sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O casamento

Casamento, sei não. Hoje em dia não parece uma coisa muito sábia de se fazer. Não me tirem para antiromântico, mas é fato que 50% deles acaba em divórcio, às vezes antes de se pagar todos os gastos da cerimônia. O cara se divorcia e continua pagando o casamento. Que é uma coisa bonita, é preciso se dizer: a noiva de vestido, o noivo suando de nervoso no seu terno, os convidados suando de calor dentro da Igreja mal ventilada, as mulheres com a maquiagem derretendo, um espetáculo. O padre prega os valores esquecidos da sociedade cristã, o amor, a família, essas coisas, e congratula os noivos por estarem dispostos a trilharem seus caminhos juntos no seio de Deus, da união conjugal e das prestações divididas. Mas, uma coisa temos que combinar: reunião de familia é uma coisa que dá confusão. Imagine, então, reunir duas famílias inteiras no mesmo lugar. É fórmula certa para o desastre.



A noiva se atrasa duas horas para a cerimônia. Um tio chato cutuca uma parente que ele não tem intimidade e diz:
- Que demora hein? Essa Karina é uma noiva!
E desata a rir da própria piada. A parente nem mexe os lábios. Do outro lado da Igreja, o vovô, que caiu no sono, é acordado por uma das filhas.
- Pai, acorda! O senhor tá dormindo!
- HEIN? JÁ ACABOU?
- Psst! Fala baixo, papai! - surrura a filha. O vovô é meio surdo, e não tem noção do volume da voz.
Finalmente a noiva chega. Todos se poem de pé para recebê-la. O músico contratado toca no seu violino a marcha nupcial. Antes disso, dá play num aparelho de som, que toca a gravação dos outros instrumentos da orquestra em formato MIDI. A noiva olha para o seu pai, ao seu lado, sorri e começa a andar, confiante. Logo é puxada para trás, pois seu véu ficou preso na dobradiça da porta da Igreja. Ela tenta puxá-lo, nunca desistindo do sorriso. Não consegue desprendê-lo. A gravação da música está no final. No ensaio do casamento, ela deveria levar cinquenta segundos para chegar ao altar. Com pressa, ela joga o véu no chão e vai correndo até lá. Chega, sorri para o noivo, e nota que esqueceu o pai lá atrás. Este, meio perdido, caminha discretamente até o seu lugar.
O padre se prepara para falar. É gago:
- M-m-m-m-meus q-queridos a-amig-gos e m-minhas q-queridas a-a-a-amig-gas! - diz o padre - es-t-tam-mos aqui re-reunid-dos p-p-para celebra-brar a união d-destes dois jov-vens. E-eles esc-colheram comp-part-tilhar as suas vid-das, ab-braç-çando tod-da a s-sss-sua comp... c-comp... compl... c-c-complex-xi-xi...
Faz uma pausa.
- C-c-complexidades - completa.
O padrinho da noiva, o priminho de 12 anos, boceja. Olha para a madrinha que está ao seu lado, filha de uma amiga da noiva. Da sua idade. Bem bonitinha. Não sabe se conseguirá vê-la mais tarde na festa, então não dá pra perder tempo. Resolve usar a sua linha inicial padrão:
- Vens sempre aqui?
O padre continua seu discurso, lenta mas decididamente. De repente, um celular toca. Surpresa: é o do noivo. O padre para, sem saber o que fazer. Em anos realizando matrimônios, isso nunca acontecera antes. O noivo pega o celular, mais perdido que o padre: como foi esquecê-lo ligado? A noiva o olha com uma mistura de raiva, questionamento e incredulidade. Ela espia o visor do celular. Uma tal de Milene chamando. O noivo sente que todos estão aguardando alguma resolução sua em relação ao celular. Tendo que pensar sob pressão, não consegue raciocinar, e acaba fazendo a primeira coisa que lhe vem à cabeça: atende a ligação.
- Alô?
A noiva abre a boca numa exclamação muda. Às suas costas, o noivo ouve o burburinho dos convidados e percebe o erro que fez.
- Oi... não... não posso falar agora... não... se lembra que eu disse que era hoje... não. Tchau. - coloca o celular no bolso. Silêncio na Igreja, exceto pelo vovô, que aplaude entusiasticamente.
- Não papai... o que está fazendo? - sussura a sua filha, puxando os seus braço para que pare.
- HEIN? ELE NÃO DISSE "SIM"?
- Não! E pare de gritar!
- HEIN?!
O padre parece desconcertado com a confusão:
- P-p-puxa, onde f-foi q-que eu p-p-parei? - fica um tempo tentando se lembrar - bom, o j-jeito é c-começar tudo de nov-vo! Mm-meus q-queridos amig-gos e minhas q-queridas amig-gas!...
Suspiros generalizados de frustração na Igreja.
A noiva fala discretamente ao noivo, sem mexer os dentes:
- Que te deu na cabeça?
- Oi?
- Não vira pra mim. Continua olhando pro padre e fingindo que tá tudo bem.
- Sei lá. Tocou o telefone e eu atendi, oras. Instinto.
- Quem era? Fala baixo e continua sorrindo.
- Como quem era?
- Quem era, Marcos?
- Era um colega. Um colega do trabalho.
- Colega, é? Que não está na cerimônia?
- Não é um colega íntimo, tá? Pombas!
- Não vira pra mim! Age normalmente. E esse colega não sabia do seu casamento, não?
- Sei lá...
Todos assistem ao mesmo discurso monótono do padre pela segunda vez. Menos o priminho e a madrinha, que estão no seu próprio mundo.
- Pois é, as pessoas se impressionam quando eu digo que sou emancipado aos 15 anos, mas eu digo que é normal, qualquer pessoa que já morou sozinho em sete países como eu tem que ser...
- Nossa, Gabriel... você é o máximo!
Era a hora:
- Não. Você é o máximo, Carlinha. E muito linda.
- Aii... - a menina enrubesce.
- Quer ficar comigo?
A menina sorri. Responde com um beijo. Burburinho na Igreja. Olha lá, aqueles dois lá na frente estão se beijando! Em plena cerimônia!
- Esses adolescentes. É tudo motivo para se pegarem - reclama uma tia solteirona.
- É O QUÊ? QUEM FEZ O QUÊ?
- Não, pai! - sussurra rispidamente a filha do vovô - ela está falando do Gabriel, que está beijando a menina lá na frente!
- O... O GABRIEL?
- Fala baixo!
- DEIXA O GURI! ELE É NOVO, TEM MESMO QUE DAR UNS PEGAS NAS MENININHAS!
As fileiras da frente viram a cabeça para ver quem está gritando. A filha do vovô esconde a cara.
Chega a hora das alianças. Música incidental: o violinista começa a tocar algo que parece Wagner, a não ser por uma batida eletrônica sintetizada que sai da caixa de som. Quem entra com as alianças é Fifi, o cachorro pug da noiva, com os anéis em uma almofadinha amarrada em suas costas. Durante o ensaio, treinaram o Fifi para caminhar até o altar, mas hoje ele parecia não se lembrar de nada. Parou ao lado de um dos bancos e fez xixi na perna do vovô, que não notou, pois caíra no sono de novo.
Enquanto aguardava o cachorro, a noiva continuou sua conversa:
- Quem é a Milene?
- Como?!
- Eu vi no seu celular. Quem ligou foi a Milene. Quem é a Milene?
- Ah... sim... pois é... Milene é a minha colega de trabalho.
- Você disse um colega de trabalho. No masculino.
- Ah... sim, porque... porque às vezes eu me confundo sabe... porque a... a Milene... ela já foi ele, sabe?
- Como?
- É... faz parte da nova política do banco... essa coisa, sabe, de, de... contratar as minorias... transexuais, hispânicos, essas coisas... que calorão aqui, né?
- Você não espera que eu acredite nisso, né Marcos?
- Como não? Eu até já te falei dele... dela! Se lembra quando eu tava furioso porque um colega meu atrasou os relatórios do mês e fiquei chamando ele de bichinha? Você pensou que era desaforo, mas era literal, era a Milene! Psst! Chegaram as alianças!
- K-Karina! - começou o padre - v-você ac-c-ceita Mmm-Marcos como s-ss-sseu legí-gítimo espos-so, na ss-ssaúde ou na doenç-ça, na alegr-gria ou n-na tristeza, na pr-praia ou na ss-ssserra, torce-cendo para o Inter ou o Gr-Grêmio?
Ela olha para o noivo com um olhar que só ele percebe, e diz, com a expressão fechada:
- Sim.
O vovô solta um grito de comemoração.
- Calma, papai! Ainda falta ele dizer sim! - sussurra a filha.
- E vv-você, M-Marcos - continua o padre - vvv-você ace-ceita K-Karina c-c-como ss-ssua legít-tima espos-ss-sa, na ss-ssaúde ou n-na doenç-ça, na alegria o-ou n-na...
- Aceito, aceito - responde o Marcos, para salvar tempo.
Ele coloca a aliança no dedo dela e ela enfia-a com força no dedo dele, para machucá-lo.
- Ouch! Karina!
- Vai reclamar?
- Assim não dá! Nem começamos a nossa vida juntos e você já está assim? Será que eu já não provei que você é a única mulher da minha vida? Não estou aqui, neste momento, jurando na frente de nossa familías, o meu amor incondicional por você? Eu aceitei me casar porque eu te amo, e só a você. Ninguém mais. - ele pega nas mãos dela - Afinal, meu bem, casamento serve pra isso. Pra mostrar o nosso amor para o mundo. Para fazer votos de amor eterno. Eu quero viver o resto da minha vida contigo. Só contigo.
Ela ainda faz uma cara contrariada por uns segundo, como se avaliasse as palavras do noivo, mas por fim sorri.
- V-vocês pp-podem se beijar - avisa o padre.
O casal se beija, sob os aplausos dos presentes.
- Te amo, Marcos - diz ela.
- Te amo, Milene.
Muitas coisas acontecem na sequência. O músico contratado começa a tocar a marcha nupcial, enquanto Karina dá um safanão na cara de Márcio, e sai do altar em direção à saída. O casal de padrinhos mirins, no meio de um beijo intenso, derruba a caixa de som, acabando com a música e desmascarando o músico, que na verdade nem violino tocava. Este olha para todos surpreso, como se fosse pego nu. O vovô levanta de pé e aplaude, depois é puxado pela filha. Uma das madrinhas desmaia com o calor. Na ênfase para socorrê-la, empurram o noivo, que cai no chão. O cachorro pula em cima dele e suja seu terno. Que coisa, pensa o noivo. Devia ter seguido aquele primeiro instinto, aquele pensamento que veio logo após ver o custo total da cerimônia: casamento, só no cartório.

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