sábado, 23 de janeiro de 2010

A brincadeira

O Emerson quis pregar uma peça na mãe dele.
- Mãe, eu tenho uma coisa pra te falar.
A mãe olhou pra ele, preocupada com a seriedade do tom de voz do filho. Emerson se segurava para não rir.
- É que... é que eu sou gay.
Pronto. Agora era esperar a mãe fazer um escândalo, perguntar como é que pode, o meu filhinho, que eu criei com tanto amor, ser gay, aí o Emerson diria que era piada e poderia desatar a rir à vontade.
Ao invés disso, a mãe olhou para ele, com uma expressão de compreensão e seriedade, colocou a mão em seu ombro e disse:
- Eu já sabia.
E contou que sempre soube que havia algo incomum no seu filho. Que, desde pequeno, observara que ele parecia mais afeminado que os amigos. Sempre estranhara que o filho nunca trouxera nenhuma menina para casa. Tinha vergonha de perguntar, morria de medo de que o filho tomasse aquilo como uma agressão à sua privacidade, mas agora se sentia aliviada por ele ter aberto o jogo.
- Quê?! Não, eu estava brincando... eu não sou...
- Tudo bem, filho. Não há motivo de vergonha. Vários homens são, só não admitem. Mas você foi mais corajoso que eles. Você abriu o jogo. Parabéns. - e lhe deu um abraço.

***

O Emerson, no mesmo dia, marcou de se encontrar com os amigos, o Tobias e o Flávio. Lá estavam eles, na esquina onde marcaram o encontro.
- Pessoal, vocês não vão acreditar na minha mãe, ela...
Mas o Flávio fez um sinal para ele parar de falar. Só então o Emerson notou que eles estavam anormalmente sérios.
- Sua mãe nos ligou. - disse o Flávio - Disse que precisava falar com os amigos do filho. Estava numa situação difícil. Contou que você abriu o jogo. Ela nos perguntou o que fazer, já que tinha certeza que você já tinha nos contado.
- Contado o quê?
O Tobias deu um passo adiante.
- Como é que você não abriu o jogo pra gente, cara? Pros seus amigos? Poxa, a gente é quase irmão, como é que você não conta isso pra gente?
- Vocês não entenderam, é que...
- É normal que você tenha medo do que as pessoas vão pensar, - continuou o Flávio - mas nós somos seu amigos, cara. E vamos continuar sendo, não importa se você seja homo, bi ou zoófilo.
- Zoófilo?
- Agora tudo faz sentido. - meditou o Tobias. - nas festas, você leva fora de todas as mulheres. Na verdade você faz de propósito. É só para manter a máscara, pra parecer que tentava. É claro, é impossível alguém levar tanto fora. Não tem como. Como nós nunca desconfiamos?
- Fora? Eu...
O Flávio botou a mão no ombro do Emerson.
- Olha, todas aquelas piadas... todas aquelas vezes que a gente te chamava de bichinha, de viadinho... a gente faz isso com todo mundo, viu? A gente não sabia que você... enfim, desculpe.
- E outra coisa - continuou o Tobias - todo mundo tem gostos estranhos. Tem quem goste de homem, de mulher, de outras coisas. Eu tenho um amigo arquiteto que se excita cada vez que vê o Centro Georges Pompidou. Você se excita com homens. Normal. Tranquilo. Só nos promete uma coisa: não esconde mais uma coisa dessa importância dos seus amigos, tá?
- Ehr... tá.
Terminada a conversa, resolveram ir embora. Tobias foi na frente. Antes de ir, o Flávio cochichou "me liga mais tarde" no ouvido do Emerson e passou a mão na sua bunda.

***

Emerson está vivendo um dilema. Agora todos pensam que ele é gay, e, o que no fundo mais o incomoda, ninguém achou estranho. É como se todos já esperassem isso dele. As pessoas aceitaram tão facilmente, que desfazer o mal-entendido iria dar um trabalho dos diabos. E, ao contrário do que pensava, as pessoas passaram a tratá-lo melhor. Eram inclusive mais cordiais, principalmente seus amigos, que não pegavam mais no seu pé. A única coisa que realmente mudara é que cada vez que alguém fazia uma piadinha sobre gays subitamente se dava conta de que o Emerson estava no recinto e pedia desculpas, visivelmente embaraçado. Fora isso, a vida corria tranquila, e o Flávio estava ali, dando sopa. Emerson estava numa seca danada com as mulheres. Quem sabe não seria mais fácil simplesmente... não, melhor não. Iria desmentir a história toda. Melhor ser um homem frustrado do que um gay falso. Integridade acima de tudo.

Um comentário:

  1. Muito engraçado e criativo esse texto! Ele reflete bem o "pré-conceito" das pessoas, das que julgam as outras pela aparência, pelos gestos, pela sua própria cabeça "poluída" de clichês. Outro aspecto importante do texto, além da leitura errônea que a mãe já fazia da aparência do filho, é a questão da falha na comunicação, da ausência de diálogo também com os amigos. Gostei do texto e do subtexto. Beijo.

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