e timbre invejáveis para qualquer banda, nacional ou internacional.

A Hotel Santa Clara é uma big band, ou seja, tem músico a dar com pau: tecladista, trompetista, violinista, três vocalistas e o combo guitarras-baixo-bateria. Não esqueço até hoje um show deles em 2009, o único que assisti: eu, minha irmã e o então namorado dela, num estabelecimento que mais parecia uma casa, sem palco. A banda tocava no nível da plateia. Era a noite inaugural da Tweepopnight, a primeira festa de twee-pop de Porto Alegre. A sala onde seria realizado o show era pequena, e parecia ainda menor pelo fato de haver uma cortina tapando metade dela. O show começou com dois membros do HSC tocando uma música acústica, bonita, mas simples, à frente da cortina. Só que, perto do final da canção... BAM! As cortinas caem e revelam, além de todo o resto da banda, um palco decorado com nuvens de cartolina, charmosamente simples. Todos os instrumentistas se juntam à música numa orgia sonora. É de deixar qualquer um extasiado. Inesquecível. Lá jurei meus votos de fã, e a minha irmã comprou um bottom escrito I (coração) HSC.

No mesmo 2009 eles anunciaram um CD por vir, e eu me beliscava de antecipação. A cena musical da época era favorável ao lançamento: Mallu Magalhães estava em alta fazendo músicas em inglês no Brasil, então o público estava pronto para receber propostas similares. Talvez, quem sabe, eles fizessem barulho no país inteiro? Talento eles tinham. Competência sonora, mais ainda. Com uma boa divulgação eles chegariam longe. Só que...

Só que não aconteceu. Porque a banda acabou.

Uns poucos meses antes do lançamento oficial do cd, a Hotel Santa Clara fechou as portas. Do nada. Num dia estavam postando notícias das gravações no Twitter, no outro não estavam mais juntos. Foi abrupto desse jeito.

Fiquei meio sem entender. Pensei que ia ser um tempo, só, mas o tempo foi passando, passando, e nada. Aí caiu a ficha que eles acabaram mesmo. E caiu a segunda ficha, que não haveria cd. Que aquelas demos, uma amostra do que a banda seria, eram o que de mais oficial restara. Até hoje escuto as músicas, mas me sinto estranho. Ninguém as conhece, por melhores que sejam. Não há ninguém que possa conversar comigo sobre elas. As próprias pessoas que as comporam já seguiram em frente e deixaram suas criações à própria sorte, melodias abandonadas no deserto da internet, para algum explorador encontrar por acidente.

Fiz todo esse preâmbulo para falar que a vida não segue uma cronologia lógica como um filme, com começo, meio e fim. Nem precisa necessariamente ser sem pé nem cabeça: pode ter pé e não ter cabeça, ou ter cabeça sem pé. Pode ser uma coisa com total sentido, de total importância, que simplesmente ficou pela metade. Como a última obra de arte do pintor, aquela que fica inacabada e é bela pelo que é, e mais ainda pelo que poderia ser. Como uma amizade que prometia muita coisa, mas foi interrompida por uma viagem ou, sei lá, pela morte. Como uma carreira interrompida por qualquer motivo. Como um relacionamento que acaba sem ter porquê.

O Myspace do Hotel Santa Clara é este, e algumas das faixas que ficaram prontas para o álbum não-lançado podem ser encontradas aqui. Talvez o fato de mais pessoas conhecerem essas músicas faça-as vivas de novo. Quem sabe.

Tem gente que acha que é mais bonito se algo belo nunca se completar, porque a promessa do que poderia ter sido é infinitamente mais bela do que a realidade blablá... Sei. Não acho. Queria muito saber como seriam várias coisas que ficaram pra trás antes de desabrochar. Inclusive a Tweepopnight, da qual nunca mais ouvi falar. Nem da casa de shows sem palco, aliás, cuja localização nunca mais encontrei. Talvez tenha sido engolida pelo passado, onde existirá eternamente. Talvez exista até hoje em alguma dimensão do espaço-tempo, hospedando bandas finadas com músicas não-gravadas, frequentada por uma plateia de gente sem face que não existe e, por isso mesmo, canta alegremente o repertório, brindando com suas cervejas de marcas falidas.

Ou talvez eu esteja enlouquecendo.