- Credo, Ronaldo! Põe a mão na frente da boca quando você boceja!
- Por quê?
- Ora, "por quê"... porque sim! Porque é o que se faz quando se boceja.
- Não entendo vocês...
E não era só isso o que o Ronaldo fazia de estranho. Comia massa sem enrolá-la com o garfo: usava a faca como uma alavanca, levantava a parte anterior da massa e jogava a parte posterior para dentro da boca com o garfo.
- Credo, Ronaldo. Porque você não enrola a massa com o garfo? Bem mais fácil.
- Como?
- Assim, ó.
- Ah...
Uma vez, um amigo mostrou uma máquina fotográfica para o Ronaldo. Analógica, daquelas de filme. Enquanto explicava as vantagens de uma máquina de filme sobre uma digital, Ronaldo manipulava-a curioso. Por fim, abriu o compartimento do filme.
- Tá louco, cara? Fecha isso!
- Por quê?
- Como "por quê"? Porque senão entra luz e estraga as fotos!
- Ah. Não sabia.
- Como não? Todo mundo sabe disso! Você deve ser a única pessoa do mundo que não sabe! Caramba, cara, tinha umas fotos boas aí...
Ronaldo devolveu a câmera e pediu desculpas, com um sorriso. O seu sorriso era uma coisa perturbadora. De vez em quando, esse amigo pegava o Ronaldo olhando pra ele. Quando seus olhares se encontravam, Ronaldo, ao invés de desviar os olhos, dava aquele sorriso. O amigo falou sobre isso com os outros amigos de Ronaldo, e eles disseram que com eles acontecia o mesmo. Viam Ronaldo encarando-os, e então ele dava esse sorriso.
- Para com esse sorriso, Ronaldo.
- Ué, por quê?
- Porque, sei lá... você fica olhando pra gente e sorrindo... é perturbador...
- Pensei que o sorriso era o sinal mundial da aceitação.
- Como assim?
- Ora, se você acha que está irritando uma pessoa, você dá um sorriso e ele ameniza a situação. Não é assim?
- É, pode ser, mas não faz mais.
***
- Vocês notam que o Ronaldo age de um jeito estranho?
- Ah, sim. Aquele jeito de comer massa...
- Não. O porte dele é estranho. O jeito como ele se mexe, os gestos, não são iguais aos nossos...
- Pior. Parece alguém que veio de outro país...
Ninguém sabia de onde o Ronaldo viera. Mudara-se a uns dois anos para o subúrbio. Os vizinhos o receberam bem, era uma vizinhança onde todos se conheciam e conviviam juntos. Acolheram Ronaldo afetuosamente, apesar de suas estranhices. Não parecia conhecer mais ninguém. Nunca viram-no receber visitas. Tinha um sotaque estranho. Quando perguntavam de onde vinha, limitava-se a dizer que era do interior. De onde?
- Longe. Muito longe.
E não dizia onde.
***
Certa noite, o Juca acordou com sede. Saiu da cama, cambaleante, cuidando para não acordar a mulher, e foi até a cozinha. Tateava as paredes, para não se desequilibrar. Tropeçou no gato. Serviu vagarosamente a água, e foi olhar a janela. Viu um passarinho, a casinha de seu cachorro e uma luz muito forte na casa do Ronaldo, seu vizinho. Ficou olhando o passarinho até que a informação de que a luz forte não era uma coisa comum chegou ao seu cérebro. Uma luz brilhante, vinda de um dos cômodos, no segundo andar. Correu para acordar a mulher. Os dois observaram o fenômeno atônitos. No outro dia, contaram aos outros vizinhos. Uma luz estranha, amarela, espectral... Todos ficaram pensando o que poderia ser aquilo. Mas o próprio Juca tinha uma teoria:
- Pessoal, o Ronaldo é um alien...
E isso explicava tudo, desde a luz até o jeito de comer massa. Os outros ficaram em dúvida. Será? Melhor dar uma chance para o Ronaldo se explicar. Naquela tarde, numa roda de chimarrão, o Juca resolveu perguntar ao próprio sobre o incidente.
- Ah, aquilo? É a minha tevê de plasma nova. O maior modelo da loja. Se quiserem passar lá em casa pra assistir, podem ir.
E continuou sorvendo o seu chimarrão. Ele mexia a bomba como um canudinho de milk-shake. Se fosse terráqueo, ao menos não era gaúcho.
***
De fato o Juca foi até a casa do Ronaldo, e de fato ele tinha uma tevê de plasma, sessenta e tantas polegadas, muito impressionante. Tivera de dar o braço a torcer. Mas esse não foi o fim da visita. Ao passar pela sala, Juca notou algumas folhas com escritas estranhas em cima de uma escrivaninha. Eram símbolos, e Juca desenhou os que se lembrava aos amigos, mais tarde, enquanto confabulavam sobre o Ronaldo. Perguntara na hora o que eram para o Ronaldo, e ele respondera que era um alfabeto russo e que ele estava aprendendo russo.
- Tá, mas alguém aqui sabe dizer se isso aí é russo ou não? - questionou o Fábio, durante a confabulação dos vizinhos.
- Sei lá, mas não me parece, não - defendeu-se o Juca.
- Bom, os russos são meio estranhos - opinou a mulher do Juca - Não duvido que eles usem isso aí. De qualquer jeito, eu tenho uma tia que fala russo. Vou mandar os desenhos pra ela por e-mail pra ver o que ela diz.
Talvez o Ronaldo fosse um russo fugido do país, disseram alguns. O sotaque dele não parecia russo, mas alguém ali sabia como era o sotaque russo? Ninguém sabia.
O William, que desde o início defendeu o Juca na tese do alien, disse que talvez Ronaldo tivesse escolhido o nome "Ronaldo" porque pensou que era um nome comum entre os humanos. Um pouco como Ford Prefect no Guia do Mochileiro das Galáxias, que escolheu o nome Ford por achar que os carros eram as formas de vida dominantes na Terra. Com tantos Ronaldos no futebol e, consequentemente, na mídia, talvez a teoria tivesse fundamento.
***
Na saída para o trabalho, o Juca viu um carro preto estacionado na frente da casa do Ronaldo. Na frente do carro, havia um homem de terno e óculos escuros observando a casa. Nunca tinha visto um homem assim na vizinhança.
- Com licença, posso ajudar? - perguntou ao homem.
- Aqui é a casa onde reside Ronaldo da Silva?
- É aqui sim, mas imagino que ele não esteja...
- Sim. Entendo.
- Quer que eu avise que o senhor passou por aqui?
O homem mudou de postura.
- Não. Não diga nada. Eu voltarei depois.
Ele entrou no carro e foi embora. Juca reparou na placa do carro. Placa branca. Veículo do Governo. Na volta do trabalho, estava pronto para contar à mulher sobre o ocorrido, mas não conseguiu oportunidade: ela o assediou primeiro, com as notícias de sua tia, a que sabia russo. Segundo ela, não havia qualquer coisa parecida com um alfabeto daquele tipo na Rússia. Mas, para não deixar a sobrinha na mão, resolveu dar uma pesquisada na internet, num site que reconhecia imagens e fotos e achava outras imagens semelhantes. Deu um upload nos desenhos que o Juca fez e descobriu uma foto de uma espécie de lataria, com os tais símbolos desenhados. Clicou no link e foi para uma notícia sobre a queda de um suposto disco voador, origem da foto. O disco tinha grafias iguais aos símbolos que Juca havia desenhado, espalhados por toda a lataria.
Naquela noite, Juca não dormiu: ficou olhando a janela, para a casa de Ronaldo, à procura de algum sinal, alguma luz estranha. Resolveu contar ao vizinho sobre o homem de terno do outro dia. Ronaldo não expressou reação, Juca perguntou se estava tudo bem e Ronaldo disse que sim. E deu um sorriso medonho.
***
No outro dia, a Beth veio com a notícia de que o Ronaldo iria se mudar.
- Passei na frente da casa dele, puxei conversa e ele me disse que estava de mudança. Vai embora amanhã. Eu estranhei, saindo assim tão de repente, sem avisar ninguém. Parece alguém fugindo.
O Ronaldo confirmou. Sim, estava de mudança. Ia voltar para a sua terra natal. Quando perguntado sobre o motivo, foi evasivo: falou algo sobre a falta de segurança, sobre não se sentir à vontade no lugar.
- O quê, aqui na vizinhança? O pessoal aqui dorme com a porta destrancada! - argumentou um dos vizinhos.
Mas o Ronaldo estava irredutível. Ia aproveitar para matar a saudade de sua terra. Seja lá aonde isso fosse.
Enquanto o Ronaldo estava em casa arrumando as coisas, o pessoal se reuniu casa da Beth para discutir os últimos acontecimentos. Juca explicou sobre os desenhos e o disco voador, e o engravatado do governo. Até os mais céticos estavam começando a se dobrar. E agora, segundo Juca, o Ronaldo ia voltar para o planeta dele, deixando a Terra para sempre. Que situação, hein?
O William levantou.
- Vou junto.
- Como assim? - surpreendeu-se o Juca.
- Já chega da Terra. Os políticos são podres, o sistema é podre, está tudo indo para o buraco. Quero recomeçar a vida em outra galáxia. E é bom que ninguém me segure.
A Beth admitiu que o William tinha um bom ponto. Com os recursos escassos da Terra, era mais vantajoso mudar de planeta do que continuar vivendo num que está definhando. William concordou.
- E sabe o que mais? O Oscar. O Oscar é uma piada. Guerra ao Terror é um lixo. Eu estava dando uma chance ao planeta, via o Oscar todo ano pensando que iria melhorar, mas não dá mais. Larguei de mão. Fui.
E saiu pela porta. Nunca mais viram o William nem o Ronaldo. E, durante anos, o assunto do Ronaldo ainda era discutido nas rodas de chimarrão. E o Ronaldo, hein? Que fim levou? Deve estar por aí, pelas estrelas. Lembram do jeitão esquisito dele? E todos riam. Sentiam saudades do Ronaldo, e de como ele fez com que suas vidas suburbanas saíssem da mesmisse e virassem mais do que pequenos pontinhos perdidos no universo.
Do William, só o Juca lembrava, de vez em quando, dizendo que um dia havia lhe emprestado um coador de massa e que agora nunca mais o conseguiria de volta.
sábado, 27 de março de 2010
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Mais tarde passarei por aqui, para ler os teus textos. Beijos e uma ótima semana!
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