quarta-feira, 7 de abril de 2010

Anedotas

     Ninguém sabe como surgem nem para onde vão. Como os buracos negros, só que com graça. Mas é certo que a origem das anedotas é um mistério. Você certamente não conhece ninguém que criou uma. Você a ouviu de um amigo, que a ouviu de outro amigo, que a ouviu de quem mesmo? Não sabe. Leu em algum lugar. Piadas são de domínio popular. Nunca saberemos quem foi o gênio por trás da anedota do cachorro Nabunda. Possivelmente já morreu, e no anonimato. Enquanto isso, continuam reproduzindo a sua anedota em livrinhos de piada, que seriam bem menos rentáveis se tivessem que pagar direitos autorais pelas piadinhas.

     E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:

     - Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
     - Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
     - Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
     - Tá! Então o Joãozinho...
     - Sim...
     - ....E um rabino gago...
     - Sim...
     - ...Em um avião. Já tem?
     O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
     - Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
     - Argh!

     Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.

     E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.

     E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.

     - Você ouviu a do pontinho que...
     - Não! Chega!!!

     Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.

     E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.

***

     Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:

     Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:

     - Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.

     - Em que você trabalha? - pergunta o outro?

     - Num asilo. Médico gerontologista.

     - Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.

     - Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.

     - Enfermeiro. Da área terminal.

     O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:

     - Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.

     Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.

     - Jornalista. Política nacional.

     O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.

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