sábado, 20 de março de 2010

As Águas de Março

     Japoneses, por incrível que pareça, adoram bossa nova. Pagam fortunas para ver uma apresentação de João Gilberto, que, em um show na terra nipônica, foi aplaudido durante 25 minutos, talvez o aplauso mais longo da história. Prova de amor à nossa música. Talvez o melhor produto de exportação brasileiro, embora o Robin Williams possa achar que são as strippers e o pó. Mas eu divago.
      O amor à bossa nova não vem, certamente, de uma identificação com a letra. Que o idioma japonês é muito diferente do português, todo mundo sabe. Nossa construção frasal não segue a mesma lógica e temos alguns milhares de caracteres a menos, só pra ficar nas disparidades mais óbvias. Mas, dentre todas as variantes do português, a do Brasil deve ser a mais estranha aos ouvidos orientais. Percebi o quanto durante uma conversa com uma estudante intercambista, Kana, sobre bossa nova. Estávamos falando de Águas de Março, e ela queria explicações sobre o nome:
     - Águas de Março quer dizer água, como... eh... - e fez movimentos ondulatórios com as mãos.
     - Como rio? - tentei.
     - Rio! Sim sim sim!
     - Ah... não. É "água" no sentido de chuva. Chuva. Tipo, que cai do céu, assim. - representei chuva com os dedos, de um modo que é meio difícil de descrever, mas vocês devem saber como é. 
     - Ah... sim sim.
     - É porque março é último mês do verão, e no Rio de Janeiro é um mês chuvoso. Então, a chuva representa o fim do verão, que nem diz a letra. "São as águas de março fechando o verão". Chuva, fecha, verão - mais mímica.
     - Ah... sim sim.
     Mas eu não tinha certeza se ela tinha entendido.
     - É uma música... difícil. - disse ela, referindo-se à letra.
     E era mesmo. E parei pra pensar em como explicar o resto da música a ela. Mas não havia como. Porque Tom Jobim escreve que um jeito que não há como traduzir. A brasilidade está tão intríseca à música que não há como fazê-la ser entendida em nenhuma outra língua. Nem os outros países de idioma português devem entender o que é a peroba do campo, ou caingá, candeia. E que raios é um Matita Pereira?
     Então, como algo escrito em um português oral mal compreendido até por mim pode tocar pessoas lá do outro lado do mundo? Eu respondo: porque o importante não é o sentido das palavras. É a musicalidade. É a melodia por trás delas, é o colchão sonoro que elas fazem para os nossos ouvidos. A sonoridade das palavras é muito mais importante do que o significado. Sem tirar o mérito de uma boa letra, mas ela é um complemento, é a cobertura do bolo, não o essencial. As palavras precisam ser melodiosas, precisam deliciar-nos, precisam ser saboreadas. Com ou sem sentido.
     Já vi muita música ruim que poderia ser boa se o artista tivesse escolhido palavras diferentes. Talvez a letra até fosse bonita, mas não encaixava legal na sonoridade. O pior é quando a música fica com cara de poesia cantada. Isso existe aos montes, e continuará acontecendo, até que os letristas percebam que uma boa letra não é aquela que parece ter sido escrita por Camões, é aquela que é uma delícia de cantar. É o som antes do sentido, é o ritmo das sílabas, é a cadência sonora, é um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. É um belo horizonte. É uma febre terçã.
     E é por colocar a melodia antes do sentido que Tom Jobim é amado no Brasil, no Japão, nos EUA, na Europa. Pois uma boa melodia é uma boa melodia em qualquer parte do mundo. Apesar de só ter sentido para nós - ou nem isso -, o projeto da casa, o corpo na cama, o carro enguiçado, a lama, a lama, vão soar bonito tanto aqui como na China. Ou no Japão, no caso.

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