quinta-feira, 2 de junho de 2011

A mulher do Souza

     Ninguém sabia por que o Souza não trazia a mulher para as festas da firma. Talvez, sugeriam alguns, porque fosse gostosa, e o Souza sentisse ciúmes. O que só dava mais vontade de ver a esposa do Souza. Ou podia ser feia demais, ou tímida demais, ou, sei lá, ter cinco braços. Virou um tema de conversa. De vez em quando alguém levantava a pergunta:

     - E a mulher do Souza?

Era uma indagação genérica, não precisava ser formulada além disso. E a mulher do Souza? Ninguém sabia da mulher do Souza. Se a pergunta fosse para o Souza, ele desconversava.

     - Ah, pois é...

Dizia que ela não saía para eventos, que era complicado, que ela não gostava dessas coisas, que estava com caxumba. Ih, aí tem coisa, disse o Jorge. Ou a mulher não gosta dessas coisas, ou está com caxumba. Porque, quando alguém dá duas desculpas diferentes para a mesma coisa, é porque nenhuma delas é verdade, não é verdade? É verdade. Aí tem coisa.

     Tiveram uma ideia. Pediram para o seu Breno, o empregado mais velhinho da firma, que continuava trabalhando no setor de finanças apesar dos quase 90 anos e que estava de aniversário na próxima semana, requisitar especialmente para o Souza a presença de sua mulher no aniversário.

     - Sabe como é, seu Souza, talvez seja o meu último aniversário aqui na firma, então quero que todos compareçam com suas famílias.

     - Sim, sim...

     - Sabe, é importante para mim conhecer a família de todos vocês, com quem convivo há tantos anos, até porque pode não ter outra oportunidade...

     - Ok, ok, tudo bem.

     O Souza chegou atrasado na festa: inclusive, com a demora pensaram que ele não viria. Mas ele veio sim, estrategicamente na hora que o Jorge estava fazendo um discurso bonito sobre o Seu Breno e as suas décadas de coleguismo na empresa. O Souza entrou de fininho, pra não chamar atenção. Com a mulher. Olhares de todos os cantos se fixaram no casal. Quando viu os dois, o Jorge até abreviou o discurso para receber o Souza.

     - Grande Souza! Tudo certo? Essa deve ser a...

     - Sim, sim, é ela.

     E o Souza mal apresentou a mulher: disse duas palavras e deixou por isso. Como quem faz de má vontade. A esposa do Souza não era uma deusa, como se imaginava. Era bem mais ou menos. Alguns comentariam mais tarde que ela era feia, o que era um exagero, sem dúvidas. Só não era o espetáculo que todos imaginavam. Bom, ao menos a hipótese do Souza esconder a mulher para preservar sua beleza sobrenatural caiu por terra. A hipótese dos cinco braços também não se confirmou.

     Mas, então, qual seria o motivo da relutância em trazer a mulher a público? O Plínio, o Cruz e o Jorge resolveram pressionar. Enquanto a mulher do Souza estava conversando com outras mulheres de outros colegas, os três foram puxar papo com ele:

     - E a tua mulher, hein, Souza?

     - Pois é.

     - Pois é o quê?

     - Sei lá. Vocês que perguntaram.

     - Finalmente ela veio. Ó, se deu bem com o pessoal, tá conversando de boa. Socializou legal, não ficou tímida num canto, nem saiu descontrolada atirando brigadeiros nos convidados ou gritando em alemão. É uma boa mulher. Então por quê?

     - Por quê o quê?

     - Pra que isso? Essa relutância em trazê-la às festas?

     - Impressão de vocês...

     - Não força, Souza.

     - Sei lá...
 
    - Souza, não tente nos enrolar. É desrespeitoso. Abre o jogo.

     Tanto insistiram, que o Souza ficou acuado. Não tinha mais como esconder.

     - Tá bom, tá bom, eu falo! É que... é ridículo, mas é verdade.

     - O quê?

     - Vocês vão ver.

     Sabe aquela brincadeira conjugal de interpretar papéis? Para atiçar o relacionamento? Sim, todos sabiam. Pra ficar mais fácil pro Souza se soltar, o Plínio disse que brincava com a mulher de homem-das-cavernas, mas quando ele se empolgava e a puxava pelos cabelos, a mulher lhe dava um tapa e virava de lado na cama. O Souza o interrompeu. Queria falar, o assunto era sério. Agora sentia que a hora da verdade devia ser essa mesmo, precisava dividir seu drama com alguém. Pois bem. Depois do casamento o Souza e a mulher ficaram com medo de que o matrimônio esfriasse as coisas, então resolveram atiçar a relação experimentando um jogo de papéis. Ela seria a moça do interior, ingênua, uma atriz que veio para a cidade grande em busca da fama. Ele, um magnata da televisão que apadrinharia ela, mediante favores especiais. Uma brincadeira bem picante. O Plínio vibrou:

     - É isso aí, garotão!

     - Não, espera, deixa eu terminar.

     Fizeram a interpretação direitinho. Foram para um restaurante, fingiram que não se conheciam, ele chegou nela, ela contou a sua história de mocinha do interior em busca de sucesso, ele fez a proposta indecente e a levou para a sua casa. No caso, a casa dos dois, mas enfim. Chegaram lá, amaram-se, e então...

     - Então o quê?

     Então, depois do ato, cansados e com o sentimento de dever feito, ele olhou pra ela e ela olhou pra ele, e ele pensou: e agora? Sigo com a fantasia, ou ela para logo depois do sexo? Continuo fingindo que sou Jânus, o magnata da rede Ultrasat, e que ela é Dóroti, a menina inocente de Três Coroas que acaba de ser seduzida pelo seu poder sobre a mídia?

     - Estávamos nesses papeis desde o início da noite. Quando é que se sabe que acaba? Não tem nenhum diretor pra dizer corta, entende? Quando é que eu sei que corta?

     Estavam nesses papeis há cinco anos. Para ela, ele era Jânus. Para ele, ela era a inocente Dóroti. Quando Souza estavam longe dela ele podia ser o mesmo Souza de sempre, mas na presença um do outro eles se tratavam assim. O Souza evitava levar a mulher para sair junto com os amigos, e até mesmo com a família, para não causar constrangimentos.

     - Tá, e você nunca pensou em parar? - questionou o Plínio.

     - Pois é, mas parar do nada, depois de cinco anos?

     Os outros concordaram. Depois de continuar tanto tempo com a brincadeira, encerrar do nada seria admitir que os dois gastaram meia década fazendo uma coisa totalmente idiota. E outra: talvez nem houvesse mais casamento depois da encenação. Talvez o casamento só funcionasse por causa da encenação. Acabada a brincadeira, seriam dois idiotas completamente desconhecidos um do outro.

     - E eu nem sei mais o que ela faz da vida. Quando ela sai para trabalhar, ela diz que está indo para a gravação da novela. Mas no que ela trabalha realmente? Eu perdi toda a comunicação com a minha esposa de verdade. Eu nem sei como ela é, o que ela pensa, o que ela faz.

     - E você? Diz o quê pra ela?

     - Que eu trabalho com televisão. Disse que hoje era uma festa da produção do meu mais novo filme, um thriller policial que se passa dentro de uma empresa. A festa é num dos sets de filmagem. Viu? É ridículo!

     - É. Quer dizer, não é, é só estranho, mas...

     Mas nessa hora chega a mulher do Souza e se aproxima dele. Ele abre um sorriso galanteador, passa um braço em volta do ombro dela e diz, num tom de voz forçado:

     - E aí, beibe? Se divertindo?

     Ela fica imediatamente vermelha, e olha para baixo. Os colegas do Souza também ficam constrangidos. Souza não fala nada, mas faz uma cara para os outros de quem diz: "viram no que eu me meti?".

***

     Enterro do seu Breno. Dia chuvoso. Todo mundo assistindo o caixão ser baixado na terra, com capas de chuva, bem quietos. O Plínio, o Cruz e o Jorge lado a lado. Então o Souza aparece do lado do Cruz, meio encolhido.

     - E aí pessoal? Tudo bem?

     - Souza! Tá encolhido assim por quê? Tá com frio?

     - Não. Estou me escondendo da Dóroti. Quer dizer, da minha mulher. Não quero que ela me chame de Jânus na frente dos meus colegas. É embaraçoso demais.

     - Então por que você trouxe ela de novo?

     - Sei lá. Era tão importante para o velho esse negócio de família... me senti na obrigação.

     O padre estava fazendo uma oração. Ficaram uns momentos quietos.

     - Ainda está ruim com ela? - perguntou o Plínio.

     - Ô. O problema nem é não saber mais quem é a pessoa com quem você dorme. Isso eu já me acostumei. O problema são as coisas mais práticas, como o dinheiro. Nos primeiros dias, eu ainda me divertia interpretando o magnata da indústria televisiva. É bom pro ego, sei lá. Aí eu agia como se fosse um milionário, mesmo: comprava joias, dava presentes caríssimos pra ela. Só que o negócio fugiu do controle. Ela tem uma impressão errada da minha renda: às vezes estamos no shopping e ela me pede para comprar roupas caríssimas, assim, por impulso. Eu nunca disse não. Quase todo o meu dinheiro vai para pagar esta farsa. Daqui a pouco vou ter que vender a casa. O que vou dizer pra ela?

     - A sua mansão? Pombas, nós sempre discutíamos como você fazia pra pagar um casarão daqueles. Eu achava que você estava metido no narcotráfico, mas nunca comentei nada. - disse o Plínio. - Isso é insano. Tem que por um ponto final nisso.

     Começaram a discutir soluções. O Cruz veio com uma ideia boa, que, após alguns pitacos dos outros, se tornou um plano tático. Seria assim: Jânus chegaria para a mulher e diria que está com problemas. A tevê da qual ele é dono está para falir.

     - A Ultrasat? O conglomerado de comunicações mais poderoso do Pacífico Sul? Como?

     - Sei lá. Inventa uma desculpa. Põe a culpa na internet.

     Com o negócio falido, haveria uma contenção de gastos. De imediato, seriam cortados os supérfluos, como presentes e roupas. Aos poucos, a farsa iria se aproximar do mundo real.

     - Genial, pessoal! É isso o que eu vou fazer! - exclamou, feliz, o Souza.

     - E tem mais - disse o Jorge - a gente podia fazer o seguinte...

***

     Mansão do Souza. Batem na porta. A mulher do Souza atende. É o Cruz.

     - Bom dia. O seu marido está?

     - Ele está no banho. Por favor entre. Qual é o seu nome?

     - Sou Alberto Goldfrapp, do conglomerado midiático Satvision. Tenho negócios a tratar com Jânus.

     A mulher do Souza olha o Cruz com uma cara surpresa. O Cruz senta-se no sofá da sala, com um porte elegante que ele normalmente não possui. Está usando um casaco de pele, um chapéu panamá e carrega um charuto na boca. O Cruz não fuma charuto, mas todos concordaram que o charuto era essencial para o papel.

     - Ãhn... sobre o que seria, senhor... Goldtrapp?

     - Goldfrapp. Trouxe uns documentos para o senhor Jânus assinar. É sobre a venda da rede Ultrasat.

     A mulher senta-se no sofá, confusa. O Souza entra na sala, secando os cabelos - tinha tomado banho há pouco - e se depara com os dois. A mulher vira-se para ele.

     - Querido, este homem quer comprar do Jânus, quer dizer, de você... algo sobre uma venda...

     - Oh, querida - Souza finge estar abalado - não queria que você soubesse desse jeito. Sim, é terrível. A rede Ultrasat está falida.

     - O quê?

     - Falida. Completamente quebrada. É a internet. Sabe, esses jovens de hoje não assistem mais televisão. Como resultado, estou vendendo a rede para ser incorporada pela Satvision...

     - A preço de banana, diga-se de passagem - diz o Cruz.

     - Mas como isso é possível? - A mulher está completamente perdida.

     - É a lógica de mercado, beibe: os maiores comem os menores. Devia ter vendido a rede quando ela ainda valia alguma coisa. Agora, para pagar as despesas do meu último thriller policial me vi obrigado a vender a empresa. Ah, no negócio ainda perdemos a nossa casa.

     A mulher do Souza solta um "Oh!".

     - Mas não se preocupe, beibe. Já consegui um novo emprego numa empresa, como contador. O salário não é bom, então teremos que fazer cortes de gastos. Mas acho que essa mudança é uma oportunidade de dar uma renovada nas nossas vidas, que tal?

***

      Os colegas do Souza estavam muito orgulhosos do plano, que fora um sucesso. O Souza parecia bem mais disposto nos últimos dias. Disse que estava prestes a quitar todas as suas dívidas, e se sentia melhor de não ter que mentir sobre o seu emprego.

     Passaram algumas semanas, e certo dia notaram que nem o Souza, nem o Cruz foram trabalhar. Estranharam. O Souza chegou várias horas depois, atrasado. O que houve?, perguntaram o Jorge e o Plínio. Vocês não vão acreditar, disse o Souza.

     - Acordo hoje de manhã com barulho de movimento no meu quarto. É a minha mulher, fazendo as malas. Pergunto o que houve, e ela diz que vai embora. Que precisa correr atrás do sonho de ser atriz. "Que sonho?", eu perguntei. O sonho, oras! O sonho que agora eu, Jânus não era mais capaz de realizar. Aí eu enchi o saco. Disse chega, vamos parar com essa farsa, já não tem mais graça. Ela fez que não entendeu. "Que farsa?", ela perguntou, mas eu notei o desdém na voz. Ela disse que estava indo morar com Alberto Goldfrapp no Rio.

     - O Cruz! - exclamaram os dois colegas.

     - Exato. Ele é o novo tubarão da mídia e está muito mais apto a fazê-la feliz. E, antes de ir, ainda teve a coragem de me dizer que o nosso contrato acabou. A vagabunda!

     - Não esquenta, cara - disse o Jorge - ela não vale nada. O Cruz também. Eu sabia que ele não prestava. E mais, agora tenho certeza que era ele quem roubava os atilhos da minha mesa, o desgraçado.

     O Plínio disse que não era para o Souza se preocupar. Sairiam os três, naquela noite, para catar mulher. O Souza iria ver, disse o Plínio, que o mundo tá cheio de mulher louca para ficar com ele. Iriam apresentá-lo como um Don Juan. Don Juan não!, protestou o Souza. Chega de fingir. Seria o Souza, corno, falido e contador de uma empresa de médio porte.

     Tudo bem. Tudo iria ficar bem. Depois de um tempo o Souza começou a rir. E o riso se transformou numa gargalhada.

     - Quando a gente estava interpretando papéis, eu às vezes brincava que nós iríamos mudar para o Rio, e a minha mulher dizia que a única condição para isso é que comprássemos um apartamento de um andar inteiro no Leblon. O Cruz não sabe no que se meteu.

     E o Souza continuou gargalhando como um maníaco. Os amigos olharam um para o outro. É, talvez fosse preciso acabar com as farsas. Mas talvez o Souza precisasse forçar uma personalidade menos esquisitona se quisesse arranjar outra mulher. Só um pouquinho, pelo menos.