terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sketchs

O Márcio não gostava de morenas.
- Como assim, você não gosta de morenas?
- Não gosto, pronto.
- Mas por morenas você diz...
- Mulheres de cabelo escuro. Morenas. Não gosto.
- Mas todo mundo gosta de morenas!
- Todo mundo não. Eu não gosto!
Eliminando-se as morenas, sobravam as loiras e as ruivas. Mas as morenas são maioria no mundo. Descartando-se as morenas, estaria se reduzindo em muito as possibilidades em termos de mulher. Mas não era nem esse o caso: o problema é que todo mundo gosta de morenas. Tem homem que não gosta de mulher alta, de mulher baixa, de mulher magra ou gorda, mas não gostar de morenas, como assim? Não gostar de morenas é não gostar de mulher. E não era nem questão de preferência:
- Saquei. Tu é daqueles que preferem as loiras.
- Não. Eu só não gosto de morenas. Acho feio, mulher de cabelo escuro.
- Mas, sei lá, se uma morenaça se atirasse no seu colo...
- Eu diria "com licença" e tirava ela de lá. De morena eu não gosto.
Depois de muito insistirem, conseguiram que o Márcio confessasse: seu ódio por morenas não vinha de nascença. Ele veio de um relacionamento que teve com uma namorada antiga. Morena.
- Ela me machucou mesmo, sabem - disse o Márcio, emocionado. - Nunca me recuperei. Agora vejo ela em todas as morenas que eu encontro. Isso me deixa mal.
Mas, ao invés da compreensão que esperava, o Márcio virou chacota para os amigos. Que passaram a folgá-lo sempre:
- Márcio, levei um fora de uma mina com dois braços. Agora só fico com manetas.
- Sei, sei.
- E a minha ex-namorada, que tinha cabelo? Sabe como é difícil pra mim achar uma mulher careca?
- Não enche.
- Além disso, ela tinha uma arcada dentária completa! Completa! Eu olho para todos os lados e vejo essas mulheres, com seus cabelos e suas dentições regulares, e me sinto tão oprimido...
- Ai, ai...

***

O menino chegou na menina na festa.
- Olha só, posso falar contigo?
- Eu? - disse a menina, dando um risinho.
- É, você mesmo. Eu estava te olhando faz tempo, sabe?
- Hihi, é mesmo?
- É. Sabe, a gente está sempre à procura de uma pessoa legal, de alguém que nos entenda... e sei lá, eu vi você, e achei que você era essa pessoa.
- É sério? Hihihi.
- Então, eu pensei em vir aqui falar contigo, mas não tinha coragem... mas aí eu pensei "ora, se ela é tão legal assim como parece, ela vai me entender, ela não vai dizer não...".
- Dizer não pra quê?
- Quer saber mesmo?
- Ah, eu quero!
- É que eu quero te pedir uma coisa...
A menina passa as mãos no cabelo.
- Ai, fala logo, fala!
O menino se aproxima dela. Põe os lábios perto de seu ouvido. Fala bem baixinho:
- Me empresta dois reais?
- Hein?!
- É só o que falta pra eu poder comprar uma cerveja. Tô meio sem dinheiro.
- Tá falando sério?
- Eu sei, é meio chato pedir dinheiro pra quem não se conhece, mas tô sem ninguém pra pedir e achei que você entenderia. Tô precisando mesmo, sabe?
- Ahn...
- Eu só vim pedir pra você porque você parecia bem legal. E aí, acertei?
- Ahn... peraí, não sei se tenho... vou dar uma olhada...
Ela procura freneticamente na bolsa por dois reais.
- Ahn... acho que não tenho... não tô achando.
- Não tem, então?
- Não, não achei. Desculpa, tá?
- Que é isso. Não faz mal.
- Tá, mas era só isso?
- Sim. Mas valeu de qualquer jeito. Agora com licença, vou voltar pra minha mina. Tchau.
- Ahn, tchau.

***

Luiz Fábio é um homem normal. 32 anos, classe média-alta, casado com dona Lurdes Maria, 30 anos, excelente dona de casa. Mora num condomínio decente, paga as suas contas em dia, gosta de cochilar ao sol e ler jornal de manhã. Tudo muito normal. A única coisa atípica da vida de Luiz Fábio é que ele tem que dividir o corpo com sua outra personalidade, um aborígene chamado Dingaal.
- É um problema como qualquer outro. Alguns sofrem de rinite, outros de esquizofrenia aguda - explica Luis Fábio.
O problema começou na passagem da infância para a adolescência. Ele conta que a primeira vez que virou Dingaal foi numa festinha da oitava série.
- Os meninos estavam tirando as meninas pra dançar. Fiquei muito nervoso. Aí ele tomou o meu lugar.
Dingaal se adonou do corpo de Luis Fábio e tentou seduzir as meninas com danças tribais.
- O pessoal achou muito engraçado. Pensaram que eu estava bêbado, o que não fazia sentido, porque na festa só tinha Coca-Cola - explica. Na mesma festa, acabou beijando uma menina pela primeira vez. De início ficou furioso, pois quem a beijou na verdade não havia sido ele - e quer algo mais decepcionante do que ficar de fora do seu próprio primeiro beijo? Mas aos poucos acabou cativado pelo seu alterego, a quem chama carinhosamente de "Didi".
Mas tentar viver em sociedade sendo parcialmente um aborígene não requer um certo esforço? Luis Fábio se prepara para responder, mas então seus olhos se esbugalham, levanta de seu sofá e começa a pular ensandecidamente, balbuciando palavras em uma língua desconhecida. Depois, para, se acalma e senta de novo.
- Me desculpem, foi o Didi. - explica ele. - Ele é assim: fica louco na frente de estranhos. Acho que é o jeito dele de demonstrar nervosismo. Imagino que seja um aborígene meio sociofóbico, bem diferente de mim, que sou comunicativo. Mas ele nunca quis conversar sobre isso comigo.
Respondendo à pergunta anterior, Luis Fábio diz que é difícil, mas só porque há muito preconceito por Dingaal ser um aborígene.
- As pessoas pensam que só porque ele vem de uma cultura diferente não pode conviver dentro da nossa sociedade. Isso é muito triste. Didi entende as regras da nossa sociedade, e as respeita. Se bem que, verdade seja dita, ele ainda caça carros de vez em quando. Já tive que pagar vários reparos por causa dele. Ah, esse Didi me racha.
E quanto à vida sexual de um esquizofrênico? Neste ponto, Luis Fábio nos corta:
- A Lurdes Maria é minha mulher. E ai de ele se meter.

2 comentários:

  1. o final da do menino seria + legal c ele falac "alem d feia eh pobre" ahuhauhaua

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  2. Tenho um Dingaal coexistindo com o Fagner. Ele às vezes tenta sair e acaba por incinerar meu 8 mm. Estou tentando reter este espírito maligno, este "animus" dentro das jaulas do meu conservadorismo.



    PS: preciso treinar o Digaal e deixá-lo exteriorizar-se um pouco quando vou em casas noturnas... O Candinho, meu lado puritano, não está permitindo que este ser pagão saia à baila.

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