terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sobre meninas e lobos (e vampiros)

Sim, eu admito, eu vi Lua Nova. Sem ter sido arrastado ao cinema por alguma mulher. Tem que ser muito macho para admitir que se viu Lua Nova sem a influência do sexo feminino. E tem que ser duas vezes mais macho para admitir que viu o filme duas vezes. Sim, eu vi o filme duas vezes. Aceitei ir de novo acompanhando uns amigos que ainda não o tinham visto. Amigos homens. Que não deixaram de ser homens por ver o filme. O meu interesse era puramente antropológico, diga-se de passagem. Queria ver qual é a dessa onda de Crepúsculo que está aí pela mídia. Sou um comunicador, afinal de contas. Trabalho puramente profissional, essas coisas.

Digo que é preciso ser macho para admitir isso porque trata-se claramente de um filme voltado para o público feminino. Mais especificamente, para garotas de seus 14 anos de idade. Como sei disso? O vampiro brilha na luz do sol. Ele não morre, não vira cinzas, ele brilha. Importante dizer que ele não é feio, também. Ele tem aquela beleza meio metrossexual com cara de vômito que faz sucesso hoje em dia. E há uma tribo de lobisomens bombados alérgicos a camisetas. Temos então o vampiro mais magrinho e maquiado e o lobisomem forte e musculoso. Tem pra todos os gostos.

Os dois arrastam asa para a mesma mulher, a tal da Bella, fazendo juras de amor eterno e desnudando seus torsos na frente dela. A colega de um amigo meu, e isso é verdade, disse que teve um orgasmo enquanto assistia ao filme. Um orgasmo. Não sei em que cena foi, mas suspeito que envolveu algum torso desnudo. Não ouvi mais histórias de orgasmos no cinema, mas de caras que levaram a namorada e tiveram que ouvir ela gemendo cada vez que os mocinhos apareciam em tela tem várias. Pobres namorados. Não bastasse serem obrigados a ver o filme, ainda têm que passar por isso.

***

Dá pra ver que a história é trabalho de uma mente feminina só olhando para os personagens. Não existem homens assim na vida real. O tal do vampirinho, o Edward, diz que ama a Bella, mas não pode chegar perto dela pois tem medo de não se controlar e sugar seu sangue. Tá, mulheres, desculpem, mas isso não existe. Como ele conseguiria aguentar um relacionamento onde é um sacrifício trocar uns beijinhos que sejam? Nenhum amor resiste a isso. Essa coisa de promessa de amor eterno também é difícil de engolir. Ainda mais amor eterno sem aproximação física.

É claro que esse Edward pode estar sendo um baita de um esperto. Sendo um imortal, ele não transforma a mocinha num vampiro justamente por não querer ficar pra sempre carregando aquela mala junto dele. Imagina, e quando ele enjoar? Uma eternidade demora um bocado. O que fazer? Melhor ficar enganando a mocinha, fazendo juras de amor eterno, sabendo que daqui a um século ela vai estar morta e ele ainda vai estar na flor da idade, pronto para enganar mais uma jovem inocente.

- Bella, eu te amo, eu poderia te amar pra sempre...
- É isso! Então me faça viver pra sempre! Me transforme numa vampira e viveremos juntos por toda a eternidade!
- Hm, ah, pois é... sei lá, acho que não é uma boa ideia... viver pra sempre não é tão legal assim...
- Ah é?!
- Ah, sim. Esperimente passar um século com a mesma dentição. Chega uma hora em que não há tratamento dentário que resolva.
- Puxa...
- Quem sabe a gente pensa nisso depois? Ano que vem... ou próxima década, talvez. Eu poderia te amar pra sempre, mas vamos com calma...

Quanto ao problema da falta de sexo... nada que umas saídas às escondidas não resolva.

***

A autora errou ao retratar os homens, mas com as mulheres ela acertou direitinho. A personagem do filme, ao ser abandonada pelo amor de sua vida, vai buscar consolo nos braços (musculosos) do lobisomem. O coitado fica todo esperançoso, pensando que vão ficar juntos, aí o vampiro volta e a mulher dá um pé na bunda do pobre lobinho. Típico.

Ela estava mal, se sentindo desprezada, aí ficou dando esperanças falsas para um cara que realmente gostava dela. Algumas mulheres, quando levam um pé na bunda, procuram alguém que lhes levante a autoestima novamente. Mas eles só servem pra isso: levantar a autoestima. E é sempre assim, elas ficam ao redor desses caras, se sentem bem de novo, prontas para acordar para a vida, aí bam: o cara que descartou elas dá mais uma chance e elas voltam correndo. E os homens que são jogados fora, como ficam os sentimentos deles?

Na boa, eu não tenho nada contra esses Crepúsculos, Lua Nova ou raio que o parta, mesmo, mas me preocupa a sua influência na mente das meninas de hoje em dia. Primeiro: elas vão correr atrás de um cara que não existe. Quanta decepção isso irá gerar na vida delas, quantos romances frustrados! Segundo: o mau exemplo com essa história do lobisomem. Sim, pois essas meninas se identificam com a personagem, e passam a agir como ela, inclusive copiando o seu comportamento. Tem uma fala no filme que a Bella diz algo como "não me faça escolher entre vocês dois, porque será ele". Referindo-se, é claro, ao vampiro purpurina. O quê? Depois de passar o filme inteiro se esfregando no lobinho, ela tem coragem de dizer isso, na cara dele? Essa aí, perdoem a sinceridade, não é nem um lobo nem um morcego, é uma vaca.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A calcinha

O sinal já havia batido mas a Bia nem queria saber de subir para a aula. Estava contando para as amigas sobre como o Rafa era um cretino, sacana, enganador, duas caras, mentiroso... os adjetivos não paravam de brotar. Às vezes na mesma frase:
- Não acredito que caí na conversa daquele cretino sacana, daquele enganador, daquele duas caras mentiroso...
As amigas ouviam e balançavam a cabeça, concordando. Ele era mesmo. Para ter feito aquilo que a Bia disse que ele fez, só podia ser tudo aquilo.
- Aquele safado sem-vergonha... acha que pode brincar comigo, o traíra enganador, falsário... - seguem-se mais adjetivos pejorativos. Alguns não publicáveis.
A Bia repetia e repetia a história, que o Rafa a usara, que prometera amor incondicional, que disse que ela era importante para ele... fez com que ela confiasse nele (o maldito!), até que, naquela noite, depois de ela relutar muito, depois de ele insistir muito, dizendo que iria respeitá-la, que se importava com ela... naquela noite ela concordou, finalmente, em entregar-se para ele, e tiveram uma noite juntos, e ela o amou intensamente... para o quê, para o quê mesmo?
- Para ele me jogar fora no outro dia! - disse ela, e ameaçou chorar outra vez.
A Jé passou a mão na cabeça da amiga, dizendo "não chora, não chora", enquanto a Deia pegava a mão da amiga e dizia "chora, chora que passa...".
- Mas ele vai ver, - dizia Bia - um dia ele vai ver a canalhice que fez e vai correr atrás de mim, pedindo perdão, e eu vou dizer não mesmo, cachorro, vira-lata de uma figa...
Como que por mágica, nesse exato momento o Rafa aparece diante das três, com a sua mochila nas costas e uma cara séria no rosto, o qual usualmente carregava sempre uma expressão divertida.
- Bia, quero falar contigo. - disse ele, bem sério.
A Bia olhou para as duas amigas com um olhar de triunfo. Depois olhou para o Rafa e disse, na voz mais indiferente que conseguiu fingir:
- Ah é?
- Sim, preciso falar contigo. Pode ser?
- Fala, então. O que é?
Ele olha para as duas amigas da Bia.
- Pode ser em particular?
Bia solta uma risadinha.
- Por quê? É alguma coisa séria que você quer me dizer? Diz agora.
- Eu realmente acho melhor que isso seja em particular...
- Ah é? Eu estou muito bem aqui. Qualquer coisa que você disser, as minhas amigas podem ouvir.
Isso, se humilhe na frente delas, pensa Bia. Peça perdão, cachorrinho. O Rafa olha sem jeito.
- Tem certeza?
- Ah se tenho.
O Rafa dá de ombros. Então abre a mochila e tira dela uma calcinha rosa com os dizeres "Lick me!" em letras emendadas douradas, e uma abertura no tecido logo abaixo dessas palavras.
- Você esqueceu isto lá em casa. - e atira a calcinha para a Bia, que observa atônita ela pousar no seu colo, a abertura na calcinha escancaradamente aparente. - Era isso. Agora eu vou pra aula, que eu tô atrasado.
Ele vai embora e deixa Bia paralisada, com a calcinha ainda na mesma posição em que pousou. Ela então olha para as amigas, as duas de olhos fixos na calcinha. Pois uma calcinha assim não é uma calcinha qualquer. É uma calcinha de alguém que espera sexo. É uma calcinha de alguém que planejou antecipadamente o momento do sexo para poder usá-la, e certamente não de alguém que foi convencida relutantemente.
- Eh... eu posso explicar. - disse Bia às amigas.
Mas elas disseram que a explicação ficava pra depois. O sinal já tinham batido, olha só a hora, elas tinha que subir logo. E saíram depressa, deixando Bia e a sua calcinha sozinhas.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

[Ironia]

Ironia em 2 exemplos:

Exemplo: O Gato Sério
O blog O Gato Sério é um blog basicamente feito de humor. Salvo uma que outra postagem de conteúdo político, o intuito do blog é sempre o humor.
O fato de chamá-lo de O Gato Sério é justamente uma ironia, pelo fato de que ele é, em síntese, o oposto do sério. Ele não é nada sério. Nada sério pra caramba.
Portanto, a graça está em saber que o nome é uma ironia. Tirado do contexto, perde a graça e torna-se potencialmente ofensivo, afinal, sempre há pessoas donas de gatos sérios de verdade que podem se ofender.

Exemplo 2:
Escrever textos humorísticos que não recebem comentário nenhum, enquanto que outro texto humorístico com um tema mais específico ganha vários comentários. Comentários estes vindos principalmente de pessoas que não acompanhavam ou desconheciam o blog, tendo apenas lido este texto em específico, indicadas por outras pessoas com opiniões já formadas sobre o texto. Elas não pegaram o espírito do texto. Elas não têm culpa de desconhecer o teor de seriedade nulo do blog, mas acabaram por confundir o texto em questão com uma declaração séria. Isso é irônico pra caramba.

***

A ironia é uma coisa complicada, porque, mesmo se você usá-la de um jeito inteligente, se ninguém entendê-la quem vai passar por burro é você. Isso por si só é bem irônico. É por isso que esse tipo de humor, e também o sarcasmo, seu irmão mais apimentado, deve ser usado com cuidado. Imagino que alguns de vocês tenham ouvido falar da história da professora que escreveu um texto ironizando o racismo, mas de um jeito onde ela incorporava o papel de uma racista, fazendo afirmações tão estapafúrdias que não poderiam ser levadas a sério. Os leitores, na teoria, notariam o quão absurdo é discriminar alguém pela cor da pele e todos seriam felizes. Teve gente que não entendeu, a professora foi indiciada e, até onde eu acompanhei a matéria, estava prestes a ser julgada, podendo ser presa. Vale lembrar que a professora fazia parte de uma ong contra o racismo e seu marido era negro.

Outro caso parecido: um certo estudante de jornalismo escreve um texto bem humorado sobre profissionais em geral de comunicação, e o coloca na internet. Por ser ele próprio um estudante de comunicação, não vê mal algum nisso, e espera pacientemente seus amigos lerem, crente de que todos poderiam rir juntos dos clichês do mundo da comunicação. Não é o que acontece. Não só os colegas falham em reconhecer o caráter do texto, ou seja, que não reflete a verdadeira opinião do autor e sim uma visão propositalmente distorcida do assunto, mas alguns deles acabam por se identificar no texto e o levam para o lado pessoal. Principalmente publicitários, mas também RPs e, por estranho que parece, nenhum jornalista, sendo que o texto fala mal, sim, deste último profissional, ainda que de forma mais sutil mas igualmente ácida. Vale lembrar que os melhores amigos do estudante de jornalismo em questão são publicitários, e ele mesmo já se candidatou para estágios de PP por interesse próprio pela área.

A professora e esse outro cara, obviamente, fizeram uma piada infeliz. Muito infeliz. Às vezes acontece isso, o humor falha, o sarcasmo é incompreendido e passamos por idiotas. A solução talvez fosse criar um reformatório do humor, que poderia substituir a cadeia para a professora. Especialistas ensinariam a fazer uso da ironia de um jeito apropriado. Haveriam cadeiras de História do Humor, onde seriam exibidos as boas comédias mudas dos filmes de antigamente, redação humorística, para não se errar mais o teor dos textos ao redigi-los e um laboratório prático de stand up comedy. Depois de uma aula básica de Teoria do Sarcasmo, alguns vídeos dos melhores momentos de Chandler em Friends iriam guiar os alunos para o caminho certo.

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Outra: Robin Williams no programa do David Letterman. O cara fez uma gracinha com o Rio, aquele negócio das strippers e do pó. Obviamente o ator não crê que o Rio seja uma cidade de strippers e pó, ele estava brincando com um clichê brasileiro que sabe-se que é exagerado. Ele fez graça com essa visão geral que há no imaginário internacional sobre o Rio de Janeiro, que é apenas uma caricatura, não o negócio real (bom, se bem que o lance da cocaína no Rio de Janeiro... deixa pra lá). Uma caricatura é justamente brincar com o exagero. Nele está a origem da graça. Isso ficou claro para mim, mas não para o prefeito Eduardo Paes, que levou a declaração para o lado pessoal. Já estão falando até em processo. Nunca fui fã do Robin Williams, mas, por algum estranho motivo, me sinto extremamente solidário com ele nessa situação. Nem sei bem porquê.

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A solução seria anunciar o sarcasmo antes de usá-lo. Isso mesmo. Antes do Robin Williams ter dito aquilo, ele deveria ter virado para a câmera, apontado e dito: "lá vai uma tiradinha com o Brasil!", e, depois da piada, ter falado algo como:
 "Lembrando que isso é uma gracinha exagerada levando em conta aspectos que não condizem cem por cento com a realidade brasileira. É apenas uma caricatura difundida em alguns países mas que não tem um comprometimento fiel com a verdade. Eu amo o Brasil, assim como todos os americanos. Votem nos democratas".
Ia matar o timing, não ia ter graça nenhuma, mas pelo menos não poderiam culpá-lo de nada. No texto escrito isso também é necessário. Talvez colocar uns sinais anunciando o começo e o final de uma tiradinha sarcástica, pra não causar confusão em ninguém. Vai tirar a graça, mas daí ninguém se ofende.

***

- Porra, Lula...
- Sinto muito, companheiro...
- O que foi que eu falei? Você tem que maneirar nas piadinhas.
- Pessoalmente, eu não vi o que eu fiz de errado. Eu estava só brincando que eu era um presidente com dois mandatos e o Gordon Brown nem presidente é.
- O problema foi o sinal, Lula. Os dois dedos levantados em forma de V.
- Ué, era pra ser expressivo. Pra ele me entender. Dois mandatos. Eu não sei falar inglês. Me no speak english.
- Esse sinal é considerado um insulto no Reino Unido. Ele pensou que era outra coisa.
- Como é que eu ia saber?
- Tá, só não faz mais isso, ok? Já bastou aquela piadinha com o Kirschner ser estrábico. Consegui convencê-lo de que você estava só coçando o olho. Eu sempre consertando os seus vacilos...
- Desculpa...
- Sabe o que que eu fiz? Evitei uma guerra. Só isso. Evitei a porra de uma guerra.
- Muito obrigado... eu não sei o que faria sem o meu relações-públicas...

Só pra lembrar que RPs fazem sim muito mais que eventos.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Os comunicadores

Não sei se é bem verdade aquele discurso que diz que, não importa se você faz jornalismo, publicidade ou relações públicas, é tudo comunicação. Tá, tá, todos comunicam, de certa forma, eu sei, mas a frase dá a entender que é tudo homogêneo, que uma profissão tem a ver com a outra. Não tem. Pense num jornalista: ele tem mais a ver com um historiador ou com um cientista político do que com um publicitário. Pelo menos com eles o jornalista teria mais assunto para bater papo. Agora imagine colocá-lo para conversar com um relações públicas numa festa. O jornalista vai tentar puxar assunto sobre o Irã ou a campanha presidencial, e o RP vai escutar desinteressado, balançando a cabeça, esperando por uma deixa para mencionar que ele foi o organizador da festa.

- ...Agora, os EUA precisam se preocupar, pois o Irã negou a proposta de enriquecer o urânio em outros países. Esse era justamente o maior temor dos países do ocidente e de Israel. Assim, os EUA não tem como controlar um possível desenvolvimento de uma bomba...
- Sim, sim. Mas falando em bomba, sabe quem organizou esta festa de arromba? Hein, hein?

Podem ver que, numa faculdade de Comunicação, é possível identificar os alunos de cada curso só com uma rápida olhada. O jornalista é o cara de óculos de aro grosso, com um exemplar de um livro de cinema francês embaixo do braço. Em uma mão, um café; na outra, um cigarro. Para cada tragada, dois goles de café, ou vice versa. O publicitário é o que está com as roupas moderninas, ironicamente adquiridas num brechó. No rosto, óculos escuros, os mais espalhafatosos possíveis. As meninas usam cabelo curto pintado em tons de vermelho, ou então descoloridos. O RP é o que não está de All Star. Simples assim.

***

Converse com um jornalista e você vai se entediar. É incrível como alguém que vê tanta coisa e tem tantas histórias pra contar não sabe como fazê-lo de um jeito interessante. É consenso que um jornalista, mesmo que seja um bom entrevistador, nunca pode ser entrevistado. Jornalista não sabe falar. Quando dá uma palestra, sempre o faz de um jeito maçante. O RP não. O RP pode não ter nada pra contar, mas o contará do jeito mais energético possível. Ele sabe fazer uma história inexistente virar uma epopeia. Por outro lado, isso pode também ser uma característa inerente às mulheres, e não à profissão, já que 90% dos RPs são mulheres. Os 10% restantes, como se sabe, são homens que não conseguiram entrar para Jornalismo.

Os publicitários ficariam em algum lugar entre os RPs e os jornalistas. Os jornalistas são fechados, os RPs são exageradamente sociáveis, os publicitários são mais ou menos. Numa festa de Comunicação, estarão lá: todos os RPs, metade dos publicitários e uns cinco jornalistas. Que ficarão conversando entre si, possivelmente sobre o Irã ou a eleição presidencial. Os RPs tentarão conversar com todo mundo, o que resulta em trocar de círculo de conversa a cada cinco minutos. Os publicitários vão falar com quem conhecem, e era isso. Eles são o fiel da balança. Não puxam nem para um lado, nem para o outro. Na real, não fazem muita coisa. Por mais que seja preciso estudar para se dar bem em uma profissão, convenhamos: Publicidade, das três, é a menos puxada. Inclusive, tem gente que entra em Publicidade só porque o curso tem essa fama de ser fácil, de só precisar ser criativo. Não é verdade, é claro, mas isso faz aumentar e muito o número de vagabundos por metro quadrado do curso.

***

Um amigo meu (publicitário) inventou a seguinte situação, para demonstrar como funcionam as diferenças entre os três profissionais: num trabalho em grupo, os RPs conversam entre si, discutindo cada aspecto do trabalho, de forma que o resultado final espelhe a opinião de todos. Os jornalistas dividem o trabalho entre si, cada um fica com uma parte e a faz sozinha. Os publicitários ficam desenhando.
Acredito que seja bem por aí. Seguindo o modelo, inventei outras situações onde pode-se notar a diferença entre os cursos:

No fim do mundo:
Os RPs se reunem para todos ficarem juntos no momento final, e se abraçam, e dizem o quanto cada um foi importante na sua vida. Aproveitam o grande número de pessoas reunidas para organizar um grande evento, que precisará ser melhor que os eventos de final de ano, afinal, vamos combinar, é uma festa de Final de Mundo, precisa ser do caceta. Os jornalistas, informados, já sabem o dia exato do fim do mundo há muito tempo, e vão se esconder nos seus bunkers individuais, previamente construídos, onde organizaram suprimentos de livros e uma videoteca do Antonioni. Os publicitários ficam desenhando.

Numa revolução: 
Os jornalistas se polarizam, alguns defendendo com todos os argumentos a revolução, outros chamando os revolucionários de tudo, de fascistas até rameiras do Lênin; depois, são contratados pelo jornal de ideologia contrária e mudam completamente de opinião. Os RPs se botam na frente dos tanques, distribuem flores numa ação de imagem previamente planejada e pedem que todos se deem as mãos. Os tanques passam por cima deles. Os publicitários ficam desenhando.

Num enterro:
O jornalista comparece, demonstra seu respeito pelo defunto, depois olha a toda hora para o relógio, perguntando-se se pega mal sair muito cedo. Para matar tempo, fica discutindo sobre Cuba com seus colegas. O RP chora compulsivamente, depois pergunta se haverá algum evento organizado para depois do velório. O publicitário chega atrasado, pergunta o nome do defunto por quatro vezes, fica confuso, pensando se está no velório certo, e então se retira para um canto. Possivelmente para ficar desenhando.

Num jogo de pôquer:
O RP fica dizendo que não gosta de jogar, porque não sabe mentir. Mas isso é uma mentira. O jornalista faz pacto com um dos adversários previamente, depois o sacaneia, pega todas as suas fichas e ganha o jogo. O publicitário se pergunta por que ninguém fez canastra ainda.


Numa estreia de cinema:
Os RPs riem (ou choram, depende do filme) alto, e conversam no meio do cinema, para descontento do jornalista, que está vendo o filme sozinho, num assento próximo, e odeia que atrapalhem o seu processo de imersão na película. O publicitário acha o filme muito bom, mas gostaria de ter chegado na hora para ver o início.


Numa entrega de trabalho:
O jornalista faz o trabalho correndo, na madrugada do dia da entrega, movido a café. O trabalho fica bom, mas ao entregá-lo ele acaba por não notar a mancha de café na capa. O RP faz um trabalho com o dobro de folhas que o professor pediu, e escreve um recadinho para o mestre desculpando-se caso ele ache que faltou alguma coisa. O publicitário não faz o trabalho.

Num perfil de Orkut:
Jornalista: foto de perfil em preto-e-branco, humor seco/sarcástico, citações de escritores europeus na descrição do perfil.
Publicitário: lista de música/banda preferida com cinquenta bandas indie que ninguém ouviu, álbum de fotos com todos os tipos de cabelos que já usou.
RP: dois perfis lotados.

Eu acho que deixei claro o meu ponto.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A lady

É mais do que normal passar por situações que dão errado. Você planeja tudo, nos mínimos detalhes, para que seja perfeito, mas tudo não sai perfeito. Tudo sai o oposto do perfeito. Sai uma caca. É sua culpa? Bem, é, na verdade. Mas às vezes há situações em que o Destino, esse safado brincalhão, parece querer implicar com você. Não culpe o Destino: a culpa é de uma mulher. Uma temperamental, sacana, sem noção, que aparece de vez em quando para ferrar com a sua vida. A lady. A Lady Murphy.
De lady, só o nome. A Lady Murphy é uma vadia e ela sabe disso. Ela sempre estará presente ao longo da sua vida, fazendo manifestações em horários inapropriados. Quando algumas coisas fogem do controle, não se irrite, é normal. Agora, quando tudo o que podia dar errado dá errado, pode ter certeza que há um dedo da lady nisso. É ela quem transforma um fail num epic fail. É ela quem fará seu carro estragar quando você está indo ao hospital para o parto do seu filho. E todos os táxis estarão ocupados. E o que não estiver será assaltado. E, quando você finalmente chegar no hospital, saberá que era alarme falso, apenas contrações mais fortes que o normal. Malditas mulheres.

***

O Nando volta do banheiro com a cara encharcada. Na mesa da praça de alimentação do shopping, a Jana o está esperando há algum tempo.
- Credo, Nando! O que houve?
- Nada, só joguei uma água no rosto para me acordar.
Ele senta de frente para ela. Finalmente, depois de anos de espera do Nando, a Jana terminara com o namorado. Desde que a Jana contara ao Nando que o namoro não ia bem, há um tempão atrás, aquela chama tênue de esperança que sempre existira dentro dele virara uma grande fogueira. Só não esperava que ela ainda demorasse um ano para finalmente decidir largar o Paulo. O Paulo era o ex. Tudo bem: Nando esperou pacientemente por todo esse tempo, e agora o momento chegou. Ela está livre. A mulher dos seus sonhos, só esperando por ele tomar uma atitude. Por causa de Jana, Nando entrara na academia e começara o tratamento contra as espinhas. Se preparara física e psicologicamente para o momento de hoje. Porém, quando nos vemos confrontados com algo que parecia ser tão distante, apenas um sonho futuro, é normal ficar nervoso. Nando esperara muito por esse dia, e agora não poderia desperdiçar o momento.
- Pois é, achei estranho você marcar de almoçar comigo no meio da semana... achei que os seus horários eram meio apertados - diz ela enquanto saboreia a sua refeição.
- Pra você eu sempre acho tempo. Sempre.
- Desculpa, não ouvi.
- Nada. Come aí.
Ele já havia terminado a refeição. Havia comido extremamente rápido, e queria que ela também o fizesse. Planejou que o momento deveria ser logo após o almoço. Tinha ensaiado tudo. Primeiro, a isca:
- Sabe que eu tenho uma colega de intercâmbio que está dando em cima de mim...
- Ah, é? - disse a Jana, curiosa.
- Ah, sim, se vazando horrores. Litros. É alemã.
- As alemãs são bem safadas, mesmo. É bonita?
- Ô. Todos os meninos da sala ficam babando por ela.
- Eita. Então vai em frente!
Era agora.
- Sabe, eu acho que não... - diz ele, coçando a cabeça.
- Ué, porque não? Você não disse que ela era bonita?
- Sim, mas, por mais linda que ela seja e por mais que todos os caras quisessem estar no meu lugar, eu acho melhor não fazer nada...
A Jana estranha:
- Como assim?
- Eu acho que tem mulheres mais certas para mim...
- Ah é? Tipo quem?
- Ah, mulheres que são lindas mas também são interessantes, divertidas, engraçadas...
- Que papo de bicha. A alemã tá te querendo. Vai nela.
- Ah, mas eu disse que eu queria uma mulher interessante, divertida...
- E como você sabe que ela não é isso tudo? Eu tô te dizendo, se eu fosse homem, eu ia atrás dela.
- Mas, mas...
- Já chega grudando.
- Mas eu não quero ela, eu quero outra pessoa!
- Quem?
- Ah, você sabe, quer dizer, acho que você já sabe, não sabe?
- Não, não sei! Ai, me conta! Quem é? - ela se debruça sobre a mesa para ouvi-lo melhor, seus olhinhos brilhando. Nando fica nervoso.
- Eu, quer dizer, ah, ah...
- Quem é? Eu conheço?
- Eh... sim, sim, é uma amiga minha.
Ela volta a sentar direito.
- Ih, então vai pra alemã, que eu conheço as tuas amigas e elas são todas feias.
- Não, você não entendeu ainda? Não são elas... é... é...
- Então é quem?
Nando se sente mais nervoso.
- Nossa, Nando, como você está pálido... - Jana o olha com preocupação.
- É? Não sei, estou? Ah...
- Tá passando bem?
- Estou bem. Olha, eu queria dizer que você está linda, quer dizer, é linda, quer dizer...
- Oi?
Nando se sente enjoado. Uma sensação quente começa a subir pela sua garganta.
- Eu... olha só, eu...
Nando sente um refluxo. A sensação quente quase passa da garganta. A cara de Jana mistura medo, nojo e preocupação.
- Com li-*refluxo*-licença!
Nando sai em direção ao banheiro.
- Nando! - Jana vai atrás dele.

***

- Desculpa aê a demora.
- Imagine. Você estava mal. Foi a comida?
- Sei lá. Deve ter sido.
- Tá, tá, só fala mais pra lá, por favor. Olha, acho que eu vou embora, então.
- Mas já? É tão cedo.
- Pois é, mas sei lá, melhor eu ir...
- Espera, senta aí que eu tenho uma coisa muito importante pra falar contigo...
Os dois sentam num banco no meio do shopping. Desde que saiu do banheiro, Jana notou que Nando consumia freneticamente vários Halls que tirava de uma embalagem do bolso. Nando saca a embalagem novamente e pega dois de uma vez. Oferece à Jana, que recusa.
- Eu esperei por muito tempo por esse momento... - diz ele, num tom de voz supostamente sedutor.
- Hein?! - Jana confusa. Ele pega na mão dela.
- Eu tenho tanta coisa pra te dizer, mas eu acho que palavras não são o melhor jeito para isso...
- O quê?
- Fecha os olhos.
Nando se aproxima. Jana consegue sentir seu hálito de Halls misturado com uma leve fragrância. De vômito. Seu sentido de aranha desperta.
- Epa. Vamos com calma.
- Como assim?
- Peraí. Vamos conversar.
- Conversamos depois. Agora fecha os olhos que eu quero te mostrar uma coisa...
- Não! Sai pra lá!
Jana empurra o Nando para longe. Ele parece chocado.
- Credo, Nando, que nojo! O que você tá fazendo?
- Você não entende? Eu te amo, Jana, eu te amo! Antes você estava com o Paulo, mas agora não está mais, e nós podemos ficar juntos! É perfeito! - ele volta a se aproximar dela.
- Peraí, chega pra lá! Como assim, você me ama?
- Eu posso te dar tudo o que ele não te deu. Eu posso te fazer feliz. É só fechar os olhos...
- Não, Nando! Eu não quero nada com você!
Nando para.
- Por que não?
- Olha o que você tá dizendo! A gente é amigo! Eu não quero ficar com você!
- Mas, mas eu esperei por tanto tempo...
- E que mau gosto de me falar isso agora! Eu acabei de acabar com o Paulo! Pô, me dá um tempo!
Nando muda a postura. Fala num tom mais agressivo:
- Dar um tempo? Eu esperei um ano -UM ANO!- pra você acabar de vez com o Paulo, ouvindo você falar mal dele, dizendo que ele não te dá atenção e coisa e tal... - seu lábio inferior começa a tremer - Não me fale sobre esperar!
Para a surpresa de Jana, Nando começa a chorar. Desesperadamente. Os passantes viram as cabeças para ver o que está acontecendo. Jana está morrendo de vergonha: não tem a mínima ideia do que fazer. Tudo o que sabe é que precisa fazer o Nando parar de chorar de algum jeito. Tenta uma mão amigável no ombro.
- Calma, Nando, calma...
Nando levanta a cabeça e olha para ela com o olhar mais odioso que consegue fazer. Jana nota que suas lágrimas desenharam pequenas trilhas no creme anti-acne de seu rosto.
- Se você não me quer, eu não quero mais saber de você! Me corta! Me corta do teu Orkut, me bloqueia do teu MSN... espero que a gente nunca mais se fale!
Nando espera uma reação desesperada de Jana para não perder o amigo, mas ela não fala nada. Apenas olha para os lados calculando quantas pessoas estão vendo a cena. Mais do que ela gostaria, conclui. Nando tenta mais uma abordagem:
- Vamos lá... no fundo, você sabia que eu gostava de você esse tempo todo... no fundo, você sabia que eu te chamei aqui pra te dizer isso... e você veio mesmo assim. Você gosta de mim. Vamos, diga o meu nome, diga...
- Paulo!
- Não! É Nando! O meu nome é Nando!
Mas ela nem ouve: se levanta e vai correndo abraçar o Paulo, que, por pura coincidência, está passando pelo local junto com dois amigos. O Paulo olha surpreso para a ex-namorada enquanto ela o abraça, desesperada.
- Ai, Paulo, ainda bem que você está aqui! - diz ela, e depois cochicha em seu ouvido: - Por favor, me tira daqui!
O Paulo olha para a sua ex, olha para o Nando, que está olhando pateticamente os dois abraçados, soma dois mais dois e se dá conta do que está acontecendo. Subitamente se sente muito bem consigo mesmo.
- Ah, quer que eu te leve pra casa? - pergunta ele.
- Sim, sim, por favor! Eu faço qualquer coisa!
- Tá certo. Só vamos nos despedir do seu amigo...
Paulo caminha decidido em direção ao Nando, arrastando junto a Jana, que não tem tempo de negar a proposta. Ele é mais alto que o Nando e bem mais bonito. Os dois nunca haviam se encontrado.
- E aí, cara! Prazer, eu sou o Paulo.
Estende a mão para o Nando, que o cumprimenta, abobado. Depois continua:
- Olha só, a Jana (passa o braço em volta dela) vai voltar comigo pra casa. Acho que ela vai se despedir agora.
- Tá, me espera ali com os seus amigos que eu já vou lá. - diz Jana, indicando os amigos de Paulo com a cabeça. Os dois estão a alguns metros de distância e rindo horrores da situação.
- Não, não - responde o Paulo -, eu estou bem aqui.
E fica parado, olhando os dois, com as mãos nos bolsos.
A Jana se volta para o Nando. Por um momento fica pensando no que falar. Finalmente suspira e diz, como se estivesse se despedindo de um técnico de televisão que viera consertar a antena de sua casa:
- Bom, então é isso!
Nando se levanta. Não vai se deixar humilhar assim.
- Sim, é isso. Agora com licença, eu também vou embora.
Dá uma encarada nervosa, vira de costas para Jana e sai andando, decidido. Alguns segundos depois, ouve ela chamar seu nome:
- Nando!
Ele se vira, esperançoso. Ela está se segurando para não rir.
- A parada de ônibus é pro outro lado!

domingo, 22 de novembro de 2009

A Ângela

Talvez alguns de vocês lembrem da crônica a seguir. Ela ficou no blog por menos de uma semana, sendo retirada após eu ter recebido reclamações por a personagem da história lembrar demais uma pessoa real, que poderia ficar ofendida com o texto. Reitero aqui que todos os textos presentes no blog "O Gato Sério" são puramente ficcionais, no máximo baseados livremente em eventos ou pessoas reais, mas nunca cem por cento retirados da realidade. Portanto, qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais são apenas isso, semelhanças, e as personagens não são de jeito algum transposições diretas de pessoas reais para o meio ficcional. Era isso. Aproveitem a leitura.

***

A Ângela era perfeita. Um anjo, poderia se dizer. Nunca ninguém havia visto uma menina tão prendada quanto ela - e prendada era a palavra certa. Ela, acreditem, costumava limpar a casa por hobby. Por hobby! Não bebia -nem refrigerante!-, dormia às nove da noite e levantava às seis e meia. Nos fins de semana. E era linda. Os garotos se derretiam por sua beleza. O problema é que a Ângela não ficava, simplesmente. Não, não, senão não seria a Ângela, a pura Ângela. A Ângela era garota de se namorar firme. De se casar. E ninguém se importava com isso: quem pegasse a Ângela não iria querer largar nunca. Era consenso. Todos desejavam a Ângela, mas chegar às vias de fato era complicado. Era preciso criar terreno, se aproximar aos poucos, como se estivesse caçando uma gazela. Era preciso fazer ela se acostumar com a sua presença antes de dar o bote. Não era só chegar e perguntar "e aí, rola?," porque a Ângela não era assim. A Ângela era pura.

E foi para a surpresa de todos que o Marcelo apareceu certo dia dizendo que estava namorando a Ângela. O Marcelo não tinha nada de especial. Mas todos tiveram que reconhecer que ele se esforçou bastante para alcançar a sua meta. Foram meses de preparação de terreno, de conversar, marcar programas e eteceteras. E ele finalmente tinha conseguido. O Marcelo estava feliz. Exibia a namorada como um troféu, e todo dia falava dela ela para os amigos.
- Ela é perfeita. Ela faz de tudo. Ela cozinha maravilhosamente, ela pinta telas!
- Pinta tipo o quê?
- Ah, sei lá. Mas ela pinta. E borda. Sim, ela sabe até bordar! Mulheres assim não existem mais.
E os outros concordavam. Não existem, mesmo. Estava claro que o Marcelo nunca iria largar a Ângela. A Ângela era o ápice. Ele nunca encontraria ninguém melhor que ela. Melhor dizendo, não existia ninguém melhor que ela.

***

Certo dia o Marcelo sumiu. Sumiu, assim, de repente. Os amigos ligavam para a sua casa e ninguém atendia. A Ângela estava em prantos. Não entendia o que aconteceu. Procuraram a família do Marcelo, que disse apenas que ele se mudou. Pra onde? Não sabiam. Por quê? Não davam maiores explicações. Os amigos do Marcelo começaram a discutir o ocorrido. O que poderia ter acontecido para um cara como o Marcelo sumir do mapa, assim, sem aviso? E ainda mais deixando a Ângela, a pura Ângela, a mulher perfeita, para trás? A não ser... a não ser que a Ângela fosse a causa do sumiço. Uma facção dos amigos defendia a tese de que o Marcelo se frustrou por ter chegado ao ápice tão cedo. Certas pessoas têm um objetivo na vida, como ficar rico, encontrar a mulher ideal, e passam a vida perseguindo essa meta. O Marcelo tinha encontrado a mulher ideal muito cedo. Não tinha mais objetivos. Resolveu começar tudo de novo, do zero. A outra facção dizia que não, é impossível se cansar da Ângela. Simplesmente porque a Ângela é perfeita.

Finalmente um amigo apareceu com notícias do Marcelo. Estava em um mosteiro budista. A turma toda resolveu se reunir para falar com ele. Mas acharam melhor não levar a Ângela. Encontraram-no de quimono, rodeado por incensos. Estava meditando, na posição de lótus. Quando abriu os olhos e viu os amigos, tomou um susto.
- C-como vocês me acharam?!
Os amigos logo saíram perguntando o que deu nele para sumir assim, sem avisar ninguém. E, afinal, o que ele estava fazendo num mosteiro? O Marcelo não quis falar. Era horrível demais remoer as lembranças. Os amigos insistiram. Um, mais corajoso, perguntou:
- Foi a Ângela?
Ao ouvir esse nome, o Marcelo deu um gemido. Depois confirmou. Foi a Ângela, sim. A facção da teoria do ápice comemorou. Estavam certos! Mas não, desmentiu Marcelo, não foi por isso que ele sumiu.
- Eu, enjoar dela? É claro que não! A Ângela era perfeita!
Arrá, bradou a outra facção. Mas, afinal, se não foi por ele ter enjoado da Ângela, o que ela teve a ver com o sumiço? O Marcelo relutou um pouco, mas contou. Ele fugiu um dia depois de ter ido pela primeira vez na casa da Ângela. Para conhecer os pais.
- Ah, você não se deu bem com o sogro, foi isso?
Não, não foi isso. Tinham se dado super bem. Os pais dela eram ótimas pessoas e, para a sua surpresa, gostaram dele. Quando a Ângela tinha se retirado para lavar a louça, o Marcelo não resistiu e parabenizou-os. Pelo quê?, perguntaram. Por terem feito ela, oras! Todos riram, enfim, estavam todos de bem com a vida.
- E então, o que aconteceu?
Depois do almoço, a Ângela convidou-o para visitar o seu atelier. Nesse ponto, o Marcelo deu uma pausa. Não sabia se queria continuar contando. A lembrança era terrível demais. Se soubesse que a sua vida estava prestes a ser destruída, disse ele, nunca teria entrado naquele atelier. Viveria feliz para sempre, com a Ângela, amando-a até o fim da vida. Contanto que não entrasse nunca no atelier. Os amigos pediram para ele ser forte. Marcelo respirou fundo e continuou a história. Desceram para o atelier, que ficava no porão da casa. Ângela estava muito entusiasmada; queria mostrar a sua série de quadros para Marcelo. Tratava-se de uma série de releituras de uma mesma obra sua: O Falo.
- Por "falo" você quer dizer...
- Isso mesmo.
Então Ângela ligou a luz do porão e Marcelo teve a visão que destruiu a sua vida: quadros e mais quadros retratando falos e mais falos. Enquanto Marcelo observava atônito, Ângela explicava que esta série era uma obsessão sua. Como Monet e as suas pinturas da catedral. Não sabia por quê, mas tinha aquele impulso de pintar falos. Pintava-os e repintava-os e então pintava mais. Eram a sua temática preferida. Ângela, sorrindo, perguntou para Marcelo o que ele achou. Marcelo estava mudo. Não queria olhar para os quadros, mas não conseguia desviar os olhos. Como quando se olha um acidente de trânsito. Aqueles falos eram o acidente da sua vida. Deu um jeito de sair dali. No dia seguinte, foi para o mosteiro.
- Vocês entendem? Existem três coisas sobre as quais eu baseio a minha vida: a Terra é redonda, o céu é azul e a Ângela é pura como um anjo. Só que eu descobri que ela é um anjo pornográfico. Que nem o Nelson Rodrigues, o do "Bonitinha mas Ordinária," sabem?
Marcelo contou que sentiu como se tivessem puxado um tapete sob seus pés. Perdera totalmente os seus pontos de referência, se sentira totalmente desnorteado. O mundo estava louco, não estava fazendo sentido nenhum. Decidira entrar em profunda meditação e se desconectar do plano material da existência. Aquele mundo não era mais para ele.
- Agora, se vocês me dão licença, eu gostaria de continuar a me fundir com o nada.
Resolveram deixar o Marcelo no mosteiro; notaram que era um caso perdido. Saíram de lá discutindo a descoberta. Mas que coisa, a Ângela, com aquela cara de santa... realmente perturbador. Mas, ao invés de se internar num mosteiro como o Marcelo, acharam melhor esquecer da descoberta tomando umas cervejas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O lado vencedor

Estávamos eu e meu amigo Lucas Costa fazendo o que fazemos de melhor: discutir. Desta vez sobre ideologias: ele tomando o lado do capitalismo, eu do comunismo. Apenas um debate saudável, nem eu nem ele somos radicais nas nossas posições, mas o negócio acabou evoluindo de forma acalorada. Para encerrar o debate, O Lucas disse uma frase que até hoje não desceu pela minha garganta: "bom, pelo menos o capitalismo funciona". Na hora não quis replicar, pois a discussão estava se encaminhando para o final e despejar meus argumentos naquela hora significaria começar toda a briga de novo. Mas eu tenho algumas palavrinhas para dizer sobre isso. Ah, e como tenho.
Primeiro, é comum inferir no erro de que o lado que vence é o certo. Afinal, por que outro motivo ele seria o vencedor? O fato de o capitalismo ter triunfado na Guerra Fria não é de modo algum uma garantia de que ele é funcional, significa apenas que o comunismo acabou caindo antes. E não vou entrar no mérito do comunismo aqui: não estou defendendo o seu lado, mas sim apontando as falhas do outro. Há uma diferença. Pois bem, com o fim da Guerra Fria começou a era da globalização e o mundo se tornou uno. Um planeta, sob jurisdição de um mesmo sistema econômico. Na teoria, o que deveria acontecer é que a livre circulação do capital não por um país, mas por um planeta inteiro, deveria trazer benefícios para todas as nações. Com as economias ligadas, o aumento no capital, digamos, nos EUA, para pegar como exemplo a nação mais forte, deveria repercutir nas economias de todos os países ligados em sua economia. Por quê, então, desde os anos 90 a diferença entre as nações mais ricas e as mais pobres aumentou ao invés de diminuir?
Agora, ao contrário, um crash na economia estadounidense repercute por todo o mundo, trazendo prejuízos em todas as nações por meio de uma teia de economias interdependentes em que os benefícios não são repassados, mas os prejuízos, em maior ou menor grau, afetam a todos.
O Papa João Paulo II, segundo Lech Walesa o grande responsável pela queda do Muro (vide post anterior), disse certa vez que o comunismo era uma árvore podre, ele só sacudiu-a para que caísse de vez. Um sistema com crises cíclicas de proporções mundiais também é, na minha concepção, uma árvore podre. Os pobres países da África, que após séculos de exploração como colônias viam agora um avanço substancial em suas economias, levaram uma rasteira com a última crise. Como é esperado que eles alcancem as nações mais desenvolvidas tendo que aguentar uma crise dessas a cada século? Onde está a justiça?
Agora, isso é pequeno, muito pequeno se comparado com o pior lado do capitalismo. Há uma faceta muito mais terrível. O capitalismo em sua forma atual não é só falho, ele é, a longo prazo, perigoso.
Lembrem-se que um conceito básico do capitalismo atual é que o lucro vem acompanhado do crescimento, e não há como aumentar o lucro sem desenvolver-se. Na hora em que o capital estanca, o negócio para de funcionar. É preciso que ele se multiplique, gerando o lucro e o crescimento consequente, e mais lucro, e mais crescimento, e mais lucro... ad infinitum. O problema é que vivemos num planeta com recursos limitados. Não há como crescer infinitamente com os recursos finitos da Terra. Não há como frear o crescimento, também, pois um mercado estanque significa a falência da empresas. Não há como crescer mais, e não há como parar. Estamos condenados a chegar a um limite, e estamos nos aproximando dele a passos largos. Assim que o cruzarmos, o caos: crise, desemprego, sem contar problemas ambientais gerados pela exploração agressiva dos recursos naturais, o que tornaria algumas regiões inabitáveis. O capitalismo não funciona. A bem da verdade, funciona tão mal que condenou a todos nós a um futuro totalmente incerto. Se não houver reformas profundas em nosso sistema nos próximos 50 anos, a nossa geração já irá acompanhar essa derrocada. Tem gente que tem medo de 2012. Não tenham: economia é uma coisa bem mais assustadora.