quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cantigas I

Era uma casa muito engraçada. Não tinha teto, não tinha nada. Engraçado, pensou o João. Casa sem teto, onde já se viu? Até deu uma olhada no endereço: Rua dos Bobos, nº 0. Era ali mesmo. Aquela era a casa que comprara. Mas não podia ser. Resolveu telefonar para o Osmar. O Osmar era o corretor de imóveis que havia lhe indicado a compra. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Atendeu. Alô, Seu Osmar? João, como vai? Olá João! Curtindo a nova casa? Muito engraçada essa casa, seu Osmar. Passei para dar uma olhada e vi que a casa não tinha teto, não tinha nada. É claro que não tem nada, respondeu o seu Osmar, como se estivesse falando com uma criança. A compra foi de um imóvel não-mobiliado. Não é isso, seu Osmar. A casa não tem teto. Onde já se viu casa sem teto?
Opa. Seu Osmar estranhou. Você já entrou na casa? Não, nem eu nem ninguém pode entrar nela não, porque na casa não tinha chão. É só um buraco. Um grande buraco, seu Osmar. Minto, tem uma rede jogada no meu terreno. Estão usando a minha casa como depósito de lixo! Seu Osmar pensou rápido. Ora, João, veja pelo lado positivo. Uma casa sem chão, um ar rústico, não era o que você queria? E sem teto, dá para dormir sob o céu estrelado, na terra batida, ainda, caso você não queira mobiliá-la. João respondeu que dormir no chão de terra batida não era a sua ideia de rústico. Preferia até dormir na rede jogada no chão, mas nem isso ele podia, dormir na rede, sabe por quê, seu Osmar? Porque na casa não tinha parede. Não tinha parede para pendurar sua rede, suas pinturas nem sua coleção de botões que havia mandado emoldurar especialmente para a casa nova. Uma casa com paredes era o mínimo que ele exigia. Calma, seu João. Calma nada, seu Osmar! A situação está ficando insustentável, seu Osmar. Ele, João, não podia fazer pipi, porque penico não tinha ali. Penico, seu Osmar! Estava disposto a abdicar dos três banheiros que haviam lhe prometido na planta baixa por um reles penico, mas nem isso havia ali. Veio à nova casa pronto para inaugurar o banheiro e agora não estava mais conseguindo se segurar.

Primeiro, seu João, não desdenhe da casa, afinal, ela foi feita com muito esmero. Segundo, em nenhum lugar estava escrito que a casa tinha três banheiros. E depois, muitas pessoas matariam para ter uma casa como esta. Pense nas vantagens. A casa não tem paredes, mas por isso mesmo é superventilada e possui iluminação natural. E tem mais: a ausência de paredes proporciona um contato sem igual com os vizinhos. Maravilha, respondeu João, só que eu não quero ter esse contato com os meus vizinhos quando eu estiver no banheiro, que aliás inexiste, como a minha bexiga faz questão de lembrar.

Seu Osmar disse que não podia fazer nada. João já havia comprado a casa e assinado os termos sem olhar. João ficou fulo. Pegou um pedaço de pau e atirou no gato-to. Atirou para matar. Mas o gato-to não morreu. “Gato-to!”, admirou-se Dona Chica-ca, com o berro do gato. O que foi isso, perguntou seu Osmar, do outro lado da linha. É o berro do Gato-to, o gato da Chica-ca, minha vizinha. Como assim, Gato-to, Chica-ca? É que ela é de uma família de gagos, explicou João. Os pais a registraram como “Chica-ca” porque não conseguiam pronunciar o nome corretamente, e ela não consegue chamar o gato dela de outro jeito, então ficou “Gato-to” mesmo. Isso não faz nenhum sentido, disse o seu Osmar. Pois é, veja só a vizinhança que o senhor me arranjou, respondeu João.

Dona Chica-ca foi tirar satisfações com João. Seu João-ão, começou Chica-cá, mas João a interrompeu, disse que estava no meio de uma ligação importante e que sabia que o que fez foi errado, mas discutiriam isso depois. Estava cuidando da compra de sua casa. Aliás, muito engraçada-da, a sua casa-sa, disse Dona Chica-ca. Não tinha teto-to, não tinha nada-da. Gostei-tei. Meio rústico-co. Ok, disse João, apenas não fale “rústico” novamente, o cacófato é horrível. Seu Osmar, ouvindo tudo pelo telefone, sugeriu que João negociasse o imóvel com Dona Chica-ca, aí todos sairiam felizes. Faz sentido-do, Dona Chica-ca admirou-se-se. João deu uma olhada na fachada da casa de Dona Chica-ca e gostou do que viu. Os dois fecharam o negócio, um ficou com a casa do outro e no final o pau no Gato-to foi perdoado, até porque ele não morreu-rreu. Que bom-bom, disse João, se atrapalhando. Quando terminou de assinar os termos foi que João se lembrou de perguntar: tem banheiro na sua casa? Não, tem só penico-co. Aff.

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