sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Natureza animal

- Ai!

- Opa.

- Você me mordeu?!

- Desculpa.

- Você me mordeu, seu tarado!

- Eu? Não.

- Mordeu sim! Tarado! Tarado!

As pessoas em volta notam o início de tumulto. Um homem alto, parrudo, pergunta:

- Está tudo bem, moça?

- Esse tarado me mordeu! No meio do ônibus!

- Olha, não vamos fazer alarde... - tentou o autor da mordida.

- Fica quieto! Qual é a sua, cara? Cê tem problemas?

- Você mordeu a moça?

O sujeito reluta, mas dá de ombros e admite.

- Sabe como é, ônibus lotado, aquele ombro nu...

- Eca!

- Tá maluco, rapaz? Morder a moça?

- Foi sem querer...

Princípio de comoção no ônibus. Uma velhinha escuta a palavra "tarado", pensa que é o homem alto e bate nele com o jornal. O autor da mordida aproveita o momento de distração para negociar com a moça:

- Olha só, desculpe, quem sabe se eu compensar isso com dinheiro...

- Quer me comprar?! É assim que você trata as mulheres? Dá mordidas e paga depois?

O homem está suando. A opinião pública não lhe é favorável e, pra piorar, o ar-condicionado do veículo não dá conta do calor. Ele tenta se explicar:

- É... É a natureza animal. Foi instinto, sabe? Estava olhando para o seu ombro e, quando vi, já tinha mordido. Eu normalmente não faço isso, juro. Sou um homem direito. Pago contas. Imposto de renda, acho que nunca soneguei.

- Ah, tá. Daqui a pouco vai dizer que sentiu o meu cheiro e não conseguiu se controlar.

- Mais ou menos. É o clima. Fez frio o mês inteiro, e agora esse veranico. Um mês inteiro sofrendo, encasacado, e daí hoje faz esse calor e eu fico prensado no ônibus bem na frente de um ombro nu, bronzeado... Nem tinha notado o quanto sentia falta de ver ombros bronzeados. Aqueles ombros redondinhos, lisinhos, com uma leve penugem loira...

Vozes em todos os cantos chamam-no de "tarado". O homem corpulento aproxima-se ameaçadoramente. Outros homens põem-se entre o tarado e a moça. Um deles diz:

- Você é uma vergonha.

O homem da mordida ouve aquela palavra. "Vergonha". Aquilo mexe com seus brios. Não, não era uma vergonha. Tinha seguido uma vida correta até ali. Correta demais, até. Um incidente no ônibus não iria derrubar sua reputação, ah não. Deixou de manter uma postura defensiva. Encheu o peito.

- Vergonha, é? Vergonha nada. Se estivessem na minha situação, a menos de um palmo do ombro da moça, em que um movimento de cabeça é tudo o que lhes separa de cravar os dentes num ombro com o encaixe perfeito de uma arcada dentária... Isso não é vergonha. Não devemos ter vergonha dos nossos instintos. Não devemos perder o contato com o barro da vida. Olhem para nós! O que nos diferencia dos animais são essas fantasias que usamos para esconder nossa nudez. Por baixo desses ternos e gravatas encontra-se um símio desesperado para copular.

As palavras surtem efeito. Os gritos de tarado pararam. Todos ouvem o monólogo.

- Você! - disse o homem da mordida ao homem parrudo - Você é como eu. Um macaco domesticado. Mas às vezes... Às vezes nos encontramos numa situação limiar. Uma situação que desperta nossos instintos. Todos nós. Pode ser uma mãe que vê o filho em perigo, ou um homem há muito tempo sem contato feminino diante de um ombro nu. Nesse momento, o macaco dentro de nós toma o controle. Nesse momento, não somos mais responsáveis por nossas ações. Vai dizer que isso nunca aconteceu com você, com todos vocês! Hein? Hein?

O autor da mordida aponta o dedo para o peito do homem parrudo. Silêncio no ônibus. Então:

- Você me chamou de macaco?

- Hein?!

- Chamou sim! Chamou de macaco! - grita a velhinha.

- Não foi isso que eu quis dizer...

Mas aí o homem já tinha puxado uma arma.

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