sábado, 22 de dezembro de 2012

Preservação



O homem passou pelo grupo de quatro cabeludos, então parou e voltou, como num filme rebobinado.

- Por Deus! Metaleiros!

O senhorzinho, um tipo estranho de óculos e cavanhaque pontudo, olhou fascinado para o quarteto, que o olhou de volta, confuso.

- Como é que é?

- Metaleiros genuínos! Pensei que vocês estavam extintos! Bom Deus, não vejo um metaleiro desde... Nossa, acho que desde 2005! Fascinante!

- Ei, larga a minha roupa!

- Perdão. Só queria inspecionar o tecido. Camiseta preta do Guns n' Roses, falsificada. O cabelo, as correntes, o colar de pentagrama... Sim, é tudo como nos livros...

- Olha, não sei qual a sua intenção com isso, mas não acho...

- Só um momentinho, estou ligando para a minha esposa. Alô, Lourdes? Lourdes, você tem que ver isso!

Os metaleiros, desconfortados, trocaram olhares. Por um lado pensavam que deviam se sentir ofendidos, de algum modo, mas a excitação do homem parecia tão verdadeira que nenhum deles tinha coragem de repreendê-lo.

- Desculpem por isso – disse o homem, ao desligar o celular - Eu e minha mulher somos antropólogos, e isso é realmente uma descoberta especial... Quem diria, metaleiros! Em plenos anos dois-mil-e-dez! Pensei que todos tinham desaparecido após o Grande Inverno de 2006... Sim, um período terrível para a música em geral. Como se safaram dessa?

- Sei lá, cara, nós não escutamos rádio, então ficamos meio alheios do que a galera anda ouvindo. Eu ligo o meu som de casa, boto o Iron pra tocar e fica tudo certo.

- Hmm... Se entocaram para preservar a energia vital... Muito esperto, muito esperto.

- E, bom, sempre tem a Internet. A gente se encontra por afinidades, marca de dar umas bandas juntos, ouvir uns sons...

- E ainda por cima deram um jeito de manter a coletividade! Oh, os artigos que eu poderia escrever sobre isso! Mas quantos de vocês sobraram? Como se reproduzem? Noto que só há machos no grupo.

- Ei! O que está sugerindo?

- Não sobrou nenhuma fêmea? Ai, meu Pai! Estou com representantes de uma civilização extinta, bem na minha frente!

- Isso é uma piada sobre a gente não comer ninguém? Já tive que aturar bastante disso no colégio.

- Do que se alimentam? Noto que estão magros. Pobres almas, devem vagar errantes por esta terra estranha atrás de pedaços de carniça...

- Na verdade o Beto mora bem ali...

- Façamos o seguinte: hoje vocês jantarão na minha casa. Vou ligar para a Lourdes e pedir para ela preparar a mesa. Pai Celestial! Ela vai ficar maluquinha!

Na verdade estavam todos meio quebrados e um jantarzinho de graça não seria má ideia. Além do mais, o homem parecia muito empolgado e seria uma crueldade com ele recusar o convite.

- Tá bom, mas é só um jantar rápido.

- Não se preocupem, vou pedir para a Lourdes deixar a carne quase crua. Afinal, não queremos dar nada que o organismo de vocês não esteja acostumado... - e deu uma piscadela.

***

- Querida, trouxe visitas!

Já era noite quando chegaram na mansão do homem. Era uma casa enorme, afastada, no meio do nada. O hall de entrada desembocava numa grande sala com decoração medieval. No centro, uma mesa de madeira com seis pratos. Uma mulher entrou na sala carregando uma terrina. O senhorzinho a apresentou:

- Metaleiros, esta é a minha mulher, Lourdes.

Lourdes largou a terrina na mesa e parou em frente ao grupo, examinando-o com olhos desconfiados.

- Hmm, o cabelo, as correntes, o colar de pentagrama... Tem certeza de que eles são legítimos?

- Absoluta, meu amor. Chequei todos os detalhes.

- A camiseta do Guns n' Roses?

- Legitimamente falsificada - disse, abrindo um grande sorriso.

A mulher continuou a inspecioná-los com os olhos durante mais algum tempo. O grupo já estava cheio disso. Tá bom, iam ganhar um banquete de graça, mas a situação estava ficando chata. A mulher os estava examinando como animais, o que era, no mínimo, uma insensibilidade, ainda mais com as visitas.

Lourdes se deu por satisfeita:

- Está certo. Desculpem os meus modos e os de meu marido. Sejam bem-vindos. Por favor, sentem-se à mesa, fiz um belo assado de porco para vocês.

Ufa, pelo menos agora ela falou conosco, pensaram. E o assado tinha um cheiro delicioso. O grupo prontamente obedeceu o pedido da anfitriã e sentou-se à grande mesa. Enquanto se 
serviam da carne de porco, Lourdes trouxe mais comida.

- Muito bom mesmo, dona Lourdes! - disse um dos metaleiros - O assado está ótimo. E as batatas, então, nem se fala.

A comida estava tão boa que o grupo não ousou questionar por que o casal não se sentara à mesa com eles. Dúvida esta que foi sanada quando, de súbito, grades subiram do chão e os cercaram, formando uma jaula. Os prisioneiros gritaram, mas o casal sabia que era só não dar atenção e logo eles desistiriam. Foi o que aconteceu com todos os outros.

Às vezes o marido se sentia mal por aprisionar pessoas em sua casa, mas sabia que estava fazendo um bem para a espécie. Eles provavelmente não sobreviveriam muito tempo no mundo lá fora, onde a seleção natural destruiria as minorias já enfraquecidas. E além do mais, era um belo presente para se redimir com a mulher.

- Que bacana, né, Lourdes? Você sempre quis metaleiros...

- Cala a boca Mauro, que eu não me esqueci do João.

João era o dark que morreu quando Mauro esqueceu de alimentá-lo por duas semanas. Mauro ficou calado. Ela tinha razão, mas aquilo já fazia dois anos, pombas. O tempo passa. A gente aprende.

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