quarta-feira, 5 de agosto de 2009

No ônibus

Um cara está sentado no ônibus. O ônibus para e sobe uma mulher. O cara imediatamente a reconhece: é a Regininha, sua ex-colega de escola. Ela vasculha no ônibus um lugar para se sentar. Passa os olhos pelo cara. O cara sorri, e se prepara para cumprimentá-la com um aceno de cabeça, mas ela desvia o olhar, como se não o conhecesse. Epa, pensa o cara. Ela caminha pelo corredor do ônibus, sem pressa nenhuma, tentando decidir o lugar pra sentar. Passa ao lado do cara e senta-se num assento próximo. Não esboça reação nenhuma. O cara está confuso. Ela esqueceu de mim, pensa. Não pode ser. Não sou um cara, assim, esquecível. Tá certo, era caladão, na minha. E na verdade ela não era da mesma turma que eu. Mesmo colégio, mesma série, turmas diferentes. Mas o colégio não era tão grande assim, todos se conheciam de vista. É, definitamente ela me conhece. Vai ver é porque eu estou mudado. É isso, só pode ser. Meu corte de cabelo está diferente. A armação do óculos é nova. Uma olhada mais demorada e ela certamente irá me reconhecer.
O cara fica olhando fixo para a mulher, esperando ela passar os olhos por ele novamente. Isso acontece alguns segundos depois. Seus olhares se cruzam, ela olha fixo para ele, ele segura o olhar nela. A tensão é tão pesada que poderia ser cortada com uma faca. Ele pensa, será que eu falo alguma coisa? Não, vou deixar ela falar. Ah, olha só você aí, não tinha te visto! Ou qualquer coisa assim. Eu não vou me rebaixar, não serei o primeiro a falar. Não, não.Finalmente ela desvia os olhos para a janela. Sem dizer nada.
Vai ver ela simplesmente não quer me cumprimentar, pensa ele. Tem gente que é assim. Vê um conhecido no ônibus e faz que não viu. Faz de tudo pra não ter que dar um simples oi. O cara nunca entendeu por quê. É tão fácil cumprimentar uma pessoa, duas vogais, um aceno de cabeça, pronto. Talvez seja o medo de que a outra pessoa encare isso como um sinal para se aproximar, confunda um comprimento cordial com um convite para conversar. O que deveria ser um aceno rápido vira uma conversa incômoda. Pelo sim e pelo não, melhor fingir que não viu. É, pode ser isso.
A mulher parece muito interessada em olhar para qualquer lado menos o do cara. É isso, ela está me ignorando, pensa ele. Só pode ser. Eu sei que ela me conhece, ela sabe que eu a conheço. Temos que manter este teatrinho de ignoração mútua até um de nós descer do ônibus.
A mulher puxa um jornal e começa a lê-lo. Isso faz o cara se lembrar do jornalzinho de sua escola. Como ele não tinha se lembrado disso! Uma vez a Regininha tinha escrito para a seção de recadinhos do jornal. A seção de recadinhos era a única parte do jornal que interessava aos alunos. Todo mundo pegava o jornalzinho para ler essa seção e jogava o resto fora. O cara se lembrava de quando a Regininha escreveu um recado para a sua turma. Mais especificamente, para os meninos da sua turma. "Guris da turma 42", começava o recado, "vocês são muito bonitos, principalmente o Beto, o Rafa..." e ela listava os mais bonitos. Entre eles estava o nome do cara. É isso! Ela sabia que eu existia, pensa ele. Ela me achava muito bonito. Não se esquece do rosto de alguém muito bonito. Não se você conviveu com esse rosto por anos a fio. Então, por que não me cumprimentar? Eu sou bonito mas não mordo.
O cara observa a Regininha lendo o jornal, enquanto matuta: ela é bonita, a Regininha. Desde os tempos de colégio, e agora está ainda mais. E ela me acha bonito. Ou pelo menos me achava, mas eu me considero melhor agora do que nunca. Quem sabe eu puxo um papo com ela, acabo com esse jogo besta de um ignorar o outro. Quem sabe pode nascer daí um relacionamento bacana, e mais tarde, quando estivermos jantando no restaurante que eu vou levar ela essa noite, nós riremos desse incidente no ônibus, que bobagem, duas pessoas se querendo e fingindo que não se conhecem. É isso aí, eu vou falar com ela.
O cara se levanta e senta do lado da mulher. Esta levanta os olhos do jornal e olha pra ele, surpresa. Ele sorri e espera para ver se ela vai dizer alguma coisa. Ela sorri de volta, meio sem graça, e volta a ler o jornal. O cara fica um momento quieto, pensando no que falar. Decide:
- Procurando a seção de recados do jornal?
A mulher volta a olhar para ele.
- Desculpe?
- A seção de recados. Que nem o jornal da escola. Você costumava escrever, se lembra?
- O jornal da escola? Você está querendo dizer da minha escola?
- Sim! "A Patotinha." Era o nome do jornal, lembra? Sinceramente, eu sempre achei esse nome ridículo. Só servia mesmo por causa da seção de recadinhos.
A mulher olha melhor para o cara.
- Desculpe, mas nós nos conhecemos?
Opa, pensa o cara.
- Olha, não precisa mais jogar esse joguinho. Eu já vim aqui quebrar o gelo. Nós fomos do mesmo colégio por mais de dez anos.
- Olha, desculpa mesmo, mas eu não estou me lembrando...
- Você era da turma 43 e eu da 42. Lembra? A turma dos bonitões...
A mulher olha meio estranho para ele. Ele nota que a frase soou meio homossexual.
- Quer dizer, você achava isso. Você escreveu para o jornalzinho...
A face da mulher se ilumina.
- Estou me lembrando...
Agora, pensa o cara, ela vai fazer que acabou de se lembrar de mim, pra não ficar chato o fato de que ela não me cumprimentou antes. Típico. Melhor jogar o jogo:
- Se lembra? Foi na quarta série. Você escreveu: "guris da turma 42..."
- "...vocês são muito bonitos." Sim, eu me lembro!
- E listou o nome de vários guris da turma 42, incluindo eu.
- Isso!
- Se lembra de mim, agora?
- Sim! Beto! Há quanto tempo!
- Isso! Peraí! Não! Não é Beto!
Ela olha pra ele confusa.
- Rafa?
- Também não!
Ela faz uma pausa para examiná-lo melhor.
- Me desculpe, mas então não tenho nem ideia de quem você é.
O cara fica confuso. Que tipo de jogo ela estará jogando agora?
- Ah, vamos lá! Eu era calado, tinha um corte de cabelo e uma armação de óculos diferente.
- Eu realmente não lembro de ninguém assim...
- Ah, qualé! Você me achava bonito!
Ela fica olhando pra ele, mas não esboça sinais de reconhê-lo. Mas, para ele, já chega.
- Com licença, eu vou descer.
- A sua parada é aqui?
- Não. Mas, me desculpe, assim não dá. Tchau.
E ele desce, pensando: o que as pessoas não fazem para evitar um simples oi no ônibus!

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