domingo, 25 de outubro de 2009

O jardim

Lembro da minha infância querida, correndo no jardim de casa com os meus amigos. Sentia o vento no rosto, a grama no chão e o cheiro das plantas. As plantas têm perfume: não só as flores, mas também as árvores, as folhagens. Era tudo uma profusão de cores e cheiros, uma sinestesia de sensações. Era livre, e, acima de tudo, era feliz. Era muito fácil ser feliz, então: não precisava mais do que o canto dos pássaros para me fazer sorrir.
Na primavera de meus cinco anos, tive meu primeiro ataque de rinite crônica. Problema comum, mas o meu era pior que o normal. Vocês devem imaginar o que foi para mim passar uma estação inteira sem sentir os perfumes que antes me faziam tão feliz. Correr e pular e brincar com meus amigos não tinha mais a mesma graça, era uma experiência incompleta. No mesmo ano, ganhei um violão de meu pai. Arranhar suas cordas me dirvertia, gostava da sensação de sentir o ressoar das cordas soltas na caixa do instrumento, apesar de, em tão jovem idade, não saber tocar nada. Mas não precisava de mais do que isso. Só a sensação de sentir-me dono daquele som me fazia rei, de poder eu brincar com as notas, mesmo fazendo algo que não poderia ser chamado de música. O violão, naquela época, era literalmente um brinquedo meu.
Aos sete anos descobri a música clássica. Chopin, Mozart, Bach, Tchaikovsky. Quanto mais eu descobria, mais me interessava. Comecei a encarar a música a sério. Depois de um tempo, só ouvir não me satisfazia: sentia o ímpeto de eu mesmo gerar aquela música. Peguei meu violão e decidi aprender a tocá-lo de verdade. Com a ajuda de um professor, treinava todos os dias. Castigava meus dedos, mas gostava. Para cada calo, para cada bolha, sentia-me mais feliz, mais experiente. Estes foram os momentos que, mais tarde, levariam a tornar-me músico clássico.
Minha rinite piorou. Agora ela durava mais da metade do ano. Os médicos disseram que a situação iria continuar ruim até os meus 11, 12 anos. A partir daí, iria melhorar. Para amenizar, os meus pais tentaram medicação homeopática. Não funcionou. Enquanto isso, continuava tocando o meu violão. Entrei para a orquestra da escola. Era o mais jovem dos músicos, mas um dos melhores. Meus professores viram o meu talento e encorajaram que eu seguisse carreira. Foi o que eu fiz.
Terminei o segundo grau sem ter me curado da rinite. Mudei-me para a capital e ingressei na faculdade de Música. Adorava aquela atmosfera. Por todo o lado respirava-se música. Tocava os clássicos durante o dia e à noite escrevia secretamente minhas próprias composições. Queria reproduzir a sensação que eu tinha ao ouvir o canto dos pássaros em minha infância. Aquilo era a verdadeira música: sem escala, sem métrica, mas emociona a quem ouve. Meus mestres me tinham em grande estima. Terminei o curso já indicado para tocar em uma grande orquestra. Apesar de estar junto com grandes talentos, esforcei-me para me destacar, e tive sucesso. O meu sucesso causou ciúmes em muitos músicos. Havia muita competição, muita gente querendo passar por cima dos outros. Eu estava muito cedo ocupando um lugar de prestígio. Não era olhado com bons olhos. Meus veteranos me esnobavam. Meus comtemporâneos queriam o meu lugar. Antigamente era mais fácil fazer amigos. Isso me incomodava.
Por volta dessa época comecei a perder a visão. Começou aos poucos, como apenas um desfoque. Imaginei que uns óculos curassem esse problema, mas, por me dedicar integralmente à música, nunca achava tempo para ir a um oculista. Depois de uns três anos a situação se tornou insustentável, e tive que me consultar. A resposta me atingiu violentamente. Eu ia ficar cego. Não havia nada a ser feito. Segundo o médico, eu ainda tinha algum tempo de visão, anos, talvez uns dez. Por ensaiar muito tempo, conseguia decorar as partituras, o que fez com que a minha pouca visão não fosse problema. Conseguia enganar, e, enfim, ainda tinha a minha música, o que me servia de consolo.
Por todo esse tempo a minha rinite não se curou. Tentei alguns remédios errados, que acabaram me prejudicando mais ainda, viciando meu septo nasal. Agora, eles fechavam completamente caso eu não usasse os remédios todos os dias. Fiz uma cirurgia para corrigir o septo, e por algum tempo pareceu ter funcionado. A mucosa acabou crescendo de volta, e fiquei tão ruim quanto antes. Nos piores dias eu não conseguia sentir nem o gosto da comida. Imagine ter o nariz bloqueado todos os dias de sua vida. Era uma sensação parecida com a que eu sentia.
Minha visão acabou durando mais do que o imaginado. Antes de perdê-la de vez, resolvi voltar para a casa onde eu passei a minha infância. Precisava recuperar as lembranças. Fui ao meu jardim e vi a árvore que eu escalava. Ela estava relativamente menor agora, para a minha percepção de adulto, mas ainda era imponente. Se já não tivesse passado da idade, me encorajaria a subi-la mais uma vez. Não consegui sentir o perfume das plantas. Passei a mão pela grama, mas minhas mãos calejadas de décadas de música já não tinham a mesma sensibilidade de antes.
Um dia, finalmente aconteceu: acordei sem ver nada. Tudo escuro. Me mantive calmo. Já estava esperando este momento há anos. Não tive medo. Quando souberam, anos atrás, que eventualmente perderia a visão, fui convidado a participar de uma famosa orquestra de cegos que se apresentava nas maiores cidades do mundo. Não respondi o convite, pois mesmo quase cego ainda conseguia acompanhar a orquestra em que trabalhava como nenhum outro, mas nessa manhã senti que era hora de uma mudança. Estava na hora de começar uma outra fase de minha vida. Aceitei o convite. Desde pequeno sonhava em viajar pelo mundo, conhecer Nova York, Paris, Lisboa, e agora finalmente poderia fazê-lo. O fiz e não conheci nada. Apenas ficava lá, preso no meu canto escuro, acompanhando a música com minhas mãos já velhas. E assim passei os anos, pensando se algum dia veria ou sentiria alguma coisa. Tinha saudade de viver. A única coisa que ainda me prendia ao mundo era a música. E com a música vivi por mais vários anos.
Então, algo que eu esperava aconteceu. Algo que eu temia há muito tempo, inconscientemente, desde que eu era um garoto que ficava deitado no sofá ouvindo Tchaikovsky, mas que tomei consciência com a chegada da minha velhice, e aguardava ansiosamente. Fiquei surdo. Sem luz, sem tato, sem música. Então já estava no final da minha vida. De algum jeito, sabia que isso iria acontecer. Seria estranho se não acontecesse. E, falando francamente, fiquei feliz que aconteceu. Em júbilo. Não tinha mais nenhum vínculo com o mundo. Agora era só eu, sem sentir nada, sem nada para me dizer o que era o mundo real. Agora, quem dizia o que era o mundo real era eu. E eu dizia que ele tinha cheiro de grama. Eu dizia que ele tinha cantos de pássaro. Eu dizia que ele era muito verde, e também muito azul, muito claro e muito brilhante. E que eu, obviamente, era jovem para aproveitar tudo isso. Desde meus cinco anos, nunca fui tão feliz.

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