sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O narrador

A história é sempre uma versão da história. É a versão do narrador. Quando lemos um livro, não estamos acompanhando uma história em primeira mão, estamos acompanhando o narrador dizer o que aconteceu. Um livro é sempre um relato. É impossível escrever um livro sem narrador: mesmo onisciente, este existe. Foi ele quem presenciou a história, não nós. Estamos lendo as suas impressões, as suas observações. A presença do narrador impossibilita um contato direto do leitor com a história. Ele sempre estará lá, como um penetra, entre nós e o fato. O que faz dele um cara muito suspeito. Como confiar se o que o narrador diz é verdade? Não temos escolha, só há a versão dele. Caso o narrador seja onisciente, é mais suspeito ainda: como eu vou acreditar na história de um cara que nem revela quem é? Como vou saber se ele realmente viu tudo aquilo, se não há registros de sua existência? Muito suspeito.


Exemplo clássico: Dom Casmurro. Na obra temos somente a versão de Bentinho, que é a de que sua mulher o traiu. Se o narrador diz, é porque deve ser verdade. Quando questionaram a veracidade do narrador em Dom Casmurro, os estudiosos da literatura botaram em xeque todo o sistema de narrativa literária construído pelo homem. De repente, o narrador não era mais confiável. Passaríamos a ler os livros com uma pontinha de desconfiança, sempre nos perguntando se foi bem assim mesmo. Isso implicaria em muitas questões metafísicas, pois, se mesmo uma história de ficção pode não ter acontecido bem assim, então o que é real? Se a mentira admitida não é verdade, o que é? Sem saber, Bentinho abriu espaço para questionamentos metafísicos que vão desde a existência de Deus até a margarina diet. É margarina? É plástico? Como saber?

 Há ainda um terceiro fator em Dom Casmurro, que é o de que Bentinho poderia, em sua culpa, estar ele mesmo se enganando da verdade. Por querer acreditar que fez o certo, contava a hipótese como verdade absoluta, como forma de autoafirmação, enganando a si mesmo e a nós por tabela. Os únicos que saberiam ao certo seriam Capitu e o próprio autor, Machado de Assis. Neste caso, Assis é o grande culpado. Ele poderia ter com a mesma facilidade escolhido Capitu para ser a narradora, alguém com muito mais crédito para contar a verdadeira história. Ao invés disso, escolheu o marido enciumado, o marido responsável pela desgraça da mulher. O autor é cúmplice de Bentinho em suas ações. Escolhendo a sua versão como a oficial, ele colabora com o crime, um crime ficcional, mas nesse jogo de mentiras e verdades, quem vai saber?

O autor é um cúmplice do narrador, pois escolhe a versão deste em detrimento de outras. Que seriam dos livros se outros personagens fossem os narradores? E se Capitu narrasse? Se Long John Silver fosse o narrador da Ilha do Tesouro, ele ainda seria um pirata desprezível ou seria um libertador da tripulação, amotinada por maus-tratos do antigo capitão? Não há registros desses maus-tratos no livro, mas é Jim Hawkins o narrador, e, como ele era o queridinho do capitão, seria muito fácil omitir algumas informações comprometedoras. Será que Sauron era um cara tão mau assim? Vai ver era o contrário, eram os hobbits os vilões e nós fomos acreditar na versão dos vencedores.

Jesus Cristo teve a sua vida escrita por quatro apóstolos diferentes. São quatro pontos de vista de uma mesma história. Sem notar, Mateus, Marcos, Lucas e João solucionaram o problema criado por Machado de Assis mais de um milênio depois. Uma história com multinarradores. Sem dúvida, homens muito à frente do seu tempo. Este é o futuro da literatura: livros com multinarradores. Pra ser justa, cada obra precisa ser narrada por todos os personagens envolvidos. Até os figurantes, que, por não estarem envolvidos diretamente, são até mais confiáveis. Sim, dá uma mão desgraçada escrever tudo isso. Mas é necessário. Quem disse que é fácil ser justo?

2 comentários:

  1. Essa é a diferença de um romance pra uma notícia né Giordano ;) Mas Sauron era malvado sim porque o narrador do senhor dos anéis, e do silmarillion era onisciente.

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  2. uhdauhshisa bah, a parte da biblia foi triii! o livro menos confiavel do mundo ser a base pra uma nova ideia de narrativa é awesome. mas a ideia do narrador onisciente é que ele sabe de tudo, entao não precisa de outros pontos de vista, pq ele ja é imparcial. E cara, que paranóis com o sauron! deixa o cara ser o vilao badass la da historia! dahdiuad. ps. isso me lembra de te indicar um livro a proxima vez que nos falarmos.
    abraçao.

    pps. parabéns pelo blog! ele ja ta nos meus favoritos a semanas

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