Japoneses, por incrível que pareça, adoram bossa nova. Pagam fortunas para ver uma apresentação de João Gilberto, que, em um show na terra nipônica, foi aplaudido durante 25 minutos, talvez o aplauso mais longo da história. Prova de amor à nossa música. Talvez o melhor produto de exportação brasileiro, embora o Robin Williams possa achar que são as strippers e o pó. Mas eu divago.
O amor à bossa nova não vem, certamente, de uma identificação com a letra. Que o idioma japonês é muito diferente do português, todo mundo sabe. Nossa construção frasal não segue a mesma lógica e temos alguns milhares de caracteres a menos, só pra ficar nas disparidades mais óbvias. Mas, dentre todas as variantes do português, a do Brasil deve ser a mais estranha aos ouvidos orientais. Percebi o quanto durante uma conversa com uma estudante intercambista, Kana, sobre bossa nova. Estávamos falando de Águas de Março, e ela queria explicações sobre o nome:
- Águas de Março quer dizer água, como... eh... - e fez movimentos ondulatórios com as mãos.
- Como rio? - tentei.
- Rio! Sim sim sim!
- Ah... não. É "água" no sentido de chuva. Chuva. Tipo, que cai do céu, assim. - representei chuva com os dedos, de um modo que é meio difícil de descrever, mas vocês devem saber como é.
- Ah... sim sim.
- É porque março é último mês do verão, e no Rio de Janeiro é um mês chuvoso. Então, a chuva representa o fim do verão, que nem diz a letra. "São as águas de março fechando o verão". Chuva, fecha, verão - mais mímica.
- Ah... sim sim.
Mas eu não tinha certeza se ela tinha entendido.
- É uma música... difícil. - disse ela, referindo-se à letra.
E era mesmo. E parei pra pensar em como explicar o resto da música a ela. Mas não havia como. Porque Tom Jobim escreve que um jeito que não há como traduzir. A brasilidade está tão intríseca à música que não há como fazê-la ser entendida em nenhuma outra língua. Nem os outros países de idioma português devem entender o que é a peroba do campo, ou caingá, candeia. E que raios é um Matita Pereira?
Então, como algo escrito em um português oral mal compreendido até por mim pode tocar pessoas lá do outro lado do mundo? Eu respondo: porque o importante não é o sentido das palavras. É a musicalidade. É a melodia por trás delas, é o colchão sonoro que elas fazem para os nossos ouvidos. A sonoridade das palavras é muito mais importante do que o significado. Sem tirar o mérito de uma boa letra, mas ela é um complemento, é a cobertura do bolo, não o essencial. As palavras precisam ser melodiosas, precisam deliciar-nos, precisam ser saboreadas. Com ou sem sentido.
Já vi muita música ruim que poderia ser boa se o artista tivesse escolhido palavras diferentes. Talvez a letra até fosse bonita, mas não encaixava legal na sonoridade. O pior é quando a música fica com cara de poesia cantada. Isso existe aos montes, e continuará acontecendo, até que os letristas percebam que uma boa letra não é aquela que parece ter sido escrita por Camões, é aquela que é uma delícia de cantar. É o som antes do sentido, é o ritmo das sílabas, é a cadência sonora, é um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. É um belo horizonte. É uma febre terçã.
E é por colocar a melodia antes do sentido que Tom Jobim é amado no Brasil, no Japão, nos EUA, na Europa. Pois uma boa melodia é uma boa melodia em qualquer parte do mundo. Apesar de só ter sentido para nós - ou nem isso -, o projeto da casa, o corpo na cama, o carro enguiçado, a lama, a lama, vão soar bonito tanto aqui como na China. Ou no Japão, no caso.
sábado, 20 de março de 2010
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Muito boa essa Gio! é exatamente o que eu penso.
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