domingo, 5 de julho de 2009

O ladrão de diários

Começou por acaso. A mãe do menino estava recolhendo livros na vizinhança para doar a bibliotecas de escolas. No meio dos livros doados, havia muita porcaria: revistas velhas, álbuns de figurinhas, livros com páginas faltando. A mãe encarregou o filho de separar o joio do trigo. O garoto fazia a tarefa indiferente. Machado de Assis, separa. Revista Veja dos anos 90, lixo. Uma edição de um Júlio Verne sem capa, com as folhas caindo e sem as últimas páginas, lixo. Revista de sacanagem, separa (para o garoto, claro). No meio de uma das pilhas de livros, o menino acha um caderno rosa. Possivelmente lixo. Abre a primeira página. "Querido diário," estava escrito, "sei que eu já passei da idade de escrever diários, mas anda acontecendo muita coisa na minha vida. Eu sinto que preciso desabafar, nem que seja escrevendo." O menino continua lendo. "Hoje o Planta passou aqui em casa. Ele é lindo. Estou apaixonada por ele. Eu queria que ele me visse como mais que uma amiga. Fico meio tímida de dizer qualquer coisa. Ficamos só conversando, nem lembro sobre o quê. Só prestava atenção no rostinho lindo dele. Amanhã vou começar a dar algumas indiretas. De sua confidente, Clarissa." Antes de continuar seu trabalho, o menino colocou o caderno na terceira pilha, junto com a revista de sacanagem.
Mais tarde, antes de dormir, ele pega o caderno e dá uma lida. A mulher que escrevia no diário, Clarissa, tinha, pelo que dá pra entender, uns 17 anos. Todos os dias ela escrevia alguma coisa sobre o tal do Planta, que, o menino descobre na página do dia 23 de agosto, ela conheceu por meio de um outro amigo, e se apaixonou imediatamente. A única que sabia disso era a sua amiga, Sofia, que era descrita como uma pessoa de confiança, apesar de às vezes "falar demais", e seu cachorro, o Tchuca, com quem ela desabafa quando não tem ninguém pra ouví-la. A tal Clarissa parecia ter uma certa falta de auto-estima, e uma necessidade crônica de ser amada. Sem dúvida, daria uma personagem muito interessante em um romance.

A mãe do menino, uma entusiasta da leitura, compra um livro por mês para o filho. Ele normalmente os lê com interesse, mas desde que achou o diário eles têm perdido a graça. O diário é muito mais interessante. O diário contém personagens tridimensionais, complexos. A narrativa é totalmente imprevisível: às vezes é repetitiva, às vezes acontece algo totalmente fora do esperado, que pega o leitor de surpresa. Os personagens coadjuvantes são tão bem trabalhados quanto a personagem principal, e o universo que os cerca é rico e totalmente crível. Há alguns erros de português, prova de uma revisão de texto pobre, mas nada que atrapalhe a leitura. Perto do diário, os outros livros parecem ensaios amadores de gente sem criatividade. O menino chega no clímax da história: em 2 de outubro, a turma de Clarissa vai passar uma tarde na casa do Planta. Planta pede para que Clarissa pegue alguma coisa no quarto dele, ela não se lembrava mais o quê quando escreveu. Ao entrar lá, Clarissa acha uma camisinha usada na cama do Planta! Logo agora, que parecia que eles iam ficar juntos. Ela volta à sala, quase chorando, e diz que precisa ir embora. Os outros dias são bastante depressivos. Parece que o acontecido foi um golpe e tanto para a personagem, que provavelmente entra em depressão. Que história!
Uma hora as páginas do diário acabam. Mas como assim? A história não acabou! O menino tenta se conformar voltando a ler livros normais, mas não consegue. Ler diários é viciante, é o ápice da literatura, é o romance de não-ficção, é a vida imitando a vida. Ele precisa de mais. Começa a vasculhar as bolsas de suas colegas, quando elas estão no recreio. Não acha nada. Consegue cópias de chaves das salas de aula de outras turmas e as invade quando os alunos saem para o intervalo. Acaba encontrando dois diários. Vai para o xerox da escola e tira cópias das páginas. Depois, devolve os diários para os seus respectivos lugares. Assim, o crime não tem como ser descoberto, e isso permite que as autoras continuem escrevendo sobre suas vidas. Repete a ação uma vez por semana. Não consegue se segurar e sempre lê tudo no mesmo dia em que tira as cópias. Assim, fica esperando até as autoras escreverem material suficiente para ele roubar.
O menino não gosta de esperar, então procura por mais diários, em outros lugares: cursos de inglês, academias, qualquer estabelecimento onde as pessoas precisem deixar seus bens em algum lugar momentaneamente. Bola um sistema de rodízio: segundas-feiras pega os diários do lugar A, terças-feiras do lugar B, e assim por diante. Assim, tem leitura para todos os dias da semana. Nem sempre há um xerox por perto, o que obriga o menino a ler o diário no local, podendo ser pego em flagrante a qualquer momento pelo dono. Mas para o menino não há problema: a adrenalina deixa a leitura mais emocionante.

Certo dia, acha um diário novo no armário da academia que frequenta. Empolgado como sempre se sente ao fazer uma nova descoberta, abre rapidamente a primeira página. Reconhece a letra de algum lugar. Mais à frente descobre ser de Clarissa. Ela comprou um novo diário. O menino lê, o coração disparando. Ela parece estar furiosa. Descobriu que a Sofia e o Planta estão ficando. Logo a Sofia, que era sua melhor amiga. Logo a Sofia, que era a única que sabia o quanto ela amava o Planta. "Semana que vem os pais da Sofia irão viajar," estava escrito na página mais recente. "Eu tenho certeza que, com a casa vazia, a vadia vai chamar o Planta. Eu já comprei a arma. Duas balas, é tudo o que eu preciso pra acabar com a vida daqueles desgraçados." O menino fechou o diário, e ficou olhando para o nada por alguns segundo. Mais tarde no dia, chamou o seu amigo, o Boca, pra conversar. Contou toda a história pra ele: os diários roubados, a Clarissa, o plano de assassinato. Boca estava pasmo. Deviam avisar a polícia o mais rápido possível.
- Avisar a polícia?! É claro que não! - exclamou o menino.
- Como assim? - surpreendeu-se o Boca. - a gente sabe o dia exato do crime, a gente sabe que a assassina faz academia no mesmo lugar que você, se a gente perguntar por uma Clarissa lá a gente vai saber exatamente quem é... temos tudo pra pegar ela antes que ela mate os dois!
- Boca, claro que não! Quer dizer, temos tudo pra pegar ela sim, mas não vamos.
- Mas por que não?
- Você está louco? Você quer mexer na história mais perfeita da literatura deste século? No livro mais perfeito que eu já li na minha vida? E logo agora, que chegou na melhor parte?
- Mas, cara... é um diário!
- Nananão. É literatura. E das boas.
- Mas não pode ficar assim!
- Senta, Boca. Você não vai a lugar nenhum.
- Mas, mas...
- Senta, Boca. E deixa eu aproveitar e te recomendar umas coisas que eu andei lendo... Você já leu Juliana dos Santos? É ótima, extremamente realista, você tem que ver as descrições do sexo, muito boas... e Regina Becker? Naturalista ao extremo. Muito bom. E tem essa aqui, assina como Julinha... é boa também, meio bobinha e tal, mas também tem a Sônia Duarte que...

Um comentário:

  1. Hehehe!
    Essa história tem nuances familiares para este leitor que vos escreve...

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