A história é sempre uma versão da história. É a versão do narrador. Quando lemos um livro, não estamos acompanhando uma história em primeira mão, estamos acompanhando o narrador dizer o que aconteceu. Um livro é sempre um relato. É impossível escrever um livro sem narrador: mesmo onisciente, este existe. Foi ele quem presenciou a história, não nós. Estamos lendo as suas impressões, as suas observações. A presença do narrador impossibilita um contato direto do leitor com a história. Ele sempre estará lá, como um penetra, entre nós e o fato. O que faz dele um cara muito suspeito. Como confiar se o que o narrador diz é verdade? Não temos escolha, só há a versão dele. Caso o narrador seja onisciente, é mais suspeito ainda: como eu vou acreditar na história de um cara que nem revela quem é? Como vou saber se ele realmente viu tudo aquilo, se não há registros de sua existência? Muito suspeito.
Exemplo clássico: Dom Casmurro. Na obra temos somente a versão de Bentinho, que é a de que sua mulher o traiu. Se o narrador diz, é porque deve ser verdade. Quando questionaram a veracidade do narrador em Dom Casmurro, os estudiosos da literatura botaram em xeque todo o sistema de narrativa literária construído pelo homem. De repente, o narrador não era mais confiável. Passaríamos a ler os livros com uma pontinha de desconfiança, sempre nos perguntando se foi bem assim mesmo. Isso implicaria em muitas questões metafísicas, pois, se mesmo uma história de ficção pode não ter acontecido bem assim, então o que é real? Se a mentira admitida não é verdade, o que é? Sem saber, Bentinho abriu espaço para questionamentos metafísicos que vão desde a existência de Deus até a margarina diet. É margarina? É plástico? Como saber?
Há ainda um terceiro fator em Dom Casmurro, que é o de que Bentinho poderia, em sua culpa, estar ele mesmo se enganando da verdade. Por querer acreditar que fez o certo, contava a hipótese como verdade absoluta, como forma de autoafirmação, enganando a si mesmo e a nós por tabela. Os únicos que saberiam ao certo seriam Capitu e o próprio autor, Machado de Assis. Neste caso, Assis é o grande culpado. Ele poderia ter com a mesma facilidade escolhido Capitu para ser a narradora, alguém com muito mais crédito para contar a verdadeira história. Ao invés disso, escolheu o marido enciumado, o marido responsável pela desgraça da mulher. O autor é cúmplice de Bentinho em suas ações. Escolhendo a sua versão como a oficial, ele colabora com o crime, um crime ficcional, mas nesse jogo de mentiras e verdades, quem vai saber?
O autor é um cúmplice do narrador, pois escolhe a versão deste em detrimento de outras. Que seriam dos livros se outros personagens fossem os narradores? E se Capitu narrasse? Se Long John Silver fosse o narrador da Ilha do Tesouro, ele ainda seria um pirata desprezível ou seria um libertador da tripulação, amotinada por maus-tratos do antigo capitão? Não há registros desses maus-tratos no livro, mas é Jim Hawkins o narrador, e, como ele era o queridinho do capitão, seria muito fácil omitir algumas informações comprometedoras. Será que Sauron era um cara tão mau assim? Vai ver era o contrário, eram os hobbits os vilões e nós fomos acreditar na versão dos vencedores.
Jesus Cristo teve a sua vida escrita por quatro apóstolos diferentes. São quatro pontos de vista de uma mesma história. Sem notar, Mateus, Marcos, Lucas e João solucionaram o problema criado por Machado de Assis mais de um milênio depois. Uma história com multinarradores. Sem dúvida, homens muito à frente do seu tempo. Este é o futuro da literatura: livros com multinarradores. Pra ser justa, cada obra precisa ser narrada por todos os personagens envolvidos. Até os figurantes, que, por não estarem envolvidos diretamente, são até mais confiáveis. Sim, dá uma mão desgraçada escrever tudo isso. Mas é necessário. Quem disse que é fácil ser justo?
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Tarantino
Vi um cara na rua com uma camiseta do filme Cães de Aluguel com a frase "Every dog has it's day". Fiquei pensando que, como os cães do título são os assaltantes contratados, faria mais sentido se eles tivessem o nome de raças de cachorro ao invés de cores. Casaria perfeitamente. Será que o Tarantino deixou passar essa? Pouca coisa teria que mudar. No máximo algumas falas.
CHEFE: - Muito bem: você vai ser o Mr. Husky, você o Mr. Schnauzer, você o Mr. Dobermann, você o Mr. Foxhound, você o Mr. Chiuaua e você o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ei, eu não quero ser o Mr. Poodle!
MR. CHIUAUA: - Ei, você está reclamando? Eu sou o Mr. Chiuaua. É quase um Mr. Merda.
MR. POODLE: - Por que não podemos escolher nossos próprios nomes?
CHEFE: - Não dá certo. Se eu deixasse, vocês iriam ficar brigando para ver quem fica com o Mr. Pit Bull. Eu escolho. Você é o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ao menos Mr. Yorkshire. Eu vou ser o Mr. Yorkshire.
CHEFE: - Não dá, já tem um cara em outra missão que é o Mr. Yorkshire. Você é o Mr. Poodle.
MR. FOXHOUND: - Cara, tanto faz qual é o seu nome.
MR. POODLE: - Ah, muito fácil pra você dizer, o seu nome é o mais legal, Mr. Foxhound!
***
Temos Tarantino. E com Tarantino, temos Pulp Fiction. E Kill Bill, e Cães de Aluguel, e mais recentemente Bastardos Inglórios. Mais ou menos nessa ordem. Mas ninguém se lembra de Jackie Brown. Ou, no máximo, lembram-no como o filme que tem o Robert de Niro interpretando um cara que fica sentado num sofá. Jackie Brown não tem cenas sangrentas como os outros filmes, nem, até onde eu me lembro, nenhum Impasse Mexicano, ou seja lá como chamam aquele negócio de todos os personagens se apontarem armas ao mesmo tempo. E justamente por isso deveria levar o crédito que não recebe. É uma tentativa de Tarantino fazer um filme de Tarantino sem ser Tarantino. E ele consegue, apesar de isso ser meio que um paradoxo. Jackie Brown não tem as características dos seus outros filmes, mas dá para sentir a ironia do diretor nas cenas, nos seus personagens. E é um bom filme. Eu gosto mais de Jackie Brown inclusive que muitos clássicos do diretor. Se você já viu e achou sem graça, dê mais uma chance, mas dessa vez sem esperar por um Pulp Fiction dois. Tarantino agradeceria.
Agora, Bastardos Inglórios é o filme. Me desculpem os fãs de Pulp Fiction, mas esta é a obra-prima do Quentin. É o mais engraçado, tem os melhores atores e é magistralmente dirigido. O final poderia ter sido feito por uma criança de 7 anos, é verdade, mas isso é natural do diretor. Quando se trata de cinema, Tarantino é uma criança deslumbrada, que se comporta como se estivesse num parque de diversões. No cinema, tudo é possível, até alterar a História. Quentin não vai se prender a regras como veracidade histórica, pois elas limitam a diversão, a dele e a nossa. Ele vai fazer o que achar mais divertido. E se isso quer dizer, por exemplo, matar metade do elenco em uma cena, ele o fará. O que não surpreende, pois todo mundo já espera que o elenco inteiro morra até o final do filme.
***
Faça o seu filme de Tarantino:
- Dê um jeito de conseguir o Samuel L. Jackson. Nem que seja a voz dele.
- Divida seu filme em capítulos.
- Armas.
- Certifique-se de que o sangue jorra em jatos.
- Armas apontando umas para as outras.
- Coloque referências à cultura pop. Não se preocupe: por mais obscura que ela seja, sempre haverá alguém na internet que a entenderá.
- Comédia violenta é como uma roleta: você deixa violento demais até deixar de ser engraçado, aí você deixa ainda mais violento que a roleta dá a volta completa e volta a ser engraçado de novo.
- Redija um diálogo sobre hambúrgueres, massagens ou algo que pareça sem sentido, mas que, a uma segunda análise, pareça inteligente. Com uma terceira análise, vê-se que na verdade não havia sentido, mesmo.
- Lembre-se: palavrões são seus amigos. Use vários.
- Se até as velhinhas no seu filme estão falando palavrões, é porque você está no caminho certo.
- Se palavrões são seus amigos, sangue é a sua amante. E ela gosta de ser abusada.
- J-rock e Nancy Sinatra combinam? Ah, combinam.
- Quanto mais obscura a trilha sonora, melhor. E se contiver referências pop, melhor ainda.
- Se, ao final do filme, mais de um quarto do elenco sobreviveu, você fez algo errado.
- Se o filme fizer sucesso, o seu próximo será um fracasso. Mas o depois deste será um sucesso.
***
Quentin inaugurou um novo gênero de cinema, uma espécie de "gore-comedy", filmes com diálogos beirando o cômico e o filosófico e uma violência ultrarealista, que de tão exagerada não tem como ser levada a sério. Quando se entende isso, não há como achar seus filmes pesados. É o que diferencia o mau gosto do humor negro. Se Tarantino fizesse as suas cenas com o intuito de causar repúdio ao espectador, seus filmes seriam de mau gosto, mas não é o caso. Ao contrário, eles não causam repúdio e sim fascinação, principalmente aos seus milhares de fãs. Longa vida a Tarantino.
CHEFE: - Muito bem: você vai ser o Mr. Husky, você o Mr. Schnauzer, você o Mr. Dobermann, você o Mr. Foxhound, você o Mr. Chiuaua e você o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ei, eu não quero ser o Mr. Poodle!
MR. CHIUAUA: - Ei, você está reclamando? Eu sou o Mr. Chiuaua. É quase um Mr. Merda.
MR. POODLE: - Por que não podemos escolher nossos próprios nomes?
CHEFE: - Não dá certo. Se eu deixasse, vocês iriam ficar brigando para ver quem fica com o Mr. Pit Bull. Eu escolho. Você é o Mr. Poodle.
MR. POODLE: - Ao menos Mr. Yorkshire. Eu vou ser o Mr. Yorkshire.
CHEFE: - Não dá, já tem um cara em outra missão que é o Mr. Yorkshire. Você é o Mr. Poodle.
MR. FOXHOUND: - Cara, tanto faz qual é o seu nome.
MR. POODLE: - Ah, muito fácil pra você dizer, o seu nome é o mais legal, Mr. Foxhound!
***
Temos Tarantino. E com Tarantino, temos Pulp Fiction. E Kill Bill, e Cães de Aluguel, e mais recentemente Bastardos Inglórios. Mais ou menos nessa ordem. Mas ninguém se lembra de Jackie Brown. Ou, no máximo, lembram-no como o filme que tem o Robert de Niro interpretando um cara que fica sentado num sofá. Jackie Brown não tem cenas sangrentas como os outros filmes, nem, até onde eu me lembro, nenhum Impasse Mexicano, ou seja lá como chamam aquele negócio de todos os personagens se apontarem armas ao mesmo tempo. E justamente por isso deveria levar o crédito que não recebe. É uma tentativa de Tarantino fazer um filme de Tarantino sem ser Tarantino. E ele consegue, apesar de isso ser meio que um paradoxo. Jackie Brown não tem as características dos seus outros filmes, mas dá para sentir a ironia do diretor nas cenas, nos seus personagens. E é um bom filme. Eu gosto mais de Jackie Brown inclusive que muitos clássicos do diretor. Se você já viu e achou sem graça, dê mais uma chance, mas dessa vez sem esperar por um Pulp Fiction dois. Tarantino agradeceria.
Agora, Bastardos Inglórios é o filme. Me desculpem os fãs de Pulp Fiction, mas esta é a obra-prima do Quentin. É o mais engraçado, tem os melhores atores e é magistralmente dirigido. O final poderia ter sido feito por uma criança de 7 anos, é verdade, mas isso é natural do diretor. Quando se trata de cinema, Tarantino é uma criança deslumbrada, que se comporta como se estivesse num parque de diversões. No cinema, tudo é possível, até alterar a História. Quentin não vai se prender a regras como veracidade histórica, pois elas limitam a diversão, a dele e a nossa. Ele vai fazer o que achar mais divertido. E se isso quer dizer, por exemplo, matar metade do elenco em uma cena, ele o fará. O que não surpreende, pois todo mundo já espera que o elenco inteiro morra até o final do filme.
***
Faça o seu filme de Tarantino:
- Dê um jeito de conseguir o Samuel L. Jackson. Nem que seja a voz dele.
- Divida seu filme em capítulos.
- Armas.
- Certifique-se de que o sangue jorra em jatos.
- Armas apontando umas para as outras.
- Coloque referências à cultura pop. Não se preocupe: por mais obscura que ela seja, sempre haverá alguém na internet que a entenderá.
- Comédia violenta é como uma roleta: você deixa violento demais até deixar de ser engraçado, aí você deixa ainda mais violento que a roleta dá a volta completa e volta a ser engraçado de novo.
- Redija um diálogo sobre hambúrgueres, massagens ou algo que pareça sem sentido, mas que, a uma segunda análise, pareça inteligente. Com uma terceira análise, vê-se que na verdade não havia sentido, mesmo.
- Lembre-se: palavrões são seus amigos. Use vários.
- Se até as velhinhas no seu filme estão falando palavrões, é porque você está no caminho certo.
- Se palavrões são seus amigos, sangue é a sua amante. E ela gosta de ser abusada.
- J-rock e Nancy Sinatra combinam? Ah, combinam.
- Quanto mais obscura a trilha sonora, melhor. E se contiver referências pop, melhor ainda.
- Se, ao final do filme, mais de um quarto do elenco sobreviveu, você fez algo errado.
- Se o filme fizer sucesso, o seu próximo será um fracasso. Mas o depois deste será um sucesso.
***
Quentin inaugurou um novo gênero de cinema, uma espécie de "gore-comedy", filmes com diálogos beirando o cômico e o filosófico e uma violência ultrarealista, que de tão exagerada não tem como ser levada a sério. Quando se entende isso, não há como achar seus filmes pesados. É o que diferencia o mau gosto do humor negro. Se Tarantino fizesse as suas cenas com o intuito de causar repúdio ao espectador, seus filmes seriam de mau gosto, mas não é o caso. Ao contrário, eles não causam repúdio e sim fascinação, principalmente aos seus milhares de fãs. Longa vida a Tarantino.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
O fim do ano está aí
"O fim do ano está aí" era uma frase que um antigo professor de Ciências meu costumava usar frequentemente, como uma ameaça. Olhem, crianças, o fim do ano está aí, é melhor começar a estudar. Ele adorava fazer esse tipo de terrorismo com os alunos. Ensinava-os a desenvolver disciplina e stress crônico desde cedo. Gostava tanto da frase que, boatos dizem, a usou certa vez até no primeiro dia de aula. O que, particularmente, me parece um exagero.
Essa introdução é pra lembrar que, sim, o fim do ano está aí, é hoje, mais especificamente. Mas isso não deve soar como uma ameaça, e sim como algo bom. Não que 2009 tenha sido um ano ruim, foi de fato um ano espetacular, mas ano que vem tem Copa do Mundo, tem recuperação econômica da crise e acabam os filmes do Crepúsculo. Ou seja, será o último ano em que veremos índices econômicos negativos e torsos masculinos desnudos. Daí pra frente é só alegria.
Mas! O ano ainda não acabou. Faltam algumas horinhas, e, nessas últimas horas do ano (e não da década, como muitos pensam, pois esta oficialmente só acaba no fim de 2010), enquanto a festa de reveillón não começa, você pode matar tempo votando nas suas crônicas preferidas do blog "O Gato Sério" na enquete ao lado. É possível votar em quantas alternativas quiserem, mas, por favor, segurem seu ímpeto de querer votar em todas, eu sei que vocês amam todos os textos, mas isso faria o processo todo inútil. Isso foi uma piada. Achei importante avisar.
Se você ler isso depois do ano novo, em primeiro lugar, feliz 2010, em segundo lugar, não se acanhe em votar. E, se possível, eleja também os melhores de 2009 nas categorias abaixo:
Categoria Escândalo político livre de punição do ano: mais um ano cheio de opções! Que bom! Escolha:
- Yeda e seu pufe verde-kiwi.
- Sarney e sua ninhada de parentes.
- Arruda e o dinheiro na cueca.
Categoria Morte do ano: vixe... essa lista é longa:
- Lombardi
- Michael Jackson
- David Carradine
- Brittany Murphy
- Alborghetti
- A reputação dos Raimundos
e mais um monte de gente que eu esqueci.
Categoria Filme do ano:
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.
Categoria Surpresa do ano:
- Lady Gaga é um homem (!)
- Belchior encontrado no Uruguai (surpresa!)
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.
Categoria Vergonha do ano:
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.
- A Cúpula Mundial Climática.
- A Vanusa.
Feliz ano novo pra todo mundo!
Essa introdução é pra lembrar que, sim, o fim do ano está aí, é hoje, mais especificamente. Mas isso não deve soar como uma ameaça, e sim como algo bom. Não que 2009 tenha sido um ano ruim, foi de fato um ano espetacular, mas ano que vem tem Copa do Mundo, tem recuperação econômica da crise e acabam os filmes do Crepúsculo. Ou seja, será o último ano em que veremos índices econômicos negativos e torsos masculinos desnudos. Daí pra frente é só alegria.
Mas! O ano ainda não acabou. Faltam algumas horinhas, e, nessas últimas horas do ano (e não da década, como muitos pensam, pois esta oficialmente só acaba no fim de 2010), enquanto a festa de reveillón não começa, você pode matar tempo votando nas suas crônicas preferidas do blog "O Gato Sério" na enquete ao lado. É possível votar em quantas alternativas quiserem, mas, por favor, segurem seu ímpeto de querer votar em todas, eu sei que vocês amam todos os textos, mas isso faria o processo todo inútil. Isso foi uma piada. Achei importante avisar.
Se você ler isso depois do ano novo, em primeiro lugar, feliz 2010, em segundo lugar, não se acanhe em votar. E, se possível, eleja também os melhores de 2009 nas categorias abaixo:
Categoria Escândalo político livre de punição do ano: mais um ano cheio de opções! Que bom! Escolha:
- Yeda e seu pufe verde-kiwi.
- Sarney e sua ninhada de parentes.
- Arruda e o dinheiro na cueca.
Categoria Morte do ano: vixe... essa lista é longa:
- Lombardi
- Michael Jackson
- David Carradine
- Brittany Murphy
- Alborghetti
- A reputação dos Raimundos
e mais um monte de gente que eu esqueci.
Categoria Filme do ano:
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.
- Bastardos Inglórios.
Categoria Surpresa do ano:
- Lady Gaga é um homem (!)
- Belchior encontrado no Uruguai (surpresa!)
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.
Categoria Vergonha do ano:
- O fato de que uma minissaia rende mais assunto na tevê que a Cúpula Mundial Climática.
- A Cúpula Mundial Climática.
- A Vanusa.
Feliz ano novo pra todo mundo!
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Reportagens
Há exatos 5 anos, Jaqueline Silveira era uma jovem como qualquer outra: preocupada em terminar o segundo grau e indecisa sobre seu futuro. Vivia a famosa crise dos 17, de decidir o que fazer da vida, quando teve um estalo: iria ser profissional do sexo.
- Eu estava indecisa entre Biologia e Medicina - conta Jaqueline, sentada no pufe da sala de seu apartamento na zona nobre da cidade. - aí eu descobri essa profissão. Fui me informar e gostei. É uma carreira que proporciona muito contato humano. Não é aquele trabalho frio, de ficar fechada numa sala, de frente para um computador, isolada. Não gosto disso. Eu gosto é de lidar com pessoas, de conhecer gente nova todos os dias. É muito emocionante. - Conhecer, nesse caso, inclusive no sentido bíblico do termo.
Jaqueline conta que na época procurou em todas as faculdades por um curso que pudesse lhe ajudar na carreira, mas não achou:
- Acho uma grave deficiência nas universidades brasileiras, essa de não haver uma faculdade voltada para essa área. Tem gente que acha que é uma profissão fácil, qualquer um pode ser. Não é assim. O mercado está muito saturado. Tem uma profissional do sexo em cada esquina. Literalmente. A saída é se especializar, se qualificar, mas como fazer isso sem uma faculdade voltada para nós?
A saída foi estudar sozinha. Jaqueline passou a aprender por conta própria sobre comércio e marketing. "Afinal", conta ela, "não deixo de ser uma comerciante, né? Tenho que mostrar que o meu produto é melhor que o das outras".
Fora isso, uma boa profissional precisa se manter atualizada.
- Leio todas as obras de sexologia e sexualidade que consigo por as mãos. Já li todos os manuais sexuais publicados este ano, incluindo as "50 Maneiras de Amar com os Pés", do dr. Phil Steinberg. Recomendo.
Ainda assim, prefere os clássicos:
- Leio e releio o Kama Sutra direto. É o meu livro de cabeceira.
Investir em todo esse material não sai barato. Além disso, Jaqueline possui um plano estendido na academia e uma nutricionista para cuidar do corpo. Seu empenho fez com que pudesse ser aceita em uma das grandes casas do ramo de profissionais do sexo, de projeção internacional. Resolveu que era importante cursar inglês, francês e alemão, pois clientes estrangeiros são comuns.
- Inglês eu estou bem, francês eu arranho um pouco. Alemão eu comecei faz pouco, mas já aprendi o básico, hündchenstellung, ga sneller, niet op de anus, essas coisas.
Ela confessa que foi um sufoco convencer os pais a pagarem esses cursos, mas Jaqueline convenceu-os de que era importante para construir seu futuro. Hoje, ganha mais de 500 R$ por dia de trabalho e se sustenta sozinha. Mas não para por aí:
- Eu quero ir mais além. Não porque necessito de mais dinheiro, mas porque quero crescer como profissional. Quero ser a melhor do meu ramo.
E para isso estuda muito. E pratica é claro, pois não testa nada de novo sem antes aperfeiçoar à exaustão. Para isso pede ajuda a seus amigos.
- É um trabalho que não pode ser aperfeiçoado sozinho, então ela pede uma ajuda minha - diz Francisco Moura, um amigo de Jaqueline, brilhando de suor. - agora mesmo estava ajudando ela a mestrar uma nova posição que ela aprendeu. Ela fica meio chateada de me roubar tempo com isso, mas eu digo que não tem problema - abre um grande sorriso - amigo é pra essas coisas.
***
Henrique Boal tem uma frase que define sua vida:
- O bem estar dos outros é o meu bem estar.
Seu trabalho de médico cirurgião consome muito tempo, mas sempre arruma algum para fazer trabalhos de caridade. Rico e bem sucedido, é só com isso o que se importa:
-Eu consegui tudo o que quis na vida: sucesso, dinheiro, mulheres. Agora é hora de ajudar quem não conseguiu. - explica.
Mas seu pouco tempo livre precisa ser bem administrado. Ele mesmo explica:
- O serviço me consome muito tempo, então não posso fazer tudo o que queria. Tenho que me concentrar em ajudar quem não recebe amparo algum. Crianças carentes e mendigos possuem várias ongs que os apoiam. Se também eu trabalhasse com eles, sei lá, sinto como se desperdiçasse meu tempo com algo que já está sendo resolvido.
Boal conta que estava numa festa, onde foi levado "meio que à força" por amigos que insistiam que ele precisava se divertir, quando viu algo que o direcionou para o seu caminho:
- Estava eu então nessa festa, com a mente absorta nesses assuntos, quando vi uma mulher, sentada não muito distante. Gordinha, feinha, sem graça. Estava cabisbaixa, nenhum homem se aproximava dela. Daí veio o estalo. Essa mulher estava carente. Ela precisava de ajuda. Minha ajuda!
Boal se aproximou da mulher, puxou conversa e poucas horas depois estavam num motel.
- Dei tudo de mim. Ela disse que foi a melhor experiência de sua vida - conta, feliz.
Decidiu formar uma ong, a AD, ou Amigos do Dragão. Toda a semana o grupo sai pelas festas prestando caridade a mulheres desamparadas de amor masculino. Para Boal, não importa o quão repelente a mulher possa ser: se ela está necessitada, um dos ADs deverá ajudá-la. Mas admite que já ocorreram complicações:
- Às vezes tem uma mulher que o cara acha que encara, mas lá pelo meio do trabalho vê que não vai aguentar o tranco, aí tenta passar pra outro colega. Eu acho isso uma vergonha: o homem se comprometeu a fazer um trabalho, ele deve dar cabo dele até o fim.
Em ocasiões assim, normalmente o próprio Boal termina o serviço, pra dar o exemplo.
- Eu encaro qualquer uma mesmo. Estou aí pra isso. - diz, orgulhoso.
***
A Igreja Pentagonal do Capital do Reino de Deus poderia ser uma igreja evangélica como qualquer outra. Não é. Há algum tempo essa igreja vem atraindo mais e mais fiéis com um discurso diferente. Nossa equipe foi presenciar uma missa regida pelo responsável, Padre Ciço, para tentar desvendar esse mistério.
A igreja estava lotada. A maioria dos presentes era de gente simples, humilde e pobre. À frente de todos, como num palco, Ciço desenvolvia o seu sermão:
- Gente, vou contar uma coisa pra vocês, uma história muito triste. Estava eu, passando por uma loja, essas lojas que vendem tv de plasma, e resolvi entrar. Achei uma televisão linda, linda, minha gente, linda como a graça do Senhor. Quarenta e duas polegadas, tela plana, linda como a graça do Senhor, minha gente. Mas ouçam! O vendedor quis me vender a tv por três mil reais. Eu tentei convencê-lo de que era um simples servo do Senhor, que estava nessa terra, minha gente, para fazer cumprir a Sua palavra, e que por isso precisava de uma tv de plasma, mas ele não me ouviu. Ele não tem o espírito de Jesus com ele, minha gente. Ele não quis me dar um desconto. Isso é muito triste, muito triste, minha gente. Muito triste. Por isso, meus queridos fiéis, eu vou passar a cesta agora, e vocês vão doar o que podem, para o Padre Ciço poder comprar a tv dele, tá bem? Vamos ajudar o Padre Ciço a comprar a tv dele.
Os fiéis doam quantias absurdas, bem mais do que parecem poder pagar, mas não se arrependem.
- Eu doo mesmo - diz o aposentado Laurindo Costa, 66 anos. - O Padre Ciço me mostrou que a salvação se consegue através da ajuda ao próximo. Então, eu estou ajudando ele.
Depois da missa, o Padre Ciço fala um pouco conosco sobre a Igreja:
- O povo ajuda porque vê que é verdadeiro. A gente nunca mente para os fiéis. Ensinamos que Jesus salva quem ajuda ao próximo, e pedimos a ajuda deles para comprar as nossas coisas. Não somos como as outras Igrejas, que dizem que o dízimo vai para um lugar e depois pega o dízimo para si. A gente não mente nunca. A gente pega pra nós e diz. O povo valoriza a sinceridade.
Mas será que todos entendem a mensagem da igreja? Padre Ciço fala que a maior parte sim. A outra parte ouve o nome de Jesus Cristo e vai correndo doar dinheiro sem saber o que é, mas aí, diz ele, "não é nossa culpa".
- Já tentaram nos processar. Não estamos fazendo nada de ilegal. O meu advogado comprova.
- Realmente, eles não fazem nada de ilegal - explica Carlos Manuel de Andrade, advogado de Padre Ciço e, curiosamente, também seu primo. - O destino do dízimo é claramente explicitado durante as missas. Depois, temos até as notas fiscais das compras para provar que o destino foi aquele mesmo. Carros, apartamentos, temos todos os gastos comprovados. Com licença, meu celular.
Andrade atende o seu celular. É o Padre Ciço. Eles conversam animadamente.
- Desculpe, era o primo me convidando pra ir no El Segredo. A Jaqueline trabalha lá hoje, eu não posso perder. Mas então, onde estávamos? Ah, sim, tudo dentro da lei. É um trabalho sério, não é falcatrua.
Estranho ou não, o número de fiéis da igreja cresce a cada dia. E a cada dia Padre Ciço faz um sermão mais acalorado:
- Minha gente, estou decepcionado. Ontem vocês não me deram dinheiro suficiente para comprar a tv de plasma. Jesus está vendo que vocês não estão se sacrificando por ele e pelos seus irmãos. Jesus não gosta disso. Vocês querem que eu, o Padre Ciço, que vem aqui todo o dia para auxiliar vocês, que me doo tanto para falar com vocês, que ajudo vocês a alcançarem a Salvação! Vocês querem que eu continue com a minha tv velha de 29 polegadas? Que vergonha. Deus está olhando.
- Eu estava indecisa entre Biologia e Medicina - conta Jaqueline, sentada no pufe da sala de seu apartamento na zona nobre da cidade. - aí eu descobri essa profissão. Fui me informar e gostei. É uma carreira que proporciona muito contato humano. Não é aquele trabalho frio, de ficar fechada numa sala, de frente para um computador, isolada. Não gosto disso. Eu gosto é de lidar com pessoas, de conhecer gente nova todos os dias. É muito emocionante. - Conhecer, nesse caso, inclusive no sentido bíblico do termo.
Jaqueline conta que na época procurou em todas as faculdades por um curso que pudesse lhe ajudar na carreira, mas não achou:
- Acho uma grave deficiência nas universidades brasileiras, essa de não haver uma faculdade voltada para essa área. Tem gente que acha que é uma profissão fácil, qualquer um pode ser. Não é assim. O mercado está muito saturado. Tem uma profissional do sexo em cada esquina. Literalmente. A saída é se especializar, se qualificar, mas como fazer isso sem uma faculdade voltada para nós?
A saída foi estudar sozinha. Jaqueline passou a aprender por conta própria sobre comércio e marketing. "Afinal", conta ela, "não deixo de ser uma comerciante, né? Tenho que mostrar que o meu produto é melhor que o das outras".
Fora isso, uma boa profissional precisa se manter atualizada.
- Leio todas as obras de sexologia e sexualidade que consigo por as mãos. Já li todos os manuais sexuais publicados este ano, incluindo as "50 Maneiras de Amar com os Pés", do dr. Phil Steinberg. Recomendo.
Ainda assim, prefere os clássicos:
- Leio e releio o Kama Sutra direto. É o meu livro de cabeceira.
Investir em todo esse material não sai barato. Além disso, Jaqueline possui um plano estendido na academia e uma nutricionista para cuidar do corpo. Seu empenho fez com que pudesse ser aceita em uma das grandes casas do ramo de profissionais do sexo, de projeção internacional. Resolveu que era importante cursar inglês, francês e alemão, pois clientes estrangeiros são comuns.
- Inglês eu estou bem, francês eu arranho um pouco. Alemão eu comecei faz pouco, mas já aprendi o básico, hündchenstellung, ga sneller, niet op de anus, essas coisas.
Ela confessa que foi um sufoco convencer os pais a pagarem esses cursos, mas Jaqueline convenceu-os de que era importante para construir seu futuro. Hoje, ganha mais de 500 R$ por dia de trabalho e se sustenta sozinha. Mas não para por aí:
- Eu quero ir mais além. Não porque necessito de mais dinheiro, mas porque quero crescer como profissional. Quero ser a melhor do meu ramo.
E para isso estuda muito. E pratica é claro, pois não testa nada de novo sem antes aperfeiçoar à exaustão. Para isso pede ajuda a seus amigos.
- É um trabalho que não pode ser aperfeiçoado sozinho, então ela pede uma ajuda minha - diz Francisco Moura, um amigo de Jaqueline, brilhando de suor. - agora mesmo estava ajudando ela a mestrar uma nova posição que ela aprendeu. Ela fica meio chateada de me roubar tempo com isso, mas eu digo que não tem problema - abre um grande sorriso - amigo é pra essas coisas.
***
Henrique Boal tem uma frase que define sua vida:
- O bem estar dos outros é o meu bem estar.
Seu trabalho de médico cirurgião consome muito tempo, mas sempre arruma algum para fazer trabalhos de caridade. Rico e bem sucedido, é só com isso o que se importa:
-Eu consegui tudo o que quis na vida: sucesso, dinheiro, mulheres. Agora é hora de ajudar quem não conseguiu. - explica.
Mas seu pouco tempo livre precisa ser bem administrado. Ele mesmo explica:
- O serviço me consome muito tempo, então não posso fazer tudo o que queria. Tenho que me concentrar em ajudar quem não recebe amparo algum. Crianças carentes e mendigos possuem várias ongs que os apoiam. Se também eu trabalhasse com eles, sei lá, sinto como se desperdiçasse meu tempo com algo que já está sendo resolvido.
Boal conta que estava numa festa, onde foi levado "meio que à força" por amigos que insistiam que ele precisava se divertir, quando viu algo que o direcionou para o seu caminho:
- Estava eu então nessa festa, com a mente absorta nesses assuntos, quando vi uma mulher, sentada não muito distante. Gordinha, feinha, sem graça. Estava cabisbaixa, nenhum homem se aproximava dela. Daí veio o estalo. Essa mulher estava carente. Ela precisava de ajuda. Minha ajuda!
Boal se aproximou da mulher, puxou conversa e poucas horas depois estavam num motel.
- Dei tudo de mim. Ela disse que foi a melhor experiência de sua vida - conta, feliz.
Decidiu formar uma ong, a AD, ou Amigos do Dragão. Toda a semana o grupo sai pelas festas prestando caridade a mulheres desamparadas de amor masculino. Para Boal, não importa o quão repelente a mulher possa ser: se ela está necessitada, um dos ADs deverá ajudá-la. Mas admite que já ocorreram complicações:
- Às vezes tem uma mulher que o cara acha que encara, mas lá pelo meio do trabalho vê que não vai aguentar o tranco, aí tenta passar pra outro colega. Eu acho isso uma vergonha: o homem se comprometeu a fazer um trabalho, ele deve dar cabo dele até o fim.
Em ocasiões assim, normalmente o próprio Boal termina o serviço, pra dar o exemplo.
- Eu encaro qualquer uma mesmo. Estou aí pra isso. - diz, orgulhoso.
***
A Igreja Pentagonal do Capital do Reino de Deus poderia ser uma igreja evangélica como qualquer outra. Não é. Há algum tempo essa igreja vem atraindo mais e mais fiéis com um discurso diferente. Nossa equipe foi presenciar uma missa regida pelo responsável, Padre Ciço, para tentar desvendar esse mistério.
A igreja estava lotada. A maioria dos presentes era de gente simples, humilde e pobre. À frente de todos, como num palco, Ciço desenvolvia o seu sermão:
- Gente, vou contar uma coisa pra vocês, uma história muito triste. Estava eu, passando por uma loja, essas lojas que vendem tv de plasma, e resolvi entrar. Achei uma televisão linda, linda, minha gente, linda como a graça do Senhor. Quarenta e duas polegadas, tela plana, linda como a graça do Senhor, minha gente. Mas ouçam! O vendedor quis me vender a tv por três mil reais. Eu tentei convencê-lo de que era um simples servo do Senhor, que estava nessa terra, minha gente, para fazer cumprir a Sua palavra, e que por isso precisava de uma tv de plasma, mas ele não me ouviu. Ele não tem o espírito de Jesus com ele, minha gente. Ele não quis me dar um desconto. Isso é muito triste, muito triste, minha gente. Muito triste. Por isso, meus queridos fiéis, eu vou passar a cesta agora, e vocês vão doar o que podem, para o Padre Ciço poder comprar a tv dele, tá bem? Vamos ajudar o Padre Ciço a comprar a tv dele.
Os fiéis doam quantias absurdas, bem mais do que parecem poder pagar, mas não se arrependem.
- Eu doo mesmo - diz o aposentado Laurindo Costa, 66 anos. - O Padre Ciço me mostrou que a salvação se consegue através da ajuda ao próximo. Então, eu estou ajudando ele.
Depois da missa, o Padre Ciço fala um pouco conosco sobre a Igreja:
- O povo ajuda porque vê que é verdadeiro. A gente nunca mente para os fiéis. Ensinamos que Jesus salva quem ajuda ao próximo, e pedimos a ajuda deles para comprar as nossas coisas. Não somos como as outras Igrejas, que dizem que o dízimo vai para um lugar e depois pega o dízimo para si. A gente não mente nunca. A gente pega pra nós e diz. O povo valoriza a sinceridade.
Mas será que todos entendem a mensagem da igreja? Padre Ciço fala que a maior parte sim. A outra parte ouve o nome de Jesus Cristo e vai correndo doar dinheiro sem saber o que é, mas aí, diz ele, "não é nossa culpa".
- Já tentaram nos processar. Não estamos fazendo nada de ilegal. O meu advogado comprova.
- Realmente, eles não fazem nada de ilegal - explica Carlos Manuel de Andrade, advogado de Padre Ciço e, curiosamente, também seu primo. - O destino do dízimo é claramente explicitado durante as missas. Depois, temos até as notas fiscais das compras para provar que o destino foi aquele mesmo. Carros, apartamentos, temos todos os gastos comprovados. Com licença, meu celular.
Andrade atende o seu celular. É o Padre Ciço. Eles conversam animadamente.
- Desculpe, era o primo me convidando pra ir no El Segredo. A Jaqueline trabalha lá hoje, eu não posso perder. Mas então, onde estávamos? Ah, sim, tudo dentro da lei. É um trabalho sério, não é falcatrua.
Estranho ou não, o número de fiéis da igreja cresce a cada dia. E a cada dia Padre Ciço faz um sermão mais acalorado:
- Minha gente, estou decepcionado. Ontem vocês não me deram dinheiro suficiente para comprar a tv de plasma. Jesus está vendo que vocês não estão se sacrificando por ele e pelos seus irmãos. Jesus não gosta disso. Vocês querem que eu, o Padre Ciço, que vem aqui todo o dia para auxiliar vocês, que me doo tanto para falar com vocês, que ajudo vocês a alcançarem a Salvação! Vocês querem que eu continue com a minha tv velha de 29 polegadas? Que vergonha. Deus está olhando.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Impressões de Copenhague
Vergonha. É isso o que ficou da COP 15, e é isso o que ficará nos livros de história. Como eu temia, os líderes mundiais deixaram o dever de casa para ser feito muito tarde e não conseguiram terminá-lo. Sim, eu já esperava que fosse um fracasso, mas não uma palhaçada. O que aconteceu lá foi uma palhaçada para entrar para a história.
Acho que os líderes mundiais julgaram mal a dimensão do problema. Caso contrário, eles não teriam deixado para aparecer somente na última semana da reunião, para dar uma olhadela no que os diplomatas decidiram, balançar a cabeça positivamente e ficar com as glórias. A maioria chegou lá nos últimos dias para descobrir que os diplomatas não chegaram a consenso algum. Opa, devem ter pensado. Como nada de concreto fora decidido até ali, tiveram eles mesmos, faltando quatro dias para o término do evento, que discutir entre si para chegar num acordo. Caso contrário, as suas imagens políticas ficariam manchadas. Ah é, e as calotas polares iriam derreter.
Mas, olhem só que surpresa, quatro dias foi pouco tempo para elaborar um acordo mundial. Os países desenvolvidos e os em desenvolvimento ficaram batendo na mesma tecla de divisão de responsabilidades e não chegaram a lugar algum. Os subdesenvolvidos queriam que a responsabilidade de cortar emissões fosse só dos ricos. Só que Índia, China e Brasil poluem mais que a maioria dos países ricos. Eles necessitam de freios nessas emissões, senão de nada adianta o resto do mundo parar de poluir. Vejam, aí é que está a beleza da coisa: aquecimento global é um problema que, se o mundo todo não cooperar, o mundo todo (perdoem o termo) se fode. Agora não é mais hora de achar quem é o culpado. Sim, os EUA poluíram mais que nós e mesmo assim nós temos que cortar nossas emissões, é uma merda, mas o planeta não vê o responsável. Ele vai dar o troco em todos, esteja ele poluindo há vinte ou duzentos anos. Por isso, sim, cortes de emissão obrigatórios para países em desenvolvimento, sou a favor.
Mas, aí está onde eu queria chegar, tivemos, sim, um acordo em Copenhague. Por ser um acordo, e não um tratado, ele não tem valor legal, ou seja, quem assinar e não cumprir não vai ser cobrado. Deixe-me acompanhá-los através dos pontos desse acordo:
EUA e China ficaram bem felizes, pois o acordo lhes mandava fazer bem menos do que estavam sendo cobrados pela comunidade mundial. Falando em comunidade mundial, esta teve pouca interferência no acordo, que foi feito em cima da hora por meia dúzia de países. Danem-se as negociações, não é mesmo? Era isso o que os EUA estavam dispostos a oferecer; é pegar ou largar. O mundo largou. Quase ninguém reconheceu o tal tratado.
***
Essa não foi a única vergonha da COP 15. Uma palhaçada completa tem que ser completa em todos os níveis. Aí vão as minhas falhas preferidas:
Organização do evento: brasileiros, não temam mais em passar vergonha na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas. Pra quem achava que o Brasil não tem competência para organizar eventos mundiais, a COP 15 deve ter proporcionado um grande alívio. Porque os noruegueses, eles, tão desenvolvidos, com um IDH tão alto, a nação mais evoluída do mundo, também não conseguem. Confusão na distribuição de passes para os debates (que em alguns casos deixou representantes dos países de fora das discussões), reação policial aos manifestantes digna de um Rio de Janeiro e o pedido de demissão da presidente da cúpula no meio do evento foram os pontos altos. Aliás, esse negócio da presidente, que deixou sua posição ao afirmar que "o 1º ministro dinamarquês é que deveria mediar a cúpula" me deixou pensando: se isso fosse no Brasil, certamente iria ter gente balançando a cabeça, fazendo tsc tsc e dizendo: só podia ser brasileira.
Barack Obama: na última semana tinha gente dizendo que talvez Obama não comparecesse à Copenhague, mas essas pessoas se esqueciam que ele esteve sim na cidade, inclusive no início da cúpula. Não para debater o clima, mas para receber o Nobel da Paz. No discurso de premiação, citações sobre "guerras justas", que não pegaram bem. Mas isso não entra no mérito da discussão, já que estamos falando sobre a COP 15. Pois bem, Obama foi receber o prêmio e saiu de fininho sem nem passar pela cúpula. Conforme ia ficando evidente que a conferência seria um fiasco, cresceram as dúvidas sobre se Obama iria comparecer nos dias finais. Depois de muito questionamento, ele foi, ficou 24 horas, fez um discurso em tom de ameaça para os países em desenvolvimento, negociou uma proposta pífia e foi embora. Ao invés do Obama conciliador, vimos uma outra face do governante que só agora está ficando aparente. Discursou como se o assunto fosse de interesse só dos outros países e os EUA estivessem concedendo caridade ao ajudar no fundo de combate às mudanças climáticas, quando na verdade estamos todos no mesmo barco. Muito estranho, vindo de um presidente que usava o combate às mudanças climáticas como promessa de governo.
Fuga em massa: esperava-se uma bonita foto com todos os governantes mundiais juntos ao final do evento para selar o suposto acordo ao final da cúpula. Infelizmente essa foto nunca pode ser feita, pois todos debandaram assim que ficou claro o tamanho do desastre em que se meteram. Espertamente, ninguém queria a sua imagem associada a uma vergonha do tamanho da COP 15. A delegação brasileira inteira foi embora, deixando para trás um confuso Carlos Minc para contar o que aconteceu.
Pra não dizer que foi tudo uma vergonha, vale falar bem de quem negociou direito: Sarkozy merece crédito por ser um dos únicos ricos que estava disposto a destravar as negociações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O delegado sudanês Lumumba Di-Aping, presidente do G77, também mostrou fibra ao peitar as grandes economias e por sua nação ser a única africana a recusar assinar um acordo malfeito. Quem saiu-se muito bem também foi o nosso companheiro, presidente Lula. Lula, ao chegar, mostrava-se otimista, mas ao decorrer das negociações percebeu a canoa furada em que todos estavam. O otimismo foi substituído por uma expressão cansada e desgastada. No penúltimo dia, subiu à bancada e fez um discurso criticando a incompetência da cúpula e dos países desenvolvidos em lidar com o problema. Para finalizar, prometeu contribuir com o fundo de apoio, mesmo o Brasil se enquadrando nos países em desenvolvimento. Verdade ou blefe, o discurso serviu para destravar as discussões naquele dia.
***
Apesar de tudo, ainda não acho que é o fim. Dificilmente um acordo sem adesão mundial irá funcionar, o que significa que cedo ou tarde os países vão ter que voltar para a prancheta e fazer algo melhor. Espera-se que até fim do próximo ano as más repercussões de Copenhague constranjam os países a assumir suas responsabilidades. Talvez em Bonn, no meio do ano que vem. Talvez no México, na COP 16. Além dessas datas, é desaconselhável esperar. Lembremo-nos que o mundo não espera.
Acho que os líderes mundiais julgaram mal a dimensão do problema. Caso contrário, eles não teriam deixado para aparecer somente na última semana da reunião, para dar uma olhadela no que os diplomatas decidiram, balançar a cabeça positivamente e ficar com as glórias. A maioria chegou lá nos últimos dias para descobrir que os diplomatas não chegaram a consenso algum. Opa, devem ter pensado. Como nada de concreto fora decidido até ali, tiveram eles mesmos, faltando quatro dias para o término do evento, que discutir entre si para chegar num acordo. Caso contrário, as suas imagens políticas ficariam manchadas. Ah é, e as calotas polares iriam derreter.
Mas, olhem só que surpresa, quatro dias foi pouco tempo para elaborar um acordo mundial. Os países desenvolvidos e os em desenvolvimento ficaram batendo na mesma tecla de divisão de responsabilidades e não chegaram a lugar algum. Os subdesenvolvidos queriam que a responsabilidade de cortar emissões fosse só dos ricos. Só que Índia, China e Brasil poluem mais que a maioria dos países ricos. Eles necessitam de freios nessas emissões, senão de nada adianta o resto do mundo parar de poluir. Vejam, aí é que está a beleza da coisa: aquecimento global é um problema que, se o mundo todo não cooperar, o mundo todo (perdoem o termo) se fode. Agora não é mais hora de achar quem é o culpado. Sim, os EUA poluíram mais que nós e mesmo assim nós temos que cortar nossas emissões, é uma merda, mas o planeta não vê o responsável. Ele vai dar o troco em todos, esteja ele poluindo há vinte ou duzentos anos. Por isso, sim, cortes de emissão obrigatórios para países em desenvolvimento, sou a favor.
Mas, aí está onde eu queria chegar, tivemos, sim, um acordo em Copenhague. Por ser um acordo, e não um tratado, ele não tem valor legal, ou seja, quem assinar e não cumprir não vai ser cobrado. Deixe-me acompanhá-los através dos pontos desse acordo:
- Comprometimento dos países a impedir que a temperatura média mundial suba mais que 2 graus Celsius: no futuro, essa meta pode ser ampliada para 1,6 graus Celsius, o que parece bom, mas não bate com o próximo ponto do acordo.
- Corte de emissões de gases estufa de 20% até 2020, com base nos níveis de emissão de 1990, para países desenvolvidos: a ONU disse que o mínimo necessário para impedir que a temperatura suba mais 2 graus é uma diminuição de 25 a 40%, ou seja, uma diminuição de 20% não serve pra nada.
- Países em desenvolvimento não têm obrigação de estabelecer metas de redução, decidindo eles mesmos o que são capazes de diminuir: lembrando que o maior poluidor atualmente é a China, que se enquadra nessa categoria. Ela, então, poderia decidir que quer diminuir só, sei lá, 5% de suas emissões e ninguém poderia fazer nada.
- Criação de um fundo internacional para ajudar economicamente os países em desenvolvimento a combaterem o aquecimento global: a proposta inicial desse ponto era boa: já que os países em desenvolvivento reclamam que um combate às suas emissões iria frear seus crescimentos, os países ricos financiariam parte do esforço para que eles poluam menos. Os EUA tinham prometido inclusive 100 bilhões de dólares para o fundo anualmente. Na versão final do acordo, esse valor caiu para 30 bilhões, um valor que cresceria a cada ano até chegar aos 100 bilhões anuais que antes tinham sido prometidos desde o início. Os valores são insuficientes.
EUA e China ficaram bem felizes, pois o acordo lhes mandava fazer bem menos do que estavam sendo cobrados pela comunidade mundial. Falando em comunidade mundial, esta teve pouca interferência no acordo, que foi feito em cima da hora por meia dúzia de países. Danem-se as negociações, não é mesmo? Era isso o que os EUA estavam dispostos a oferecer; é pegar ou largar. O mundo largou. Quase ninguém reconheceu o tal tratado.
***
Essa não foi a única vergonha da COP 15. Uma palhaçada completa tem que ser completa em todos os níveis. Aí vão as minhas falhas preferidas:
Organização do evento: brasileiros, não temam mais em passar vergonha na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas. Pra quem achava que o Brasil não tem competência para organizar eventos mundiais, a COP 15 deve ter proporcionado um grande alívio. Porque os noruegueses, eles, tão desenvolvidos, com um IDH tão alto, a nação mais evoluída do mundo, também não conseguem. Confusão na distribuição de passes para os debates (que em alguns casos deixou representantes dos países de fora das discussões), reação policial aos manifestantes digna de um Rio de Janeiro e o pedido de demissão da presidente da cúpula no meio do evento foram os pontos altos. Aliás, esse negócio da presidente, que deixou sua posição ao afirmar que "o 1º ministro dinamarquês é que deveria mediar a cúpula" me deixou pensando: se isso fosse no Brasil, certamente iria ter gente balançando a cabeça, fazendo tsc tsc e dizendo: só podia ser brasileira.
Barack Obama: na última semana tinha gente dizendo que talvez Obama não comparecesse à Copenhague, mas essas pessoas se esqueciam que ele esteve sim na cidade, inclusive no início da cúpula. Não para debater o clima, mas para receber o Nobel da Paz. No discurso de premiação, citações sobre "guerras justas", que não pegaram bem. Mas isso não entra no mérito da discussão, já que estamos falando sobre a COP 15. Pois bem, Obama foi receber o prêmio e saiu de fininho sem nem passar pela cúpula. Conforme ia ficando evidente que a conferência seria um fiasco, cresceram as dúvidas sobre se Obama iria comparecer nos dias finais. Depois de muito questionamento, ele foi, ficou 24 horas, fez um discurso em tom de ameaça para os países em desenvolvimento, negociou uma proposta pífia e foi embora. Ao invés do Obama conciliador, vimos uma outra face do governante que só agora está ficando aparente. Discursou como se o assunto fosse de interesse só dos outros países e os EUA estivessem concedendo caridade ao ajudar no fundo de combate às mudanças climáticas, quando na verdade estamos todos no mesmo barco. Muito estranho, vindo de um presidente que usava o combate às mudanças climáticas como promessa de governo.
Fuga em massa: esperava-se uma bonita foto com todos os governantes mundiais juntos ao final do evento para selar o suposto acordo ao final da cúpula. Infelizmente essa foto nunca pode ser feita, pois todos debandaram assim que ficou claro o tamanho do desastre em que se meteram. Espertamente, ninguém queria a sua imagem associada a uma vergonha do tamanho da COP 15. A delegação brasileira inteira foi embora, deixando para trás um confuso Carlos Minc para contar o que aconteceu.
Pra não dizer que foi tudo uma vergonha, vale falar bem de quem negociou direito: Sarkozy merece crédito por ser um dos únicos ricos que estava disposto a destravar as negociações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O delegado sudanês Lumumba Di-Aping, presidente do G77, também mostrou fibra ao peitar as grandes economias e por sua nação ser a única africana a recusar assinar um acordo malfeito. Quem saiu-se muito bem também foi o nosso companheiro, presidente Lula. Lula, ao chegar, mostrava-se otimista, mas ao decorrer das negociações percebeu a canoa furada em que todos estavam. O otimismo foi substituído por uma expressão cansada e desgastada. No penúltimo dia, subiu à bancada e fez um discurso criticando a incompetência da cúpula e dos países desenvolvidos em lidar com o problema. Para finalizar, prometeu contribuir com o fundo de apoio, mesmo o Brasil se enquadrando nos países em desenvolvimento. Verdade ou blefe, o discurso serviu para destravar as discussões naquele dia.
***
Apesar de tudo, ainda não acho que é o fim. Dificilmente um acordo sem adesão mundial irá funcionar, o que significa que cedo ou tarde os países vão ter que voltar para a prancheta e fazer algo melhor. Espera-se que até fim do próximo ano as más repercussões de Copenhague constranjam os países a assumir suas responsabilidades. Talvez em Bonn, no meio do ano que vem. Talvez no México, na COP 16. Além dessas datas, é desaconselhável esperar. Lembremo-nos que o mundo não espera.
sábado, 19 de dezembro de 2009
Quero ser John Frusciante
Soube ontem que o John Frusciante deixou o Red Hot Chili Peppers. Se eu disser que não esperava é mentira. Há algum tempo, John disse em uma entrevista de rádio que já não tinha mais vontade de tocar em uma banda, e eu então já dava os Chili Peppers como terminados. Porque quando John Frusciante diz que não quer mais tocar, é porque ele não quer mais e não irá continuar. Não é a primeira vez que isso acontece.
O anúncio recente de que um novo álbum estava sendo feito e até mesmo que os Peppers iriam tocar em um show em homenagem a Neil Young reacendeu as minhas esperanças de que, afinal, a banda não estava morta. Porém, o medo voltou quando o baterista Chad Smith se recusou a falar de John em uma entrevista, se não me engano mês passado. Senti que algo de ruim estava acontecendo. Esta semana, o próprio John, que estava incomunicável há meses, escreveu em um blog que estava fora da banda. Já fazia um ano. Por um ano fui enrolado de que ainda havia esperanças, mas desde aquela entrevista de rádio que o John já não fazia mais parte dos Peppers. Só agora, porém, veio a confirmação definitiva do próprio.
Por total coincidência, quarta-feira passada aluguei o dvd do show que o Red Hot Chili Peppers fez no Slane Castle. Para ver pela milionésima vez. A primeira vez foi na tv, lá por 2004. Estava eu vendo um filme do 007 na TNT quando vejo o comercial do show. Iria ser exibido no canal dali há alguns dias. Entrei em êxtase: tratava-se da minha banda preferida, e eu nunca os havia visto ao vivo. Na verdade, fora os clipes, eu nunca havia visto os Chili Peppers em outros lugares. Apesar de serem imensamente populares, você não os vê na mídia muito, nem mesmo em entrevistas. Mas agora eu iria ver as pessoas por trás daquelas músicas em ação.
A TNT exibiu uma versão de 1 hora do show, apenas com as canções mais conhecidas. Quando a banda estava finalizando Scar Tissue, percebi que iria querer gravar aquilo. Devo ter visto aquele videocassete umas quantas vezes, e nunca me cansava. Principalmente por causa do John. Ouvir os Chili Peppers ao vivo não é como ouvi-los nas gravações: o John muda tudo, improvisa em todos os solos, cria introduções e finalizações que não existem na gravação original. No show do Slane Castle, todos os solos ganharam versões melhores, feitas de improviso no calor do momento. Aquilo era música gerada na hora, que para mim é a música verdadeira.
Nos intervalos, aparecia uma chamada de promoção que pedia para você ligar para um número e dizer porque o Red Hot Chili Peppers mudou a sua vida, ou algo assim, e você concorria a um cd da banda. Liguei para o número, sem esperança de atenderem. Atenderam. Fui pego de surpresa. "Então", disse a voz feminina do outro lado da linha, "qual é a sua resposta?". Tive que bolar algo de improviso. "Ah, o Red Hot Chili Peppers mudou a minha vida porque... porque eles me fizeram gostar de música". Não percebi na hora, mas, por mais boba e menos criativa que fosse, a frase era muito verdadeira, ainda que não houvesse como saber disso naquele momento. Eu só amo música do jeito que eu amo por causa daquele show. Por consequência, por causa dos Peppers. Ganhei o cd.
***
Um bom guitarrista não é aquele que consegue tocar super rápido, é aquele que consegue criar super rápido. E nisso o John é mestre: sua capacidade de improviso é invejável, sua construção de frases musicais em perfeito enlace com os outros instrumentos é soberba. Nunca houve uma dupla com tanta sintonia como John e Flea. John sabe deixar espaços. As linhas de baixo de Flea preenchem com perfeição os espaços que o John deixa, e vice versa. No final é o conjunto, o groove, que chama a atenção, e não a guitarra individualmente.
Isso não se vê no rock, principalmente nas bandas onde o guitarrista toca seiscentas notas por segundo. John só precisa de três ou quatro, e elas se mesclam perfeitamente com os outros sons. Nenhum guitarrista faz isso, nenhum guitarrista tem essa caridade com os outros instrumentos. Isso faz a sonoridade da banda ser original, prova é que não há, até hoje, nada parecido com os Chili Peppers. Nenhuma banda repete essa temática de entrelaçamento de instrumentos como eles fazem.
O show do Slane Castle mudou a minha vida porque me fez amar a música e porque foi o responsável por eu ter comprado a minha guitarra. Eu queria ser John Frusciante. Nenhum outro guitarrista me interessava. Nenhuma outra banda significava o mesmo pra mim. Nunca me conectei com Beatles, Led Zeppelin ou qualquer banda clássica que todo mundo idolatra. Quando eu ouço Beatles, sinto que aquele som não é da minha época, não foi feito para mim. Parece algo vindo de uma realidade que não me pertence; pertença a meus pais, talvez, mas não à mim. Eu ouço o John tocando, e eu entendo. Entendo o que ele quer dizer, o que ele quer fazer e para onde ele vai. Aquela música é a minha música, da minha época, da minha realidade. É a trilha sonora da minha vida. Uma ligação assim com uma banda é algo muito bonito; espero que todos tenham a oportunidade de achar o seu som, assim como eu achei o meu. Ter essa conexão, conseguir sentir o significado da música, mesmo que as letras não façam sentido. Conseguir ver as cores da música. Isso é o mais perto que eu vi de magia nesse mundo.
John também tem essa conexão com a música. Ele passava dezesseis horas por dia tocando guitarra. Depois de um dia de dez horas de gravação, ele voltava para casa e ouvia música até adormecer. John não gostava de sair em turnê pois lhe desagradava ter de esperar horas para a montagem de palco: queria tocar assim que pudesse. Ele consegue compor uma osquestração de quatro guitarras mentalmente, sem nem por a mão em uma, como fez com Turn it Again. Como ele faz isso? Ao contrário de outros profissonais do ramo musical, John recusa-se a dizer que tudo já foi feito. "Música é infinita", ele costuma dizer, e é por isso que sempre consegue criar algo novo, não importa quando ou quantas vezes for preciso.
A fonte dessa magia secou, e eu soube disso ontem. Não há mais Chili Peppers como eu os conhecia. O meu heroi resolveu se aventurar por outros caminhos musicais. Diferente do pessoal que diz que está feliz por ele fazer o que gosta, eu não estou. Por mais genial que John seja, ele nunca conseguirá fazer sozinho o que fez com os outros três gênios. Era a conexão de mentes que fazia o troço ser especial. Agora não há mais isso, e não há o que fazer. Boa sorte para o próximo guitarrista dos Peppers: além de ter que se igualar com os outros três, ele terá a missão de substituir a maior mente musical da nossa época. Enquanto aguardo para ver o que vai ser da banda, ponho o dvd do Slane Castle pra tocar e relembro a melhor fase da melhor banda da minha vida.
O anúncio recente de que um novo álbum estava sendo feito e até mesmo que os Peppers iriam tocar em um show em homenagem a Neil Young reacendeu as minhas esperanças de que, afinal, a banda não estava morta. Porém, o medo voltou quando o baterista Chad Smith se recusou a falar de John em uma entrevista, se não me engano mês passado. Senti que algo de ruim estava acontecendo. Esta semana, o próprio John, que estava incomunicável há meses, escreveu em um blog que estava fora da banda. Já fazia um ano. Por um ano fui enrolado de que ainda havia esperanças, mas desde aquela entrevista de rádio que o John já não fazia mais parte dos Peppers. Só agora, porém, veio a confirmação definitiva do próprio.
Por total coincidência, quarta-feira passada aluguei o dvd do show que o Red Hot Chili Peppers fez no Slane Castle. Para ver pela milionésima vez. A primeira vez foi na tv, lá por 2004. Estava eu vendo um filme do 007 na TNT quando vejo o comercial do show. Iria ser exibido no canal dali há alguns dias. Entrei em êxtase: tratava-se da minha banda preferida, e eu nunca os havia visto ao vivo. Na verdade, fora os clipes, eu nunca havia visto os Chili Peppers em outros lugares. Apesar de serem imensamente populares, você não os vê na mídia muito, nem mesmo em entrevistas. Mas agora eu iria ver as pessoas por trás daquelas músicas em ação.
A TNT exibiu uma versão de 1 hora do show, apenas com as canções mais conhecidas. Quando a banda estava finalizando Scar Tissue, percebi que iria querer gravar aquilo. Devo ter visto aquele videocassete umas quantas vezes, e nunca me cansava. Principalmente por causa do John. Ouvir os Chili Peppers ao vivo não é como ouvi-los nas gravações: o John muda tudo, improvisa em todos os solos, cria introduções e finalizações que não existem na gravação original. No show do Slane Castle, todos os solos ganharam versões melhores, feitas de improviso no calor do momento. Aquilo era música gerada na hora, que para mim é a música verdadeira.
Nos intervalos, aparecia uma chamada de promoção que pedia para você ligar para um número e dizer porque o Red Hot Chili Peppers mudou a sua vida, ou algo assim, e você concorria a um cd da banda. Liguei para o número, sem esperança de atenderem. Atenderam. Fui pego de surpresa. "Então", disse a voz feminina do outro lado da linha, "qual é a sua resposta?". Tive que bolar algo de improviso. "Ah, o Red Hot Chili Peppers mudou a minha vida porque... porque eles me fizeram gostar de música". Não percebi na hora, mas, por mais boba e menos criativa que fosse, a frase era muito verdadeira, ainda que não houvesse como saber disso naquele momento. Eu só amo música do jeito que eu amo por causa daquele show. Por consequência, por causa dos Peppers. Ganhei o cd.
***
Um bom guitarrista não é aquele que consegue tocar super rápido, é aquele que consegue criar super rápido. E nisso o John é mestre: sua capacidade de improviso é invejável, sua construção de frases musicais em perfeito enlace com os outros instrumentos é soberba. Nunca houve uma dupla com tanta sintonia como John e Flea. John sabe deixar espaços. As linhas de baixo de Flea preenchem com perfeição os espaços que o John deixa, e vice versa. No final é o conjunto, o groove, que chama a atenção, e não a guitarra individualmente.
Isso não se vê no rock, principalmente nas bandas onde o guitarrista toca seiscentas notas por segundo. John só precisa de três ou quatro, e elas se mesclam perfeitamente com os outros sons. Nenhum guitarrista faz isso, nenhum guitarrista tem essa caridade com os outros instrumentos. Isso faz a sonoridade da banda ser original, prova é que não há, até hoje, nada parecido com os Chili Peppers. Nenhuma banda repete essa temática de entrelaçamento de instrumentos como eles fazem.
O show do Slane Castle mudou a minha vida porque me fez amar a música e porque foi o responsável por eu ter comprado a minha guitarra. Eu queria ser John Frusciante. Nenhum outro guitarrista me interessava. Nenhuma outra banda significava o mesmo pra mim. Nunca me conectei com Beatles, Led Zeppelin ou qualquer banda clássica que todo mundo idolatra. Quando eu ouço Beatles, sinto que aquele som não é da minha época, não foi feito para mim. Parece algo vindo de uma realidade que não me pertence; pertença a meus pais, talvez, mas não à mim. Eu ouço o John tocando, e eu entendo. Entendo o que ele quer dizer, o que ele quer fazer e para onde ele vai. Aquela música é a minha música, da minha época, da minha realidade. É a trilha sonora da minha vida. Uma ligação assim com uma banda é algo muito bonito; espero que todos tenham a oportunidade de achar o seu som, assim como eu achei o meu. Ter essa conexão, conseguir sentir o significado da música, mesmo que as letras não façam sentido. Conseguir ver as cores da música. Isso é o mais perto que eu vi de magia nesse mundo.
John também tem essa conexão com a música. Ele passava dezesseis horas por dia tocando guitarra. Depois de um dia de dez horas de gravação, ele voltava para casa e ouvia música até adormecer. John não gostava de sair em turnê pois lhe desagradava ter de esperar horas para a montagem de palco: queria tocar assim que pudesse. Ele consegue compor uma osquestração de quatro guitarras mentalmente, sem nem por a mão em uma, como fez com Turn it Again. Como ele faz isso? Ao contrário de outros profissonais do ramo musical, John recusa-se a dizer que tudo já foi feito. "Música é infinita", ele costuma dizer, e é por isso que sempre consegue criar algo novo, não importa quando ou quantas vezes for preciso.
A fonte dessa magia secou, e eu soube disso ontem. Não há mais Chili Peppers como eu os conhecia. O meu heroi resolveu se aventurar por outros caminhos musicais. Diferente do pessoal que diz que está feliz por ele fazer o que gosta, eu não estou. Por mais genial que John seja, ele nunca conseguirá fazer sozinho o que fez com os outros três gênios. Era a conexão de mentes que fazia o troço ser especial. Agora não há mais isso, e não há o que fazer. Boa sorte para o próximo guitarrista dos Peppers: além de ter que se igualar com os outros três, ele terá a missão de substituir a maior mente musical da nossa época. Enquanto aguardo para ver o que vai ser da banda, ponho o dvd do Slane Castle pra tocar e relembro a melhor fase da melhor banda da minha vida.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Lição de casa
As geleiras estão derretendo, mas as negociações de Copenhague congelaram. Em compensação, as manifestações estão pegando fogo: ontem, ativistas tentaram adentrar na sala de discussões de forma a transformar a reunião da cúpula numa assembleia pública, com participação direta do povo. A polícia reprimiu os avanços dos manifestantes, que não conseguiram realizar seus objetivos. Apesar de a participação da sociedade ser de grande importância na tomada de decisões relevantes para o futuro do mundo, a confusão gerada pela invasão dos manifestantes aos quarenta e cinco do segundo tempo iria enredar ainda mais uma situação que já está mais enrolada que novelo de lã.
Para quem anda por fora do assunto, eu estou falando da COP 15, conferência que está em seu penúltimo dia e que tem como objetivo traçar metas para a política climática mundial, e que, por sinal, não está chegando a consenso algum. Antes do início desta, a Dinamarca (país sede da conferência), os EUA e a China já haviam assinalado que a cúpula serviria só para discutir o problema, e não para definir números de redução, o que já anularia o principal motivo de sua realização. Infelizmente, nem para traçar alguns pontos básicos ela está servindo: apesar de (ponto a favor) ter sido decidida a criação de um fundo internacional de ajuda a países pobres para que reduzam suas emissões de CO2, não ficou decidido quem irá contribuir (Brasil e China não querem, alegando que também são países pobres) nem quem irá receber seus benefícios (novamente, Brasil e China o querem pois alegam que são países pobres). Mas o que realmente entravou as negociações foi a polarização entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Os países pobres se eximem do compromisso de reduzir suas emissões, alegando que historicamente a culpa é dos ricos. Os países ricos se comprometem a reduzir suas emissões, mas cobram dos pobres que façam o mesmo.
É mais ou menos isso. E é assim que nos encaminhamos para o último dia de cúpula. Está claro pra mim que a Dinamarca tinha razão em não querer fazer um tratado formal ainda. Se feito agora, vai estar cheio de furos e questões mal resolvidas, e, na prática, irá servir só para os líderes mundiais mostrarem para o mundo que a reunião não foi um fracasso. Falando nos líderes, estes deixaram para aparecer só nestes últimos dias de cúpula, para dar uma olhada no texto final elaborado por diplomatas e dizer se concordam ou não. Alguns, como o Barack Obama, perigam nem aparecer.
Pensando agora, é meio idiota que o mundo tenha marcado uma data para assinar o tratado sem ter discutido antes sobre o assunto. Como é que ninguém nunca pensou que a situação fosse complexa demais para se resolver na hora? Há muitos problemas nesses dois últimos dias que terão de ser acertados literalmente em cima da hora. Esse tratado, em vez de uma solução, virou um problema. Virou uma lição de casa que os líderes mundiais deixaram para fazer na noite de domingo. Será feita às pressas, algumas questões ficarão em branco e várias incompletas. Será o suficiente para ganhar uma boa nota? Tudo indica que não. Vamos torcer para que a próxima reunião, ano que vem no México, possa servir como um trabalho de substituição.
Para quem anda por fora do assunto, eu estou falando da COP 15, conferência que está em seu penúltimo dia e que tem como objetivo traçar metas para a política climática mundial, e que, por sinal, não está chegando a consenso algum. Antes do início desta, a Dinamarca (país sede da conferência), os EUA e a China já haviam assinalado que a cúpula serviria só para discutir o problema, e não para definir números de redução, o que já anularia o principal motivo de sua realização. Infelizmente, nem para traçar alguns pontos básicos ela está servindo: apesar de (ponto a favor) ter sido decidida a criação de um fundo internacional de ajuda a países pobres para que reduzam suas emissões de CO2, não ficou decidido quem irá contribuir (Brasil e China não querem, alegando que também são países pobres) nem quem irá receber seus benefícios (novamente, Brasil e China o querem pois alegam que são países pobres). Mas o que realmente entravou as negociações foi a polarização entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Os países pobres se eximem do compromisso de reduzir suas emissões, alegando que historicamente a culpa é dos ricos. Os países ricos se comprometem a reduzir suas emissões, mas cobram dos pobres que façam o mesmo.
É mais ou menos isso. E é assim que nos encaminhamos para o último dia de cúpula. Está claro pra mim que a Dinamarca tinha razão em não querer fazer um tratado formal ainda. Se feito agora, vai estar cheio de furos e questões mal resolvidas, e, na prática, irá servir só para os líderes mundiais mostrarem para o mundo que a reunião não foi um fracasso. Falando nos líderes, estes deixaram para aparecer só nestes últimos dias de cúpula, para dar uma olhada no texto final elaborado por diplomatas e dizer se concordam ou não. Alguns, como o Barack Obama, perigam nem aparecer.
Pensando agora, é meio idiota que o mundo tenha marcado uma data para assinar o tratado sem ter discutido antes sobre o assunto. Como é que ninguém nunca pensou que a situação fosse complexa demais para se resolver na hora? Há muitos problemas nesses dois últimos dias que terão de ser acertados literalmente em cima da hora. Esse tratado, em vez de uma solução, virou um problema. Virou uma lição de casa que os líderes mundiais deixaram para fazer na noite de domingo. Será feita às pressas, algumas questões ficarão em branco e várias incompletas. Será o suficiente para ganhar uma boa nota? Tudo indica que não. Vamos torcer para que a próxima reunião, ano que vem no México, possa servir como um trabalho de substituição.
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