segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Um homem extraordinário

Fórum Social Mundial, quinto dia. Fim de tarde, procuro alguma palestra para assistir antes de dar o trabalho por encerrado e me encaminhar ao show na prainha do Gasômetro. Acho um painel quase vazio, com uns cinco palestrantes falando para menos de dez pessoas. Resolvo dar uma força. Sento ao lado de um homem, aparentemente um trabalhador simples, provavelmente de algum sindicato, para assistir.
- Sobre o que é o painel? - pergunto a ele.
- Eles estão falando sobre o orçamento participativo - me responde o homem. - é o melhor painel que eu vi nesse fórum, é uma pena que não tenha mais gente.
O homem assiste compenetrado, mas visivelmente ansioso.
- Se eu tivesse uma caneta para anotar essas coisas... - me fala.
Pouco depois, senta-se perto de nós uma mulher. O homem continua atento ao discurso dos palestrantes, e me compadeço de sua necessidade de anotar o que estava sendo dito. Peço para a mulher uma caneta emprestada e, após, pergunto se posso dividi-la com o homem. Este fica muito empolgado com a possibilidade de fazer as suas anotações. Aberta a possibilidade de diálogo comigo, a mulher aponta para um dos palestrantes e me pergunta:
- Esse é quem eu estou pensando?
Era Cézar Busatto, ex-deputado. Confirmo seu nome e a mulher fala, com indignação na voz:
- E o que ele está fazendo aqui?
Não conheço muito do Busatto, mas sei que ele não é exatamente alinhado com a posição ideológica do Fórum. Mas não era a primeira vez que o achava num lugar onde estava aparentemente deslocado. Vi-o no Festival de Publicidade de Gramado ano passado. Na ocasião, ele conduziu um painel sobre o uso da internet na campanha de Obama, onde entrevistou via videoconferência uma americana que participara da campanha do presidente. Não tinha feito um bom papel. Seu inglês era pobre, e não raro traduzia a pergunta de um dos integrantes da mesa de debate de forma errônea para a americana. Tive que sair no meio da entrevista, por vergonha alheia. Do lado de fora, havia uma banquinha vendendo um livro do Busatto sobre sua participação como voluntário na campanha do Obama. Muito conveniente, pensei.
Corta de volta para o Fórum. O próprio Busatto, na sua vez de discursar, diz que algumas pessoas poderiam estranhar sua presença, antes de falar acaloradamente sobre o orçamento participativo. No começo, o homem ao meu lado parece gostar do discurso. Depois, muda de opinião.
- Vê como ele fica brandindo o dedo enquanto fala? Pra quê fazer isso? É uma postura agressiva. É como se fosse um chicote que ele sacode contra a gente.
Ele também percebeu que o Busatto não tem nada a ver com o orçamento participativo, que está lá meio que "de penetra". Percepção notável, que ficou mais notável ainda quando descobri que o homem vinha de Uberlândia e desconhecia totalmente o ex-deputado. Possuía um senso aguçado para ler as pessoas. Comenta comigo os palestrantes como quem assiste a personagens de novela:
- Essa mulher aí é boa. Ela fala com sinceridade e parece realmente preocupada com o orçamento participativo. Aliás, reparou que o professor que está conduzindo o painel não mencionou nada sobre abri-lo para perguntas? Acho que ele não quer que o povo se manifeste. Olha, aquele ali notou, olha como ele fica lembrando o professor de que haverá uma rodada de perguntas, mas o professor não menciona nada. A propósito, você não vai querer usar a caneta?
- Não, não. - respondi - na verdade, peguei mais para o senhor usar do que pra mim.
O homem sorri e me dá um tapinha amigável nas costas. Olho para o papel dele e noto que há um diagrama ao invés de frases. Estranho. O mistério é solucionado pouco depois. O homem inclina-se para a minha direção e começa uma longa explicação.
- Deixa eu te mostrar umas coisas que eu estava pensando - e aponta para o diagrama. - Nós temos quatro problemas na formação do nosso pensamento. O primeiro deles é a educação, a escola. A escola nos ensina que os habitantes das Américas eram os índios. Eram nada. Índio é quem vem da Índia. Quando Cabral chegou aqui (acho que nesse ponto ele quis dizer Colombo) ele achou que tinha chegado nas Índias e chamou a população de índio. Esse erro é até hoje ensinado nas salas de aula. Assim como o poder. Quem governa o Brasil?
- O presidente? - Tentei. Ele faz uma negativa, sorrindo.
- Não. O povo. O presidente é apenas um representante do povo. Ele está lá para nós. Ele não tem poder. Quem tem poder é o povo. E a escola ensina que quem tem poder é o governo.
E passa para o próximo item:
- Outro problema é a mídia e como ela apresenta as informações. Por exemplo, quando o jornal diz que todos os americanos votaram na eleição dos Estados Unidos. Mentira. Eu não votei. Eu sou americano, não sou? Nasci nas Américas. Não é só estadounidense que é americano, mas é isso o que a mídia passa. E se a mídia passa isso, como se vai convencer o povo do contrário?
Assenti. Ele segue em frente:
- Agora, o terceiro problema é o da Igreja. Esse é o mais enraizado, e o mais difícil de resolver. Pois as pessoas dizem que Jesus Cristo é o Senhor. Senhor de quê? De escravos. De nós. Mas o próprio Jesus diz: "Senhor é o meu Pai". Ele não é nosso Senhor, tanto que ele diz na Bíblia que veio à Terra para "servir e ser servido". Quem serve é o escravo, e quem é servido é o senhor. Ele não é servo nem mestre, é igual a nós. Mas as pessoas insistem em chamá-lo de Senhor!
Faltava o último item:
- Nessa coisa de relações de poder, que eu discuti no primeiro item, entra a discussão do governar. Tem político que diz que governa "para o povo". Isso está errado. O certo é governar "com o povo", pois o povo é quem o elegeu, e o povo é quem tem o poder. Quem gostava de governar "para o povo" eram os militares. Agora, existe um outro tipo de governo, que é o governo "do povo", onde o povo entra diretamente no ato de governar. Portanto, temos o governo "do povo", "com o povo" e "para o povo", todos diferentes entre si, mas as pessoas acham que é a mesma coisa.
Concordo:
- É um bom ponto.
- Bom sai de sua boca. - responde ele, tão rapidamente que eu achei que ele tinha se ofendido com o meu comentário e estava retrucando. Então explica-se: - você achou o que eu disse bom, mas você diz que é bom, porque o bom saiu de você. Se você não fosse bom, o bom não sairia de sua boca.
Aquela explicação me desarma. Não sei o que dizer em resposta. O homem parece ficar sem graça. Sorri e se explica:
- Não repare em mim não. Eu sou muito assim de pegar as palavras e buscar de onde elas saíram. Faço muito isso.
Jogo de palavras não é algo que se espera de um trabalhador simples sabe-se lá de onde. Penso estar diante de um homem extraordinário, uma daquelas figuras que se encontra uma vez na vida. Voltamos a observar os palestrantes. O homem está preocupado, pois quer ler a sua tese quando abrirem espaço para perguntas. Mas o condutor do debate não parece mencionar que há tal espaço no debate. Penso que seu discurso têm pouco a ver com o assunto "orçamento participativo", mas fico quieto.
Enfim, o povo é convidado a se manifestar. Meu amigo é o primeiro: sai de seu lugar, vai até a frente e pega o microfone. Apresenta-se, dizendo que trabalhava num projeto de reciclagem em Uberlândia, elogia o painel e, de algum jeito, liga o assunto com as suas teses. Pergunta antes de quanto tempo dispõe, e o professor diz, sorrindo, que ele pode falar por 5 minutos. O homem poe-se a discorrer sobre sua tese. O sorriso no rosto do professor some. Não era aquilo que esperava que falassem quando abrisse o debate ao público. O homem fala com pressa, para economizar tempo, mas tropeça em algumas palavras. O professor diz que o tempo do homem acabou antes de se passar 5 minutos. O homem agradeceu e volta ao seu lugar.
- Que droga, acho que gritei muito. - disse-me - Não queria falar alto, mas a gente se empolga, né?
Apesar de fora do contexto, o discurso do homem repercute entre o público: outros dois membros da plateia que tambem ganham a palavra citam, admirados, o raciocínio do meu amigo e contextualizam-no no tema. Resolvo que é hora de ir embora. Queria dar uma olhada no show. Despeço-me de meu novo amigo, e este me agradece pela caneta.
- Não foi nada - respondo.
- Foi sim. Você viu que eu precisava de uma caneta e me ajudou a conseguir. Podia não fazer nada, mas optou por me ajudar. São pessoas assim que libertam os outros da ignorância.
E me sorri um sorriso genuíno. Certamente, era um homem extraordinário.

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