terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Gorba

Pobre Gorbachev. Cada vez que alguém lhe dá os parabéns por ter desmantelado a União Soviética, ele deve dar um sorriso e, por dentro, se segurar para não socar a pessoa. Ontem, no evento comemorativo dos 20 anos da queda do Muro, quando a chanceler alemã Angela Merkel agradeceu publicamente a ele por ter deixado os eventos finais da Guerra Fria acontecerem sem intervir, Gorba deve ter sorrido o seu milésimo sorriso irônico. Mais uma vez, estavam expondo em rede mundial a sua incompetência em reformar a URSS e em virar a guerra. Incompetência, sim. Se as reformas políticas propostas por ele tivessem saído conforme o plano, a URSS, em primeiro lugar, ainda existiria, e seria algo parecido com a China de hoje: uma república comunista, porém com um mercado aberto e crescimento econômico acelerado. O negócio deu tão errado que em um espaço de tempo curtíssimo já não existia nem mais uma URSS para ser salva.

Gorba virou heroi por ter falhado em sua missão. Analisando friamente, as pessoas na verdade lhe dão os parabéns por ter sido um governista incompetente. Até lhe deram um prêmio por isso. O Prêmio Nobel ganho por Gorbachev foi o maior prêmio joinha da história. Foi mais ou menos como, "ei cara, você fez a gente ganhar a guerra! Tá bom que pra isso você teve que perder, mas, uau, isso é muito legal! Valeu!", seguido por umas palmadas nas costas. Muito bem, Gorba. Muito bem.
Lech Walesa, antigo chefe do sindicato polonês Solidaridad, recentemente tirou o mérito da queda do Muro de Berlim de Gorba. Disse ele que o responsável pela queda foi o Papa João Paulo II, o próprio Walesa e em, certa medida, o resto do mundo, mas não Gorba. Agora nem reconhecem mais o mérito de ele não ter feito nada para salvar a Alemanha comunista. Coitado. Nem pela sua incompetência ele pode ser parabenizado.

Dito isso, quero que fique claro que, mesmo sendo responsável pela derrota da URSS, eu admiro o cara. É sério. Sou fã do Gorba. A missão dele era difícil. A Guerra Fria já se arrastava por décadas. A URSS, depois do atoleiro que foi o Afeganistão, já estava sem recursos. Ao perceber que suas reformas serviram para acelerar a queda do comunismo, ao invés de fortalecê-lo, Gorba não tentou lutar contra: admitiu a derrota. Na queda do Muro, ele poderia se meter e acabar com a festa geral, mas não o fez. É como um homem preso em alto mar: ele pode nadar, mas sabe que cedo ou tarde irá cansar e se afogar. Gorbachev soube na hora que era inútil continuar nadando. Não esperou se cansar. Afundou, sim, mas com honra. Afinal, já que é para ser assim, ao menos afundemo-nos nós mesmos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A chance

Hoje faz 20 anos que o muro caiu. Há exatos 20 anos atrás, a divisão ideológica que separava o mundo em dois foi literalmente botada abaixo para dar lugar ao pensamento único e à globalização. O mundo era enfim um só. 9 de novembro de 89 foi a data do reencontro de milhares de alemães separados durante décadas. As pessoas cantavam e se abraçavam, inclusive com desconhecidos. Não importava: eram todos irmãos, todos finalmente de uma mesma nação.
A queda do Muro talvez seja o meu momento favorito da história mundial, porque foi uma revolução pacífica. Até onde eu sei, ninguém morreu ao derrubar o Muro. A data foi uma festa, uma grande festa, uma celebração. No calor da hora, os alemães presentes não celebravam o fim da Guerra Fria, do comunismo. Para o mundo, esse era o significado geral. Para os alemães, a celebração era sobre o direito de poder derrubar aquela coisa horrível que ficava no meio da cidade, bloqueando a passagem para o outro lado. Finalmente, poderíamos ver o que havia do outro lado. Finalmente poderíamos conversar com as pessoas do lado oposto. Depois de se esperar décadas para isso, não havia tempo a perder: pessoas pegavam marretas e destruíam elas mesmas a barreira. Elas esperaram anos por isso e não queria esperar nem um segundo a mais. Foi um momento de ação. Foi um momento lindo.

***

Se a queda do muro é o meu momento preferido, a Guerra Fria é sem dúvida o meu assunto predileto em História. Eu não acho que é dada a importância merecida à Guerra Fria. Acho que as pessoas gostam mais da II Guerra porque foi uma guerra maniqueísta. Nunca o lado do mal foi tão fácil de ser identificado quanto nessa guerra. Hitler representava o algoz máximo, e os Aliados a equipe do bem que colocou as diferenças de lado para salvar o mundo. EUA e União Soviética que o digam. Mas o conceito da Guerra Fria é muito mais interessante: foi uma guerra de ideologias opostas, capitalismo versus comunismo. O mundo caminhava para ser um só, e, num cenário onde havia cada vez mais interdependência de países, o mundo estava num mesmo carro e precisava decidir se dobrava para a esquerda ou para a direita. Uma ideologia temia ser dominada pela outra. Nenhum deles representava o Mal: eram tão somente dois lados que falharam em coexistir. O medo fez com que se separassem, se isolassem, isolamento esse materializado no Muro de Berlim.
O tempo passou, até que esse isolamento se esfacelou, há exatos 20 anos atrás. Tudo foi muito rápido: cinco dias antes alemães orientais fizeram um megaprotesto pedindo por reformas. Foram boladas novas regras para visitação fora das barreiras orientais: agora poderia-se passar pela fronteira sem precisar de condições prévias além de um visto. O secretário do Comitê de Informação da Alemanha Oriental, Günter Schabowski, acabou falando em entrevista sobre a decisão antes de ser preparada a infraestrutura necessária para colocá-la em prática. O resultado: milhares de alemães se encaminharam para o Muro e não puderam ser contidos. Mandaram um dedo médio para a burocracia e resolveram que aquele seria o dia em que atravessariam o Muro, com ou sem visto.

***

Acabou a divisória, mas não o problema de que, afinal, havia duas ideologias regendo a mesma cidade. E é aí que poderíamos ter dado o passo fundamental para a construção de um novo mundo, sem polarização. Poderíamos ter trilhado um caminho do meio, poderíamos, frente a realidade de que agora não éramos mais separados um do outro, entrelaçar as ideias e procurar um jeito de nos entendermos. Não foi o que aconteceu. O capitalismo abocanhou vorazmente a parte oriental de Berlim. Velhos profissionais da Berlim comunista perderam suas funções e ficaram obsoletos. A conversão tão rápida a um novo sistema gerou desemprego e não melhorou a condição de vida para todos os berlinenses. Se antes eles não tinham a condição de crescer monetariamente e viviam com escassez de recursos, tampouco agora conseguem se adaptar à realidade de mercado voraz. Não há mais o antigo sentimento de camaradagem: agora é cada um por si, passando por cima do outro. Isso gera o sentimento da "ostalgia", que é o nome dado à saudade que alguns sentem de certos aspectos da antiga Berlim Oriental.
A Alemanha poderia ter pego os bons aspectos de ambos os lados, combinado as oportunidades de crescimento de uma economia capitalista com um pensamento comunista de companheirismo social, preocupando-se com o bem estar do todo. Não foi o que aconteceu, e agora temos uma Alemanha unida politicamente, mas até hoje dividida economicamente. A união das Alemanhas foi uma revolução, mas a possibilidade de uma revolução maior foi perdida. Mas, naquele 9 de novembro, o futuro não tinha a ver com ideologias: o futuro era o agora, era o reencontro, era a chance de ser, enfim, um só.

***

A fim de comemorar os 20 anos da queda do Muro, durante toda esta semana estarei postando crônicas relacionadas à Guerra Fria. Faço isso porque um marco histórico como esse traz a chance de debater sobre questões que ficaram para trás, mas, ao mesmo tempo, permanecem muito atuais. Até o próximo post!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Enquanto isso, numa mesa de bar...

Podólatra 1: - eu curto um pezinho...
Podólatra 2: - pezinho é tri.
Anti-Podólatra: - eu não sei o que vocês veem num pé.
Podólatra 1: - ah, meu! Vai dizer que você não curte?
Anti-Podólatra: - cara, é só um pé. Qual é a graça num pé?
Podólatra 1: - qual a graça? Vou te dizer qual é a graça... assim que eu pedir mais uma cerveja... garçom! Mais uma!
Podólatra 2: - pé é uma coisa bonita, delicada.
Anti-Podólatra: - pra mim, pé é, sei lá, uma coisa que fica em contato com o chão. Uma coisa suja...
Podólatra 1: - não, meu!
Podólatra 2: - nada a ver!
Podólatra 1: - pelo pé é que se conhece a mulher... não adianta ela ser bonita e ter um pé feio, mal cuidado... o pé mostra a essência da pessoa. Pelo pé é que se sabe se a mulher é uma lady ou se é da roça.
Anti-Podólatra: - tá, então é isso, o fetiche é pelo pé bem cuidado, lisinho, unhas pintadas e tal...
Podólatra 1: - unhas pintadas, não.
Podólatra 2: - unhas pintadas é bagaceiro.
Podólatra 1: - unhas pintadas é bagaceiro. De vermelho então, nem se fala. Mulher de classe não pinta as unhas de vermelho. Deixa bem cuidada, mas não pinta. Pintar é coisa...
Podólatra 2: - é coisa assim, de mulher...
Podólatra 1: - simplesmente não é coisa de mulher direita. Mas como eu ia dizendo... como era, mesmo? Ah, sim, é pelo pé que se conhece a mulher. As extremidades, se bem cuidadas, dizem tudo. Pés lisinhos, mãos lisinhas... A mão também. Mãos lisinhas e delicadas, vai dizer que você não gosta?
Anti-Podólatra: - eu só não sei como tem gente que fica excitada vendo um pé... mão eu até entendo, tem a coisa do toque, é legal. Mas o que eu vou fazer com um pé? Lamber? Não é muito legal.
Podólatra 2: - como não? Só porque você tem essa frescura de que pé é coisa suja.
Anti-Podólatra: - e outra coisa. Homem também tem pé. Imaginem um homem com o pé pequeno e bem cuidado, igual ao de uma mulher. Vocês achariam sexy? Porque não tem diferença.
Podólatra 1: - tem sim! Pé de homem e de mulher é totalmente diferente! Pé de homem é nojento, peludo...
Anti-Podólatra: - tá, tira os pelos, então.
Podólatra 1: - mesmo assim, não é igual. Eu sei, eu já depilei meu pé. Dá pra ver que é pé de homem, com ou sem pelo.
Podólatra 2: - peraí, você depilou o pé?
Podólatra 1: - eu estava em casa de tarde, sem nada pra fazer... sabe como é.
Anti-Podólatra: - vocês falam como se eu fosse estranho, mas é normal não gostar de pé... não quer dizer que eu não tenha nenhum fetiche. Eu curto ruivas, por exemplo.
Podólatra 1: - ah, sim. Mas todo mundo curte ruivas.
Anti-Podólatra: - eu nunca fiquei com uma ruiva. Um dia ficarei. É o meu grande objetivo.
Podólatra 1: - eu também não.
Podólatra 2: - eu já.
Podólatra 1: - uau! Sério? E como é que foi?
Podólatra 2: - normal, até. Vocês conhecem ela. É a Michele.
Podólatra 1: - a Michele não é ruiva. É louro-escura.
Podólatra 2: - cala a boca. Ela é ruiva, sim.
Podólatra 1: - é nada. Louro-escura.
Podólatra 2: - sei. O cabelo dela é mais vermelho que esta parede.
Anti-Podólatra: - sempre me perguntei o que os daltônicos devem achar das ruivas. Acho que eles não devem ver graça nenhuma.
Podólatra 1: - até que ponto dá pra dizer que a mulher é ruiva e até que ponto ela vira louro-escura?
Anti-Podólatra: - sei lá. Ruiva é a que tem sardas...
Podólatra 1: - nããão... nada a ver, você está falando da ruiva-ferrugem. Não é esse tipo de ruiva que você gosta, é?
Anti-Podólatra: - pra mim, ruiva genuína tem cabelo vermelho, sardas e pele muito branca. Qualquer outro tipo é falsificação barata.
Podólatra 1: - e você? O que acha?
Podólatra 2: - acho que é uma questão muito delicada, essa do pé...
Anti-Podólatra: - cara, a gente já mudou de assunto. Faz tempo.
Podólatra 1: - estou descobrindo que você tem gostos estranhos... prefere mulher mais nova ou mais velha?
Anti-Podólatra 1: - eu? Ah, eu curto as mais velhas. Espera... defina velha.
Podólatra 1: - tipo, mais de vinte anos.
Anti-Podólatra: - você considera mulher de mais de vinte anos velha?
Podólatra 1: - sim, são mais velhas que nós. Espera aí, que tipo de velha você achava que eu estava falando?
Anti-Podólatra: - nada não. Deixa pra lá.
Podólatra 1: - hmm... tô sabendo dos teus fetiches... eu já curto uma mais novinha.
Podólatra 2: - eu também!
Podólatra 1: - é, né? Umas adolescentes mais crescidinhas...
Podólatra 2: - bah, eu curto mesmo são as pré-adolescentes.
Podólatra 1: - epa.
Anti-Podólatra: - como assim? Explique-se.
Podólatra 2: - hein? Ah, vai dizer que vocês não curtem?
Anti-Podólatra: - claro que não! Eca! Pré-adolescente, nem peito tem ainda...
Podólatra 2: - espera aí! Estamos falando da mesma coisa?
Podólatra 1: - sei lá, cara, eu acho meio doentio essa coisa de curtir menina de doze anos...
Podólatra 2: - quê? Nãããão! Que idade você considera que é pré-adolescente?
Podólatra 1: - como assim que eu considero? É dos onze aos treze. Está no ECA, eu acho.
Podólatra 2: - onze? Não mesmo! É a partir dos dezesseis, não é?
Anti-Podólatra: - claro que não! E a pessoa vira adolescente quando? Aos dezoito?
Podólatra 2: - eu estava me referindo a garotas de dezesseis anos... dezesseis tudo bem, né?
Podólatra 1: - é...
Anti-Podólatra: - desde que sejam bem desenvolvidas. Que susto, cara, não faz mais isso com a gente.
Podólatra 1: - imagina se alguém ouvisse isso o que você disse?
Podólatra 2: - tem razão, tem razão...
Anti-Podólatra: - que merda, a gente só falando besteira a noite toda... de que adianta? De que nos acrescenta?
Podólatra 1: - tá certo. O mundo não é só pés e ruivas e garotas de dezesseis anos...
Anti-Podólatra: - bem desenvolvidas.
Podólatra 1: - ...bem desenvolvidas, isso. Vamos mudar o assunto.
No bar, há uma televisão onde está sendo exibido um noticiário. Na tela, o presidente da França.
Anti-Podólatra: - é isso! Vamos falar de política mundial!
Podólatra 2: - isso!
Todos olham para a televisão. Silêncio. Então:
Podólatra 1: - do Sarkozy eu não sei, mas aquela Carla Bruni tem um pezinho...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O tio chato

É universal: todo mundo tem um tio gordo, careca, beberrão, que depois dos churrascos de domingo dorme no sofá da sua sala e, sempre que o vê, faz a fatídica pergunta:
- E as menininhas?
Ah, ele sempre quer saber das menininhas. O seu tio não dorme sem antes saber das menininhas. Ele poderia puxar assunto sobre tudo: política, economia, cinema europeu. Mas não. Ele é um tio descolado. Ele quer provar que é legal. Ele quer saber é das menininhas.
- E aí? E as menininhas?
Talvez o tio pense que precise conversar sobre coisas que você se constrange de falar com seu pai. Por algum motivo, que só é compreensível para o seu tio, é menos embaraçoso você falar sobre isso com ele. O que não faz sentido, porque numa regra geral os tios que fazem esse tipo de pergunta são os que você tem menos intimidade. Talvez esse seja o jeito que o tio chato vê de se aproximar de você, o sobrinho. Só que o que você menos quer é bater papo com alguém da família sobre sua vida sexual. Ou a falta dela.
- E aí? Como é que andam as menininhas?
- É, pois é...
E o que mais ele espera de resposta? Um "pois é" é muitas vezes usado para cortar o assunto sem ser grosso, e, falando francamente, não há muito mais opções para responder a esse tipo de pergunta. Físicos e estudiosos já pesquisaram respostas melhores, mas, por mais capenga que seja, a melhor solução encontrada ainda é o "pois é". Um "pois é" com um sorriso sem graça, e torça para que o assunto morra logo.
Mas não. O verdadeiro tio chato não desiste fácil. Ele vai tentar emendar com uma pergunta mais direta, mais incisiva.
- Pois é, tio...
- Tá se dando bem com as menininhas ou não?
No que se segue uma risada divertida porém debochada do tio. Você ri junto, enquanto imagina como seria bom se uma fuinha selvagem aparecesse agora mesmo, nesse instante, e pulasse na cara do seu tio. Você tem vontade de fazer exatamente o que a fuinha faria. O tio termina de se deliciar com a risada, e fica olhando pra você, ainda sorrindo, esperando uma resposta.
-E aí?
Se você está feliz com o seu desempenho atual com as "menininhas", então você pode contar para o seu tio, sem problemas. Mas você não estará. Não, não, pois a lei física que rege a pergunta das menininhas diz que o seu tio só a perguntará para você quando você não estiver se dando bem com as menininhas. Você, na sua passagem da infância para a adolescência, quando existe a vontade mas não há condescência do sexo oposto, ouvirá muitas vezes a pergunta do tio chato. Quando você abandonar essa fase e virar um garanhão, o seu tio nunca mais vai perguntá-lo sobre as menininhas. Caso você cresça e continue um merda, a pergunta o seguirá até a morte. De um ou do outro.
Neste caso só há uma opção: mentir.
- Ah, vão bem, vão bem.
- Arrá, rapaz. E são muitas?
- Ô. Uma atrás da outra.
Pode ser mais categórico:
- Estou muitíssimo satisfeito com o meu desempenho com as ditas "menininhas". Obrigado por perguntar.
Ou desistir de vez e ser sincero:
-Não tio. Não pego ninguém. Na verdade, sou um repelente de mulheres. Se eu fosse um imã, a minha polaridade seria inversa a da delas. Eu permanentemente as afasto da minha volta. Ultimamente, então, estou numa fase em que não pego nem resfriado. É sério, neste inverno todo mundo lá em casa pegou, mas eu não. Nem os vírus me querem. Sinto muito.
Se você responder assim o seu tio certamente nunca mais fará semelhante pergunta. Mas se ele continuar, não há opção a não ser pular na cara dele como uma fuinha selvagem.

***

Recentemente estávamos falando sobre esse tópico no programa Congestão, e fiquei feliz quando soube, pela minha amiga Marcella, que as mulheres possuem uma versão feminina do tio chato. Bom, não exatamente feliz, mas senti que o peso diminuiu ao saber que este fardo é compartilhado com o sexo feminino. Só que no caso delas pode ser a avó, e não a tia. E a pergunta é mais agressiva:
- E os namoradinhos, netinha?
Só que a pergunta é feita não de modo descontraído, tipo "e os namoradinhos, rárá", mas com um tom inquisidor. E os namoradinhos? Onde estão os namoradinhos? Por que eu nunca vejo você com um homem? E às vezes a pergunta é seguida de uma afirmação, quase que uma ameaça:
- Ah, se eu fosse você eu ia atrás de algum homem...
- Ah, sim, vó, pode deixar, hoje eu vou pra festa e vou dar para o primeiro que aparecer. Quer saber, para o segundo também. E pra mais quem quiser. Inclusive, vou chegar já anunciando: "dou pra quem quiser". Vai encher de homem em volta. Aí eu compenso todas as vezes que eu te decepcionei. Tá bom pra senhora? Não é isso o que a senhora quer?
Às vezes um pouquinho de ironia também é bom.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Classe B

A Classe B se vê ameaçada. Seu espaço está sendo ocupado pela Classe C, que cresce desenfreadamente. A Classe C está tomando coisas que antes eram exclusividade da Classe B e A: máquina digital, computador, DVD player. O celular já foi perdido há tempos. A Classe B não gosta de dividir com a Classe C. A Classe C é chinela. A Classe C não tem cultura. A Classe C contamina os setores que antes eram um ponto de segurança da Classe B.
Um exemplo é a internet. A Classe B considera a inclusão digital a pior ideia da história. Antes, a Classe B era obrigada a se misturar com a Classe C durante o dia-a-dia, mas pelo menos o reduto virtual era exclusivo para os mais abonados. Agora, com surtos de lan houses nas vilas e computadores com acesso a internet com preços, bem, acessiveis, a Classe B tem que suportar milhares de perfis da Classe C poluindo o Orkut. E a Classe B não gosta de suportar. Ela já tem que suportar não ser Classe A, e agora ainda tem que suportar a Classe C, invadindo o seu espaço. A Classe B jura que, da próxima vez que ver um perfil no Orkut de alguém com o nome terminado com "son", ela vai se dar um tiro. Estejam avisados.

***

Esse ódio vem muito de uma crise de identidade: se a Classe C está virando a Classe B, e a Classe B não está virando a Classe A, então o que ela vai ser? A Classe B se considera a Classe A com menos dinheiro. Com o seu espaço tomado pela Classe C, ela naturalmente vai procurar por espaços onde a Classe C não possa entrar. Só que a Classe B não tem dinheiro para entrar nestes espaços. Estes espaços pertencem à Classe A, que assiste ao dilema da amiga de cima de sua cobertura, com um sorrisinho e uma taça de champagne na mão. Então aí está o problema: a Classe B quer sair do mundo Classe C e viver no mundo Classe A, mas não possui dinheiro. Então ela tem duas opções: ou se resigna a viver com a Classe C ou segue enganando até onde puder.

- E aí, Bê! Vamos na nova casa de festas que abriu ontem?
- Vamos! Quanto é a entrada?
- Só 20 contos.
- Irc! Quer dizer, não sei. Talvez a gente pudesse ir em outro lugar. Ouvi dizer que lá não é muito legal...
- Se entrar antes da meia-noite sai por 15.
- Argh... tá, tá bem. Só que eu não vou gastar em bebida. Sabe como é, estou tomando um remédio lá, não dá pra ingerir álcool junto...
- Ah, ok.
- E olha só, não rola uma carona? Eu até iria de táxi, na boa, mas sabe como é, eu tenho ouvido essas histórias sobre estupradores, podem ser qualquer um... vai saber, né.
- Ah, sim.
- Melhor não arriscar.

domingo, 25 de outubro de 2009

O jardim

Lembro da minha infância querida, correndo no jardim de casa com os meus amigos. Sentia o vento no rosto, a grama no chão e o cheiro das plantas. As plantas têm perfume: não só as flores, mas também as árvores, as folhagens. Era tudo uma profusão de cores e cheiros, uma sinestesia de sensações. Era livre, e, acima de tudo, era feliz. Era muito fácil ser feliz, então: não precisava mais do que o canto dos pássaros para me fazer sorrir.
Na primavera de meus cinco anos, tive meu primeiro ataque de rinite crônica. Problema comum, mas o meu era pior que o normal. Vocês devem imaginar o que foi para mim passar uma estação inteira sem sentir os perfumes que antes me faziam tão feliz. Correr e pular e brincar com meus amigos não tinha mais a mesma graça, era uma experiência incompleta. No mesmo ano, ganhei um violão de meu pai. Arranhar suas cordas me dirvertia, gostava da sensação de sentir o ressoar das cordas soltas na caixa do instrumento, apesar de, em tão jovem idade, não saber tocar nada. Mas não precisava de mais do que isso. Só a sensação de sentir-me dono daquele som me fazia rei, de poder eu brincar com as notas, mesmo fazendo algo que não poderia ser chamado de música. O violão, naquela época, era literalmente um brinquedo meu.
Aos sete anos descobri a música clássica. Chopin, Mozart, Bach, Tchaikovsky. Quanto mais eu descobria, mais me interessava. Comecei a encarar a música a sério. Depois de um tempo, só ouvir não me satisfazia: sentia o ímpeto de eu mesmo gerar aquela música. Peguei meu violão e decidi aprender a tocá-lo de verdade. Com a ajuda de um professor, treinava todos os dias. Castigava meus dedos, mas gostava. Para cada calo, para cada bolha, sentia-me mais feliz, mais experiente. Estes foram os momentos que, mais tarde, levariam a tornar-me músico clássico.
Minha rinite piorou. Agora ela durava mais da metade do ano. Os médicos disseram que a situação iria continuar ruim até os meus 11, 12 anos. A partir daí, iria melhorar. Para amenizar, os meus pais tentaram medicação homeopática. Não funcionou. Enquanto isso, continuava tocando o meu violão. Entrei para a orquestra da escola. Era o mais jovem dos músicos, mas um dos melhores. Meus professores viram o meu talento e encorajaram que eu seguisse carreira. Foi o que eu fiz.
Terminei o segundo grau sem ter me curado da rinite. Mudei-me para a capital e ingressei na faculdade de Música. Adorava aquela atmosfera. Por todo o lado respirava-se música. Tocava os clássicos durante o dia e à noite escrevia secretamente minhas próprias composições. Queria reproduzir a sensação que eu tinha ao ouvir o canto dos pássaros em minha infância. Aquilo era a verdadeira música: sem escala, sem métrica, mas emociona a quem ouve. Meus mestres me tinham em grande estima. Terminei o curso já indicado para tocar em uma grande orquestra. Apesar de estar junto com grandes talentos, esforcei-me para me destacar, e tive sucesso. O meu sucesso causou ciúmes em muitos músicos. Havia muita competição, muita gente querendo passar por cima dos outros. Eu estava muito cedo ocupando um lugar de prestígio. Não era olhado com bons olhos. Meus veteranos me esnobavam. Meus comtemporâneos queriam o meu lugar. Antigamente era mais fácil fazer amigos. Isso me incomodava.
Por volta dessa época comecei a perder a visão. Começou aos poucos, como apenas um desfoque. Imaginei que uns óculos curassem esse problema, mas, por me dedicar integralmente à música, nunca achava tempo para ir a um oculista. Depois de uns três anos a situação se tornou insustentável, e tive que me consultar. A resposta me atingiu violentamente. Eu ia ficar cego. Não havia nada a ser feito. Segundo o médico, eu ainda tinha algum tempo de visão, anos, talvez uns dez. Por ensaiar muito tempo, conseguia decorar as partituras, o que fez com que a minha pouca visão não fosse problema. Conseguia enganar, e, enfim, ainda tinha a minha música, o que me servia de consolo.
Por todo esse tempo a minha rinite não se curou. Tentei alguns remédios errados, que acabaram me prejudicando mais ainda, viciando meu septo nasal. Agora, eles fechavam completamente caso eu não usasse os remédios todos os dias. Fiz uma cirurgia para corrigir o septo, e por algum tempo pareceu ter funcionado. A mucosa acabou crescendo de volta, e fiquei tão ruim quanto antes. Nos piores dias eu não conseguia sentir nem o gosto da comida. Imagine ter o nariz bloqueado todos os dias de sua vida. Era uma sensação parecida com a que eu sentia.
Minha visão acabou durando mais do que o imaginado. Antes de perdê-la de vez, resolvi voltar para a casa onde eu passei a minha infância. Precisava recuperar as lembranças. Fui ao meu jardim e vi a árvore que eu escalava. Ela estava relativamente menor agora, para a minha percepção de adulto, mas ainda era imponente. Se já não tivesse passado da idade, me encorajaria a subi-la mais uma vez. Não consegui sentir o perfume das plantas. Passei a mão pela grama, mas minhas mãos calejadas de décadas de música já não tinham a mesma sensibilidade de antes.
Um dia, finalmente aconteceu: acordei sem ver nada. Tudo escuro. Me mantive calmo. Já estava esperando este momento há anos. Não tive medo. Quando souberam, anos atrás, que eventualmente perderia a visão, fui convidado a participar de uma famosa orquestra de cegos que se apresentava nas maiores cidades do mundo. Não respondi o convite, pois mesmo quase cego ainda conseguia acompanhar a orquestra em que trabalhava como nenhum outro, mas nessa manhã senti que era hora de uma mudança. Estava na hora de começar uma outra fase de minha vida. Aceitei o convite. Desde pequeno sonhava em viajar pelo mundo, conhecer Nova York, Paris, Lisboa, e agora finalmente poderia fazê-lo. O fiz e não conheci nada. Apenas ficava lá, preso no meu canto escuro, acompanhando a música com minhas mãos já velhas. E assim passei os anos, pensando se algum dia veria ou sentiria alguma coisa. Tinha saudade de viver. A única coisa que ainda me prendia ao mundo era a música. E com a música vivi por mais vários anos.
Então, algo que eu esperava aconteceu. Algo que eu temia há muito tempo, inconscientemente, desde que eu era um garoto que ficava deitado no sofá ouvindo Tchaikovsky, mas que tomei consciência com a chegada da minha velhice, e aguardava ansiosamente. Fiquei surdo. Sem luz, sem tato, sem música. Então já estava no final da minha vida. De algum jeito, sabia que isso iria acontecer. Seria estranho se não acontecesse. E, falando francamente, fiquei feliz que aconteceu. Em júbilo. Não tinha mais nenhum vínculo com o mundo. Agora era só eu, sem sentir nada, sem nada para me dizer o que era o mundo real. Agora, quem dizia o que era o mundo real era eu. E eu dizia que ele tinha cheiro de grama. Eu dizia que ele tinha cantos de pássaro. Eu dizia que ele era muito verde, e também muito azul, muito claro e muito brilhante. E que eu, obviamente, era jovem para aproveitar tudo isso. Desde meus cinco anos, nunca fui tão feliz.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sketchs

O Márcio não gostava de morenas.
- Como assim, você não gosta de morenas?
- Não gosto, pronto.
- Mas por morenas você diz...
- Mulheres de cabelo escuro. Morenas. Não gosto.
- Mas todo mundo gosta de morenas!
- Todo mundo não. Eu não gosto!
Eliminando-se as morenas, sobravam as loiras e as ruivas. Mas as morenas são maioria no mundo. Descartando-se as morenas, estaria se reduzindo em muito as possibilidades em termos de mulher. Mas não era nem esse o caso: o problema é que todo mundo gosta de morenas. Tem homem que não gosta de mulher alta, de mulher baixa, de mulher magra ou gorda, mas não gostar de morenas, como assim? Não gostar de morenas é não gostar de mulher. E não era nem questão de preferência:
- Saquei. Tu é daqueles que preferem as loiras.
- Não. Eu só não gosto de morenas. Acho feio, mulher de cabelo escuro.
- Mas, sei lá, se uma morenaça se atirasse no seu colo...
- Eu diria "com licença" e tirava ela de lá. De morena eu não gosto.
Depois de muito insistirem, conseguiram que o Márcio confessasse: seu ódio por morenas não vinha de nascença. Ele veio de um relacionamento que teve com uma namorada antiga. Morena.
- Ela me machucou mesmo, sabem - disse o Márcio, emocionado. - Nunca me recuperei. Agora vejo ela em todas as morenas que eu encontro. Isso me deixa mal.
Mas, ao invés da compreensão que esperava, o Márcio virou chacota para os amigos. Que passaram a folgá-lo sempre:
- Márcio, levei um fora de uma mina com dois braços. Agora só fico com manetas.
- Sei, sei.
- E a minha ex-namorada, que tinha cabelo? Sabe como é difícil pra mim achar uma mulher careca?
- Não enche.
- Além disso, ela tinha uma arcada dentária completa! Completa! Eu olho para todos os lados e vejo essas mulheres, com seus cabelos e suas dentições regulares, e me sinto tão oprimido...
- Ai, ai...

***

O menino chegou na menina na festa.
- Olha só, posso falar contigo?
- Eu? - disse a menina, dando um risinho.
- É, você mesmo. Eu estava te olhando faz tempo, sabe?
- Hihi, é mesmo?
- É. Sabe, a gente está sempre à procura de uma pessoa legal, de alguém que nos entenda... e sei lá, eu vi você, e achei que você era essa pessoa.
- É sério? Hihihi.
- Então, eu pensei em vir aqui falar contigo, mas não tinha coragem... mas aí eu pensei "ora, se ela é tão legal assim como parece, ela vai me entender, ela não vai dizer não...".
- Dizer não pra quê?
- Quer saber mesmo?
- Ah, eu quero!
- É que eu quero te pedir uma coisa...
A menina passa as mãos no cabelo.
- Ai, fala logo, fala!
O menino se aproxima dela. Põe os lábios perto de seu ouvido. Fala bem baixinho:
- Me empresta dois reais?
- Hein?!
- É só o que falta pra eu poder comprar uma cerveja. Tô meio sem dinheiro.
- Tá falando sério?
- Eu sei, é meio chato pedir dinheiro pra quem não se conhece, mas tô sem ninguém pra pedir e achei que você entenderia. Tô precisando mesmo, sabe?
- Ahn...
- Eu só vim pedir pra você porque você parecia bem legal. E aí, acertei?
- Ahn... peraí, não sei se tenho... vou dar uma olhada...
Ela procura freneticamente na bolsa por dois reais.
- Ahn... acho que não tenho... não tô achando.
- Não tem, então?
- Não, não achei. Desculpa, tá?
- Que é isso. Não faz mal.
- Tá, mas era só isso?
- Sim. Mas valeu de qualquer jeito. Agora com licença, vou voltar pra minha mina. Tchau.
- Ahn, tchau.

***

Luiz Fábio é um homem normal. 32 anos, classe média-alta, casado com dona Lurdes Maria, 30 anos, excelente dona de casa. Mora num condomínio decente, paga as suas contas em dia, gosta de cochilar ao sol e ler jornal de manhã. Tudo muito normal. A única coisa atípica da vida de Luiz Fábio é que ele tem que dividir o corpo com sua outra personalidade, um aborígene chamado Dingaal.
- É um problema como qualquer outro. Alguns sofrem de rinite, outros de esquizofrenia aguda - explica Luis Fábio.
O problema começou na passagem da infância para a adolescência. Ele conta que a primeira vez que virou Dingaal foi numa festinha da oitava série.
- Os meninos estavam tirando as meninas pra dançar. Fiquei muito nervoso. Aí ele tomou o meu lugar.
Dingaal se adonou do corpo de Luis Fábio e tentou seduzir as meninas com danças tribais.
- O pessoal achou muito engraçado. Pensaram que eu estava bêbado, o que não fazia sentido, porque na festa só tinha Coca-Cola - explica. Na mesma festa, acabou beijando uma menina pela primeira vez. De início ficou furioso, pois quem a beijou na verdade não havia sido ele - e quer algo mais decepcionante do que ficar de fora do seu próprio primeiro beijo? Mas aos poucos acabou cativado pelo seu alterego, a quem chama carinhosamente de "Didi".
Mas tentar viver em sociedade sendo parcialmente um aborígene não requer um certo esforço? Luis Fábio se prepara para responder, mas então seus olhos se esbugalham, levanta de seu sofá e começa a pular ensandecidamente, balbuciando palavras em uma língua desconhecida. Depois, para, se acalma e senta de novo.
- Me desculpem, foi o Didi. - explica ele. - Ele é assim: fica louco na frente de estranhos. Acho que é o jeito dele de demonstrar nervosismo. Imagino que seja um aborígene meio sociofóbico, bem diferente de mim, que sou comunicativo. Mas ele nunca quis conversar sobre isso comigo.
Respondendo à pergunta anterior, Luis Fábio diz que é difícil, mas só porque há muito preconceito por Dingaal ser um aborígene.
- As pessoas pensam que só porque ele vem de uma cultura diferente não pode conviver dentro da nossa sociedade. Isso é muito triste. Didi entende as regras da nossa sociedade, e as respeita. Se bem que, verdade seja dita, ele ainda caça carros de vez em quando. Já tive que pagar vários reparos por causa dele. Ah, esse Didi me racha.
E quanto à vida sexual de um esquizofrênico? Neste ponto, Luis Fábio nos corta:
- A Lurdes Maria é minha mulher. E ai de ele se meter.