domingo, 22 de novembro de 2009

A Ângela

Talvez alguns de vocês lembrem da crônica a seguir. Ela ficou no blog por menos de uma semana, sendo retirada após eu ter recebido reclamações por a personagem da história lembrar demais uma pessoa real, que poderia ficar ofendida com o texto. Reitero aqui que todos os textos presentes no blog "O Gato Sério" são puramente ficcionais, no máximo baseados livremente em eventos ou pessoas reais, mas nunca cem por cento retirados da realidade. Portanto, qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais são apenas isso, semelhanças, e as personagens não são de jeito algum transposições diretas de pessoas reais para o meio ficcional. Era isso. Aproveitem a leitura.

***

A Ângela era perfeita. Um anjo, poderia se dizer. Nunca ninguém havia visto uma menina tão prendada quanto ela - e prendada era a palavra certa. Ela, acreditem, costumava limpar a casa por hobby. Por hobby! Não bebia -nem refrigerante!-, dormia às nove da noite e levantava às seis e meia. Nos fins de semana. E era linda. Os garotos se derretiam por sua beleza. O problema é que a Ângela não ficava, simplesmente. Não, não, senão não seria a Ângela, a pura Ângela. A Ângela era garota de se namorar firme. De se casar. E ninguém se importava com isso: quem pegasse a Ângela não iria querer largar nunca. Era consenso. Todos desejavam a Ângela, mas chegar às vias de fato era complicado. Era preciso criar terreno, se aproximar aos poucos, como se estivesse caçando uma gazela. Era preciso fazer ela se acostumar com a sua presença antes de dar o bote. Não era só chegar e perguntar "e aí, rola?," porque a Ângela não era assim. A Ângela era pura.

E foi para a surpresa de todos que o Marcelo apareceu certo dia dizendo que estava namorando a Ângela. O Marcelo não tinha nada de especial. Mas todos tiveram que reconhecer que ele se esforçou bastante para alcançar a sua meta. Foram meses de preparação de terreno, de conversar, marcar programas e eteceteras. E ele finalmente tinha conseguido. O Marcelo estava feliz. Exibia a namorada como um troféu, e todo dia falava dela ela para os amigos.
- Ela é perfeita. Ela faz de tudo. Ela cozinha maravilhosamente, ela pinta telas!
- Pinta tipo o quê?
- Ah, sei lá. Mas ela pinta. E borda. Sim, ela sabe até bordar! Mulheres assim não existem mais.
E os outros concordavam. Não existem, mesmo. Estava claro que o Marcelo nunca iria largar a Ângela. A Ângela era o ápice. Ele nunca encontraria ninguém melhor que ela. Melhor dizendo, não existia ninguém melhor que ela.

***

Certo dia o Marcelo sumiu. Sumiu, assim, de repente. Os amigos ligavam para a sua casa e ninguém atendia. A Ângela estava em prantos. Não entendia o que aconteceu. Procuraram a família do Marcelo, que disse apenas que ele se mudou. Pra onde? Não sabiam. Por quê? Não davam maiores explicações. Os amigos do Marcelo começaram a discutir o ocorrido. O que poderia ter acontecido para um cara como o Marcelo sumir do mapa, assim, sem aviso? E ainda mais deixando a Ângela, a pura Ângela, a mulher perfeita, para trás? A não ser... a não ser que a Ângela fosse a causa do sumiço. Uma facção dos amigos defendia a tese de que o Marcelo se frustrou por ter chegado ao ápice tão cedo. Certas pessoas têm um objetivo na vida, como ficar rico, encontrar a mulher ideal, e passam a vida perseguindo essa meta. O Marcelo tinha encontrado a mulher ideal muito cedo. Não tinha mais objetivos. Resolveu começar tudo de novo, do zero. A outra facção dizia que não, é impossível se cansar da Ângela. Simplesmente porque a Ângela é perfeita.

Finalmente um amigo apareceu com notícias do Marcelo. Estava em um mosteiro budista. A turma toda resolveu se reunir para falar com ele. Mas acharam melhor não levar a Ângela. Encontraram-no de quimono, rodeado por incensos. Estava meditando, na posição de lótus. Quando abriu os olhos e viu os amigos, tomou um susto.
- C-como vocês me acharam?!
Os amigos logo saíram perguntando o que deu nele para sumir assim, sem avisar ninguém. E, afinal, o que ele estava fazendo num mosteiro? O Marcelo não quis falar. Era horrível demais remoer as lembranças. Os amigos insistiram. Um, mais corajoso, perguntou:
- Foi a Ângela?
Ao ouvir esse nome, o Marcelo deu um gemido. Depois confirmou. Foi a Ângela, sim. A facção da teoria do ápice comemorou. Estavam certos! Mas não, desmentiu Marcelo, não foi por isso que ele sumiu.
- Eu, enjoar dela? É claro que não! A Ângela era perfeita!
Arrá, bradou a outra facção. Mas, afinal, se não foi por ele ter enjoado da Ângela, o que ela teve a ver com o sumiço? O Marcelo relutou um pouco, mas contou. Ele fugiu um dia depois de ter ido pela primeira vez na casa da Ângela. Para conhecer os pais.
- Ah, você não se deu bem com o sogro, foi isso?
Não, não foi isso. Tinham se dado super bem. Os pais dela eram ótimas pessoas e, para a sua surpresa, gostaram dele. Quando a Ângela tinha se retirado para lavar a louça, o Marcelo não resistiu e parabenizou-os. Pelo quê?, perguntaram. Por terem feito ela, oras! Todos riram, enfim, estavam todos de bem com a vida.
- E então, o que aconteceu?
Depois do almoço, a Ângela convidou-o para visitar o seu atelier. Nesse ponto, o Marcelo deu uma pausa. Não sabia se queria continuar contando. A lembrança era terrível demais. Se soubesse que a sua vida estava prestes a ser destruída, disse ele, nunca teria entrado naquele atelier. Viveria feliz para sempre, com a Ângela, amando-a até o fim da vida. Contanto que não entrasse nunca no atelier. Os amigos pediram para ele ser forte. Marcelo respirou fundo e continuou a história. Desceram para o atelier, que ficava no porão da casa. Ângela estava muito entusiasmada; queria mostrar a sua série de quadros para Marcelo. Tratava-se de uma série de releituras de uma mesma obra sua: O Falo.
- Por "falo" você quer dizer...
- Isso mesmo.
Então Ângela ligou a luz do porão e Marcelo teve a visão que destruiu a sua vida: quadros e mais quadros retratando falos e mais falos. Enquanto Marcelo observava atônito, Ângela explicava que esta série era uma obsessão sua. Como Monet e as suas pinturas da catedral. Não sabia por quê, mas tinha aquele impulso de pintar falos. Pintava-os e repintava-os e então pintava mais. Eram a sua temática preferida. Ângela, sorrindo, perguntou para Marcelo o que ele achou. Marcelo estava mudo. Não queria olhar para os quadros, mas não conseguia desviar os olhos. Como quando se olha um acidente de trânsito. Aqueles falos eram o acidente da sua vida. Deu um jeito de sair dali. No dia seguinte, foi para o mosteiro.
- Vocês entendem? Existem três coisas sobre as quais eu baseio a minha vida: a Terra é redonda, o céu é azul e a Ângela é pura como um anjo. Só que eu descobri que ela é um anjo pornográfico. Que nem o Nelson Rodrigues, o do "Bonitinha mas Ordinária," sabem?
Marcelo contou que sentiu como se tivessem puxado um tapete sob seus pés. Perdera totalmente os seus pontos de referência, se sentira totalmente desnorteado. O mundo estava louco, não estava fazendo sentido nenhum. Decidira entrar em profunda meditação e se desconectar do plano material da existência. Aquele mundo não era mais para ele.
- Agora, se vocês me dão licença, eu gostaria de continuar a me fundir com o nada.
Resolveram deixar o Marcelo no mosteiro; notaram que era um caso perdido. Saíram de lá discutindo a descoberta. Mas que coisa, a Ângela, com aquela cara de santa... realmente perturbador. Mas, ao invés de se internar num mosteiro como o Marcelo, acharam melhor esquecer da descoberta tomando umas cervejas.

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