O problema é o seguinte: as pessoas se levam a sério demais. Esse é o problema. Vivem suas vidas de forma muito séria. Usam roupas. Eu queria saber quem foi o cara que inventou as roupas. Um burocrata, com certeza. A nudez é informal. Antes, todos vivíamos peladões, na boa, sem ter que corar cada vez que cruzávamos com um conhecido (cruzar, no sentido figurado). Na hora em que os homem resolveram usar roupas (e as mulheres também), acabou-se a informalidade. Antes era tudo pele e ninguém se incomodava, depois surgiu o tecido para separar a nossa pele da dos outros, e a nós também. Não podíamos mais ficar sem roupa, era mal visto. Daí para o uso obrigatório de calças no trabalho foi um pulo.
Ao separar a pele, separamo-nos. Tornamo-nos formais. A roupa significa uma separação física, mas também simboliza uma separação subjetiva dos outros indivíduos, uma sinalização de distância. Ninguém mais é íntimo para me ver pelado. Este tecido, esta lã, este, sei lá, cashmere, significa que eu não me sinto confortável na presença de pessoas a ponto de não poder estar ao natural. Já pensaram nisso? Ela é também um disfarce, o meu eu formal, que eu visto todas as manhãs para ocultar o meu eu verdadeiro. Não estou ao natural em termos de vestimenta nem tampouco em termos de comportamento. Se agisse naturalmente no meio dos outros, estaria cantarolando alto, ou correndo ao invés de caminhar. A roupa que vestimos é como o uniforme do Batman: usamos para nos apresentar ao mundo sem mostrarmos nossa verdadeira identidade. Incorporo um alterego, o eu público, quando visto a minha roupa todas as manhãs, assim como o Bruce Wayne incorpora o Batman quando usa o uniforme.
Dois pontos negativos dessa reflexão: primeiro, a minha roupa nunca será tão legal quanto a do Batman. Segundo, isso quer dizer que só eu conheço o meu verdadeiro eu. Conhecerei poucas pessoas cujas presenças serão para mim tão confortáveis a ponto de eu andar nu, de corpo e alma, sem vergonha, em suas presenças. Não sei se vocês têm alguém assim. O Batman tem o Alfred.
A conversa, como troca de impressões, pode parecer algo de natureza informal. Ou não. Há também a conversa formal. Perguntar sobre como a pessoa tem passado, o que está fazendo agora, o tempo, o futebol, os filhos. É um jogo estritamente formal, pois as perguntas estão prontas, assim como as respostas. É apenas um protocolo para preencher o silêncio.
- Como vai a vida?
- Bem, bem. Tá fazendo o quê?
- Tô estudando Farmácia. E tu?
- Fazendo cursinho. Puxado?
- Anrã. E o teu?
- Também.
- Faltou mais alguma?
- Não sei. Ah! Tá cursando Farmácia aonde?
- Na PUC. Deu, fechou. Aí, chegou o meu ônibus.
- Tchau.
- Tchau.
São protocolos, portanto, passando longe de uma conversa com calor humano.
Hoje é preciso desmontar todo um pacote. Para chegar ao âmago do outro, é preciso primeiro furar a barreira das conversas burocráticas. Depois, é preciso retirar a aura de seriedade, fazer a pessoa falar bobagens sem medo de parecer boba, falar o que não falaria formalmente, devolvê-la seu eu informal. Retira-se então o dever de falar a todo tempo, bobagem ou não, para que até um momento de silêncio seja compartilhado sem estranheza. Pois um momento de silêncio é algo estranho, significa que faltou assunto, e nunca pode faltar assunto. Não é bem visto. Quando se admitem os silêncios, a única coisa que falta se retirar são as roupas.
Pelo menos é isso o que o Adalberto dizia para a Denise. Eram colegas de trabalho há muitos anos, conheciam-se como ninguém, confidenciavam coisas que não tinham coragem de dizer para mais ninguém. Havia já os silêncios. E o Adalberto queria dar o passo final. Mas a Denise dizia que não.
- Já disse que não, Adalberto.
- Pô, Dê! O que é isso, não é nada de mais! Não é como se fôssemos fazer alguma coisa...
- Continuo dizendo que não.
- Não tem malícia. Pense como o teste de fogo da nossa amizade. É o nível máximo de conforto na presença de outro. É algo que só os grandes amigos fazem com naturalidade.
- Me ver pelada, Adalberto? Pensa que eu não sei das tuas?
- Já sei. É esse mundo. É como eu dizia, o mundo anda sério demais. E ele te pegou. Ele te pegou, Dê. E eu pensei que você era diferente...
- Sei, sei...
Mas o Adalberto não se conformou. No outro dia foi trabalhar de bermudas.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
domingo, 30 de maio de 2010
A reunião
AMBIENTE: sala de reuniões de uma produtora de vídeos pornô. Estão reunidos ao redor da mesa todos os funcionários da empresa: produtores, editores, roteiristas, atores e atrizes. Na ponta, o presidente da produtora. O chefe. Ele está irritado.
CHEFE: - Quero mostrar uma coisinha pra vocês.
CHEFE abre um gráfico no Powerpoint de seu laptop e mostra-o a todos. Uma linha descendente.
CHEFE: - Este é o crescimento da indústria de vídeos pornô no mundo.
ATOR 1 levanta a mão para falar.
ATOR 1: - Hã, chefe, acho que essa linha mostra uma queda, e não um crescimento...
CHEFE bate com o punho na mesa. Responde gritando.
CHEFE: - É claro que mostra uma queda, seu energúmeno! É porque a indústria não está crescendo! Se ela estivesse crescendo, eu estaria feliz! Eu pareço feliz? Não! E, se ela não está crescendo, está diminuíndo! E alguém sabe porque a indústria está diminuindo?
ATOR 1 levanta a mão de novo, mas pensa melhor e resolve baixá-la. CHEFE respira fundo, e ele mesmo explica.
CHEFE: - É por causa da internet. Temos que competir com a maldita internet. E eu não falo só de pirataria. Agora, com esses sites de vídeos em stream, qualquer um pode fazer seus próprios filminhos e mandar para o mundo. O cara só precisa de uma câmera, uma ou duas mulheres bêbadas e um tripé e voilá, pode se chamar de produtor pornô.
CHEFE abre o navegador de seu laptop e acessa um site de vídeos adultos em stream. Clica num vídeo qualquer e mostra-o para todos.
CHEFE: - Olhem isso. Olhem isso! É péssimo. Completamente amador. A mulher nem está maquiada! E esse enquadramento, parece que o cara colocou a câmera em qualquer lugar. E esses gemidos, meu Deus! Que gemidos são esses? Não se geme assim num filme.
PRODUTOR 1: - Aonde você quer chegar?
CHEFE: - Eu quero que vocês olhem as visualizações. Mil e duzentas. É mais do que o total de vendas do nosso último filme, "Eu Sei Com Quem Vocês Fizeram no Verão Passado". Um lixo desses. E olha que eu peguei um vídeo ao acaso. Tem uns piores e com mais visualizações. As nossas vendas estão em queda porque os nossos consumidores migram daqui para estes sites. Estão trocando a nossa produção especializada por qualquer filminho, porque é de graça.
PRODUTOR: - Tá, mas o que você sugere? E porque você chamou toda a equipe para a reunião?
ATOR 2: - É, eu estava na academia! O que eu tenho a ver com vendas e números? Isso é com o pessoal da, do... das vendas e números!
CHEFE: - O que eu sugiro, meus amigos, é trabalhar com o mercado. Claro, qualquer um pode fazer um vídeo pornô e lançar na web de graça, mas só nós podemos fazer um filme. Sempre haverá um público que quer mais qualidade, que não se rende a qualquer filmezinho de webcam. Esse é o nosso público. O público especializado. É nele que temos que investir forte. E, se qualidade é o que eles querem, qualidade é o que terão.
O CHEFE aponta para o pessoal da equipe técnica.
CHEFE: - Equipe técnica! Precisamos das melhores câmeras do mercado. Só quero filmar em Full HD agora. Aqueles vídeos quadriculados da internet não poderão competir com a nossa moderna aparelhagem. Quero que os espectadores possam ver cada penugem das coxas de nossa atrizes, uma por uma.
TÉCNICO-CHEFE: - Chefinho, isso vai custar caro...
CHEFE: - Não quero saber! Cada gasto é um investimento. E pesquisem essa tecnologia 3D. Quando houver TVs 3D, quero ser o primeiro a fazer filmes pornôs para elas. Total imersão! Quero que o espectador sinta cada fluido corporal de nosso elenco. É isso o que vai vender no futuro!
CHEFE aponta para a equipe de roteiros.
CHEFE: - Roteiristas! Não gostei do seu último trabalho. Muito raso. Eu quero uma história. Eu quero rir, eu quero chorar, eu quero me emocionar. Chega de mulheres traídas que resolvem dar o troco na mesma moeda e professoras sacanas. Eu quero originalidade.
ROTEIRISTA 1: - Como assim? "Sacana e Boa de Cama" foi um grande filme!
ROTEIRISTA 2: - É! E "Escola da Cama" foi muito criativo! Quer dizer, a menina recatada é transferida para uma escola nova. Aí ela descobre que é uma escola de sexo, e aprende com seus professores como deixar de ser tão inibida, com lições práticas e em grupo. É perfeito!
CHEFE: - Não, eu quero mais do que isso... Eu quero aprofundamento... De onde veio essa menina? Por que ela é tão recatada? Como era a sua vida antes de vir para a escola? Lacunas, lacunas... E o dilema da personagem? Ela é tirada de seu meio e colocada em um ambiente completamente oposto. E seus conflitos, e suas fobias, onde estão? Ela poderia confessar tudo isso para a sua colega de quarto, que a ajudaria a aceitar sua nova realidade, fazendo-a se abrir aos poucos, primeiro figurativa e depois literalmente. É a cena emblemática, o simbolismo da nova realidade liberal penetrando no âmago da sociedade conservadora burguesa, talvez com a ajuda de brinquedinhos. É isso o que eu quero. Eu quero o equivalente a Dostoiévski se ele escrevesse sacanagem.
ATRIZ 1: - E nós, chefe? Quer que botemos mais silicone?
CHEFE: - Não só isso, minha cara. Eu quero acreditar na interpretação de vocês. No seu último papel como Mulher das Cavenas Sacana, você não convencia ninguém. Faltou entrar no personagem. O público quer acreditar no que está vendo, e o primeiro passo é vocês todos acreditarem no que estão fazendo. Por isso, gastei uma boa grana pra trazer o melhor professor de teatro de São Paulo para dar um curso intensivo. Eu quero ver interpretações dignas de Oscar. E para a direção...
Um estagiário levanta a mão. O CHEFE se supreende.
CHEFE: -Sim?
ESTAGIÁRIO: - Com licença, mas acho que o senhor está se enganando.
Todos os presentes olham-se com cara de espanto. Burburinhos. CHEFE olha para ESTAGIÁRIO com cara de incredulidade.
CHEFE: - Como é que é?
ESTAGIÁRIO: - Eu acho que o senhor está se enganando. O público não está interessado em qualidade de vídeo ou roteiros bons. O público quer sexo.
CHEFE não consegue mudar de cara. Sua mão começa a tremer ligeiramente.
CHEFE: - Masmasmas claro que sim! Imagens nítidas, segurança de encontrar qualidade, tudo isso contribui para a fidelização do...
ESTAGIÁRIO: - Não é isso que o público está procurando. O público não está interessado em qualidade técnica, ele quer o sexo. O melhor sexo que conseguir encontrar.
CHEFE: - Mas temos atrizes profissionais nos nossos elencos, elas vão estudar atuação para...
ESTAGIÁRIO: - A única diferença das suas profissionais para as amadoras são as plásticas. O termo "profissional" é uma enganação. Escola de atores? Por que a audiência iria preferir o fake se ela pode assistir ao real? A credibilidade é muito maior quando sabemos que a pessoa está fazendo aquilo por amor ao sexo e não pelo dinheiro.
CHEFE bate na mesa com a mão. Começa a perder a compostura.
CHEFE: -Ora, jovenzinho! Como ousa chamar o meu elenco de enganação? Essas mulheres sabem trepar como nenhuma outra!
ESTAGIÁRIO: - Ah, e você acha que é realmente difícil de achar alguém por aí que, sem especialização nenhuma, consiga trepar melhor que a maioria das suas mulheres? Claro que a maioria nunca chegará aos pés delas, mas algumas... ah, algumas possuem a prática. Algumas realmente sabem o que estão fazendo, mesmo sem especialização nenhuma. Elas possuem as manhas, elas treinaram para isso. Elas têm a vivência. Vai dizer que elas não merecem as 1200 visualizações, só porque não são "profissionais"?
CHEFE: - Agora já chega. Você está demitido. Demitido! Saia já desta sala!
ESTAGIÁRIO se levanta da cadeira e sai da sala. CHEFE respira fundo para se acalmar. Senta novamente.
CHEFE: -Então, agora é a hora de falar do lado ruim: cortes de gastos. Primeiro, acabou a bolsa-academia. Sinto muito, mas agora vocês vão ter que malhar em casa. Quanto ao auxílio nas plásticas...
***
E essa é a minha opinião sobre o diploma de Jornalismo.
CHEFE: - Quero mostrar uma coisinha pra vocês.
CHEFE abre um gráfico no Powerpoint de seu laptop e mostra-o a todos. Uma linha descendente.
CHEFE: - Este é o crescimento da indústria de vídeos pornô no mundo.
ATOR 1 levanta a mão para falar.
ATOR 1: - Hã, chefe, acho que essa linha mostra uma queda, e não um crescimento...
CHEFE bate com o punho na mesa. Responde gritando.
CHEFE: - É claro que mostra uma queda, seu energúmeno! É porque a indústria não está crescendo! Se ela estivesse crescendo, eu estaria feliz! Eu pareço feliz? Não! E, se ela não está crescendo, está diminuíndo! E alguém sabe porque a indústria está diminuindo?
ATOR 1 levanta a mão de novo, mas pensa melhor e resolve baixá-la. CHEFE respira fundo, e ele mesmo explica.
CHEFE: - É por causa da internet. Temos que competir com a maldita internet. E eu não falo só de pirataria. Agora, com esses sites de vídeos em stream, qualquer um pode fazer seus próprios filminhos e mandar para o mundo. O cara só precisa de uma câmera, uma ou duas mulheres bêbadas e um tripé e voilá, pode se chamar de produtor pornô.
CHEFE abre o navegador de seu laptop e acessa um site de vídeos adultos em stream. Clica num vídeo qualquer e mostra-o para todos.
CHEFE: - Olhem isso. Olhem isso! É péssimo. Completamente amador. A mulher nem está maquiada! E esse enquadramento, parece que o cara colocou a câmera em qualquer lugar. E esses gemidos, meu Deus! Que gemidos são esses? Não se geme assim num filme.
PRODUTOR 1: - Aonde você quer chegar?
CHEFE: - Eu quero que vocês olhem as visualizações. Mil e duzentas. É mais do que o total de vendas do nosso último filme, "Eu Sei Com Quem Vocês Fizeram no Verão Passado". Um lixo desses. E olha que eu peguei um vídeo ao acaso. Tem uns piores e com mais visualizações. As nossas vendas estão em queda porque os nossos consumidores migram daqui para estes sites. Estão trocando a nossa produção especializada por qualquer filminho, porque é de graça.
PRODUTOR: - Tá, mas o que você sugere? E porque você chamou toda a equipe para a reunião?
ATOR 2: - É, eu estava na academia! O que eu tenho a ver com vendas e números? Isso é com o pessoal da, do... das vendas e números!
CHEFE: - O que eu sugiro, meus amigos, é trabalhar com o mercado. Claro, qualquer um pode fazer um vídeo pornô e lançar na web de graça, mas só nós podemos fazer um filme. Sempre haverá um público que quer mais qualidade, que não se rende a qualquer filmezinho de webcam. Esse é o nosso público. O público especializado. É nele que temos que investir forte. E, se qualidade é o que eles querem, qualidade é o que terão.
O CHEFE aponta para o pessoal da equipe técnica.
CHEFE: - Equipe técnica! Precisamos das melhores câmeras do mercado. Só quero filmar em Full HD agora. Aqueles vídeos quadriculados da internet não poderão competir com a nossa moderna aparelhagem. Quero que os espectadores possam ver cada penugem das coxas de nossa atrizes, uma por uma.
TÉCNICO-CHEFE: - Chefinho, isso vai custar caro...
CHEFE: - Não quero saber! Cada gasto é um investimento. E pesquisem essa tecnologia 3D. Quando houver TVs 3D, quero ser o primeiro a fazer filmes pornôs para elas. Total imersão! Quero que o espectador sinta cada fluido corporal de nosso elenco. É isso o que vai vender no futuro!
CHEFE aponta para a equipe de roteiros.
CHEFE: - Roteiristas! Não gostei do seu último trabalho. Muito raso. Eu quero uma história. Eu quero rir, eu quero chorar, eu quero me emocionar. Chega de mulheres traídas que resolvem dar o troco na mesma moeda e professoras sacanas. Eu quero originalidade.
ROTEIRISTA 1: - Como assim? "Sacana e Boa de Cama" foi um grande filme!
ROTEIRISTA 2: - É! E "Escola da Cama" foi muito criativo! Quer dizer, a menina recatada é transferida para uma escola nova. Aí ela descobre que é uma escola de sexo, e aprende com seus professores como deixar de ser tão inibida, com lições práticas e em grupo. É perfeito!
CHEFE: - Não, eu quero mais do que isso... Eu quero aprofundamento... De onde veio essa menina? Por que ela é tão recatada? Como era a sua vida antes de vir para a escola? Lacunas, lacunas... E o dilema da personagem? Ela é tirada de seu meio e colocada em um ambiente completamente oposto. E seus conflitos, e suas fobias, onde estão? Ela poderia confessar tudo isso para a sua colega de quarto, que a ajudaria a aceitar sua nova realidade, fazendo-a se abrir aos poucos, primeiro figurativa e depois literalmente. É a cena emblemática, o simbolismo da nova realidade liberal penetrando no âmago da sociedade conservadora burguesa, talvez com a ajuda de brinquedinhos. É isso o que eu quero. Eu quero o equivalente a Dostoiévski se ele escrevesse sacanagem.
ATRIZ 1: - E nós, chefe? Quer que botemos mais silicone?
CHEFE: - Não só isso, minha cara. Eu quero acreditar na interpretação de vocês. No seu último papel como Mulher das Cavenas Sacana, você não convencia ninguém. Faltou entrar no personagem. O público quer acreditar no que está vendo, e o primeiro passo é vocês todos acreditarem no que estão fazendo. Por isso, gastei uma boa grana pra trazer o melhor professor de teatro de São Paulo para dar um curso intensivo. Eu quero ver interpretações dignas de Oscar. E para a direção...
Um estagiário levanta a mão. O CHEFE se supreende.
CHEFE: -Sim?
ESTAGIÁRIO: - Com licença, mas acho que o senhor está se enganando.
Todos os presentes olham-se com cara de espanto. Burburinhos. CHEFE olha para ESTAGIÁRIO com cara de incredulidade.
CHEFE: - Como é que é?
ESTAGIÁRIO: - Eu acho que o senhor está se enganando. O público não está interessado em qualidade de vídeo ou roteiros bons. O público quer sexo.
CHEFE não consegue mudar de cara. Sua mão começa a tremer ligeiramente.
CHEFE: - Masmasmas claro que sim! Imagens nítidas, segurança de encontrar qualidade, tudo isso contribui para a fidelização do...
ESTAGIÁRIO: - Não é isso que o público está procurando. O público não está interessado em qualidade técnica, ele quer o sexo. O melhor sexo que conseguir encontrar.
CHEFE: - Mas temos atrizes profissionais nos nossos elencos, elas vão estudar atuação para...
ESTAGIÁRIO: - A única diferença das suas profissionais para as amadoras são as plásticas. O termo "profissional" é uma enganação. Escola de atores? Por que a audiência iria preferir o fake se ela pode assistir ao real? A credibilidade é muito maior quando sabemos que a pessoa está fazendo aquilo por amor ao sexo e não pelo dinheiro.
CHEFE bate na mesa com a mão. Começa a perder a compostura.
CHEFE: -Ora, jovenzinho! Como ousa chamar o meu elenco de enganação? Essas mulheres sabem trepar como nenhuma outra!
ESTAGIÁRIO: - Ah, e você acha que é realmente difícil de achar alguém por aí que, sem especialização nenhuma, consiga trepar melhor que a maioria das suas mulheres? Claro que a maioria nunca chegará aos pés delas, mas algumas... ah, algumas possuem a prática. Algumas realmente sabem o que estão fazendo, mesmo sem especialização nenhuma. Elas possuem as manhas, elas treinaram para isso. Elas têm a vivência. Vai dizer que elas não merecem as 1200 visualizações, só porque não são "profissionais"?
CHEFE: - Agora já chega. Você está demitido. Demitido! Saia já desta sala!
ESTAGIÁRIO se levanta da cadeira e sai da sala. CHEFE respira fundo para se acalmar. Senta novamente.
CHEFE: -Então, agora é a hora de falar do lado ruim: cortes de gastos. Primeiro, acabou a bolsa-academia. Sinto muito, mas agora vocês vão ter que malhar em casa. Quanto ao auxílio nas plásticas...
***
E essa é a minha opinião sobre o diploma de Jornalismo.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
A linha
Fiquei revoltado e satisfeito com a matéria sobre zoofilia da Void. Revoltado porque é nojento. O satisfeito eu explico depois. Para quem não sabe, mês retrasado a Void publicou uma matéria ensinando como seduzir animais. Para o sexo. Isso. Primeiro ensinava os melindres para se dar bem com os animais domésticos, depois os da fazenda, e culminava com uma seção sobre como se divertir no oceano. Com sexo. Não tive a força de vontade necessária para ler tudo, mas tinha uma parte sensacional sobre como fazer amor com golfinhos. E digo fazer amor, porque a revista deixava sempre claro que não se tratava de abusar dos animaizinhos, e sim desfrutar de prazer conjunto. Menos mal.
Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.
E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.
Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.
Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.
O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.
Trago um tópico de dois meses atrás para debate porque só agora a Void publicou alguma repercussão sobre o caso. Deixou explícitas, na seção de cartas - oops, mails - deste mês, o que já vinha se comentando no boca-a-boca: quatro manifestações de nojo e incredulidade, junto com outras duas defendendo a atitude da revista. Está certo, tem que ter os dois lados. O fato de haver o dobro de manifestações contra pode indicar que a revista não tem medo de dar a cara pra bater, ou que não havia muitas mensagens de apoio (ao menos publicáveis). Mas o fato da Void prestar-se a publicar as críticas, admitindo assim a existência de indignação pública, lembra a postura adotada pela MTV naquele fatídico VMB, onde a apresentação de Caetano e David Byrne deu pau três vezes. Ao invés de ocultar o caso, torcendo para que caísse no ostracismo, o canal abraçou o erro e transformou a frase "bota essa porra pra funcionar" em vinheta. Ou seja, já que botamos o pé na merda, vamos afundá-lo de vez e fazer algo bom com isso. Deu certo. O "bota essa porra pra funcionar" não era mais um erro e sim parte do jeitinho MTV de ser. Nos enrolamos, sim, mas no final botamos a porra pra funcionar. A Void enveredou pelo mesmo caminho: sim, publicamos uma matéria que ofendeu meio mundo, mas é o nosso jeito de ser. Amem-nos ou deixem-nos. Não pensem porém que foi uma decisão fácil: a ausência de qualquer menção à matéria na edição posterior a esta mostra que eles demoraram um pouco para decidir o que fazer com a polêmica. Decidiram abraçá-la. Afundaram o pé na merda. Mas com determinação.
E, se não foi a intenção, pelo menos o ocorrido acabou por se tornar uma bela peça publicitária. Afinal, nada melhor do que largar uma polêmica para chamar atenção. Nego ouve que tem uma revista fazendo matéria muito louca sobre zoofilia, já viu? Vai correndo pegar a sua, lê de cabo a rabo, se indigna, se revolta, cospe cada vez que fala o nome da Void, e pronto, já virou leitor cativo que espera ansiosamente pela próxima edição. Eu sei porque foi exatamente o que aconteceu comigo, maldição. Eles conseguiram.
Agora, o porquê de eu ficar satisfeito. Há algum tempo, venho pensando qual será o próximo tabu a ser quebrado, agora que o bissexualismo não assusta mais ninguém. Tem que ser algo que é considerado contra a ordem natural das coisas, mas que tecnicamente não é ilegal. Como pegar a comida que deixam nos pratos dos restaurantes: pode fazer, mas não é bem visto. Cheguei a dois bons palpites: ficar entre irmãos e zoofilia. Ficar entre irmãos é isso aí: errado, nojento, totalmente contra os costumes vigentes, e por isso, vai se tornar a próxima moda nas baladas alternativas. É tudo o que o bissexualismo era no século passado, até que este se tornou banal. E certamente vai se tornar a porta para escapar dessa sociedade repressiva para os jovens que, cansados das regras e dos costumes anacrônicos vigentes, desejam subverter o sistema.
Quanto à zoofilia, lembro de entreouvir uma edição do Saia Justa sobre o assunto. Não vejo Saia Justa, acho um programinha detestável, mas minha mãe vê e eu estava no recinto, fazer o quê. Não sei por que cargas d'água os animaizinhos viraram pauta no programa, mas o fato é que elas estavam discutindo se era correto ou não o ato sexual no caso do animal não sofrer no processo. Apesar de super metidas a modernetes, era visível o desconforto das quarentonas (cinquentonas? Sessentonas?) ao tratar do assunto. "É, eu ouvi dizer que tem uns vídeos brasileiros muito bons", disse uma delas, levemente gaguejante, após uma outra ter mencionado cavalos. Não era o lugar adequado, e, principalmente, não era a hora certa. O público aceita bem discussões sobre infidelidade, poligamia, lesbianismo, mas zoofilia? Ainda não. Muito cedo.
O que não impediu a Void de fazer uma investida no assunto, propositalmente, só para chocar. A Void é uma revista alternativa, e, como tal, precisa de pautas alternativas. Alternativo é algo que não está nos meios comuns de discussão. Difícil achar algo mais alternativo que zoofilia, mas há uma fina linha que separa o alternativo do grosseiro. Às vezes as coisas não aparecem na grande mídia simplesmente por serem grosseiras demais, e, ao dar destaque para tais coisas, corre-se o risco de se fazer uma publicação de baixo nível, bagaceira mesmo. A intenção da revista foi chamar atenção, mas imagino que não de forma tão negativa. É o risco que se corre quando se arrisca muito nessa linha divisória. Enfim, fiquei satisfeito de acertar o próximo tabu a ser quebrado, mas acho que ele ainda vai continuar tabu por um bom tempo. A matéria foi apenas um começo. Boa tentativa, Void. Mas foi muito cedo. Muito cedo.
domingo, 16 de maio de 2010
O supermercado
Quando percebeu, o homem estava num corredor de supermercado. Não sabia como chegara lá. Não lembrava de ter entrado num supermercado, nem de ter pensado em entrar em um supermercado. Foi como se piscasse os olhos e simplesmente aparecesse. Pensou. O que estava fazendo antes? Não lembrava. Notou que em uma das mãos segurava uma cesta de compras, vazia. Ao seu redor, pessoas passeavam com seus carrinhos, olhando mortamente as prateleiras, alheias à perplexidade do homem parado no meio do corredor. Ele esfregou os olhos. Resolveu sair dali. Dobrou à direita e seguiu reto. Estava no corredor de fraldas. Percorreu-o até o final, uma parede cheia de gêneros alimentícios. Dobrou à esquerda. Seguiu este corredor até o fim. Passou por materiais escolares, achocolatados, produtos de limpeza, geleias. Chegou ao fim, outra parede forrada de produtos. Virou novamente à esquerda. À direita, na geladeira dos sorvetes. Passou os refrigerantes. Parou, tentou se localizar. Não conhecia o lugar e não sabia para que lado sair. Pensou em pedir informações, mas sentia-se por demais envergonhado. Explicaria o quê? Que não se lembrava como fora parar ali? É um supermercado grande. Cosméticos, louças, farinha, feijão. Tentou outro caminho. Finalmente achou a direção certa. Passou pela seção de rações, seguiu-a até o final e encontrou a única direção que não havia tentado. Ao dobrar, finalmente encontraria os caixas e a porta de saída, depois de tanto sufoco. Dobrou.
Caiu em outro corredor.
***
O homem deu sorte de achar a seção dos travesseiros e teve como passar a noite de um modo relativamente confortável. Não entendia o que era aquele lugar. Passou a manhã seguinte peregrinando pelas vias do supermercado em busca de algum ponto de referência, algo que lhe guiasse para a saída. Vez por outra ainda via alguma pessoa passando. Desistiu de tentar falar com elas. Pedia informações e recebia resmungos, pedindo para que não as incomodasse. Chegou a puxar o braço de um senhor, depois de se irritar com sua falta de reação, e este desvencilhou-se aborrecido, xingando o homem e reclamando que só queria comprar os seus produtos em paz. Mas as pessoas estavam ficando mais escassas. O homem se sentia só.
Teve a ideia de fazer uma trilha com tiras de linguiça que pegara na seção de carnes. À medida que andava, ia soltando a tira no chão, depois mais uma, quando essa acabasse, depois outra e assim por diante. Assim, não se perderia e poderia achar uma lógica naquele labirinto.
Resolveu testar: soltou a tira de linguiça no chão, virou à esquerda, no corredor macrobiótico. Seguiu em frente até os condicionadores, aí virou mais uma vez à esquerda. Frente, segunda à direita, esquerda nos lenços de papel, direita, frente até a seção de escovas de dente. Aí seguiu reto até o fim. Depois dobrou na seção de salgadinhos, esquerda, depois terceira à esquerda, frente. Então virou à direita.
Achou o começo da tira de linguiça.
***
O homem ficou muito feliz em achar a seção de frutas. Não aguentava mais comer biscoitos Trakinas e barras de cereais. Certificou-se de encher a sua cesta com alguma coisa saudável. Lembrou que precisava encontrar algo para beber. O refrigerante estava acabando, e não sabia como voltar até o corredor de bebidas. A última vez que passou por lá foi... quando mesmo? Perdera a noção de há quanto tempo estava perdido. Dois dias, no mínimo, mas a ausência de janelas impedia o homem de se guiar pelo sol para ter certeza. A falta desses acessos ao exterior eliminava uma opção de fuga daquele lugar, já que não havia portas, também, nem nenhum outro meio de comunicação com o lado de fora. Precisava de um jeito de derrubar aquelas paredes. Lembrou de uma receita de bomba caseira que vira na internet. Envolvia álcool, cola escolar, bicarbonato de sódio e coca-cola, algo assim. Não sabia se era piada ou verdade, mas não custava tentar. Provavelmente era piada. Já tinha algumas coisas para começá-la, mas precisava de fósforos.
As pessoas realmente faziam de tudo para ignorá-lo. Ele gritava, empurrava-as, fez um striptease na frente de uma velhinha, mas elas não estavam nem aí. Repetiam que queriam encontrar os seus produtos, e que o homem parasse de atormentá-las.
- Ei, senhor! SENHOR!
- Saia da frente, mocinho!
- Ah, então o senhor me vê, não é? E vê que este lugar não tem saída, e que estamos todos presos, e que eu pareço ser o único que se importa com isso?
- Eu só quero achar o meu xampu.
- Por que você bota tudo isso no seu carrinho se este lugar NÃO TEM CAIXA?
- Saia da frente, saia da frente...
Achou os fósforos, mas perdeu a cola em algum lugar.
***
O homem se sentiu muito mais confortável depois que queimou um travesseiro para fazer uma fogueira. Claro, agora não teria mais tanto conforto ao dormir, mas teve a chance de lembrar que, realmente, carne cozida é bem melhor do que crua. Além disso, naquela noite acamparia no corredor de cereais matinais, e as caixas de cereais são um ótimo substituto para travesseiros. A fogueira ajudou a passar o frio. Gostaria de achar algumas roupas para se esquentar, mas não sabia se vendiam isso no estabelecimento.
Fazia planos para quando saísse dali: viveria numa tribo nômade, onde os seus componentes devem caçar seu próprio alimento, e nunca mais pisaria num supermercado.
A fogueira teve um efeito curioso: chamou a atenção de um outro homem que estava perdido entre os corredores. Este segundo era igual ao primeiro, não como os zumbis entorpecidos que vagavam aqui e ali, mas alguém com capacidade de analisar a situação e dizer que sim, estavam ambos presos e precisavam achar a saída. Finalmente não estava mais sozinho.
- Como você chegou aqui?
- Também não sei. Quando me dei conta estava aqui. Já faz um tempo, isso.
- Você também tinha uma cesta de compras?
- Não. Um carrinho. E uma lista.
- Uma lista de compras?
- É.
- Chegou a completá-la?
- Não. Nunca achei todos os produtos. Além disso, fiquei com medo.
- Do quê?
- Do que aconteceria, né? Caso eu completasse todas as compras. Vai que eu passasse para um estágio pior. Como chamar a atenção de um garçom em um restaurante.
Achou a cola escolar e o bicarbonato de sódio, mas bebeu toda a coca-cola.
***
- Me diz uma coisa...
- Sim?
- Você, que já está aqui há mais tempo... nunca viu algo parecido com um caixa?
- Não. E olha que eu procurei.
Estavam os dois jogados no canto dos lanches, comendo bobagens e olhando um ou outro transeunte passar pateticamente com seu carrinho por eles. O segundo homem, o que estava perdido há mais tempo, diz, ao observar um velhinho investigando todos os produtos das prateleiras que passa:
- Sempre achei que o purgatório fosse algo assim.
- Assim como?
- Como um grande supermercado. A gente procurando eternamente por um produto que não acha, nunca acha... dando voltas e voltas no mesmo labirinto.
O outro olha para o velho, procurando pateticamente o seu xampu entre os condimentos.
- Eles nunca vão achar, vão?
- O que procuram? Acho que não. O que você realmente procura você nunca acha. É por isso que você continua vagando.
O homem assentiu. E completou:
- Vai ver nós estamos lúcidos agora, mas nos tornemos como eles em breve: apenas seres estúpidos, vagando atrás de uma busca sem sentido...
- Ou talvez não...
- Como?
- Talvez seja o contrário. Nós éramos assim e acordamos. Percebemos a nossa situação. Talvez tenhamos vivido dentro do supermercado sempre, só não percebemos isso. Ficamos distraídos a vida inteira, indo atrás das nossas compras, imaginando uma vida, então pam! Acordamos. Talvez a nossa vida antes tenha sido um sonho. Nós nunca conseguimos lembrar dos sonhos direito. Ele é algo muito nítido, muito vívido na hora, e depois ele vai desbotando, ficando mais irreal, até não restar nem a lembrança. Você consegue lembrar da sua vida?
O homem fez um esforço.
- Não... bem não. Quer dizer, eu sei que tinha algo, mas...
- Mas não consegue lembrar. Nós nunca lembramos de um sonho, em seus detalhes, algumas horas depois de acordar. Só fica a lembrança da lembrança. Só fica o nada.
O homem concordou. Seu novo amigo continuou:
- Ou talvez essas pessoas não sejam tão burras. Eu nunca vejo duas vezes a mesma pessoa. Vai ver algumas conseguem sair. Vai ver elas acharam o caixa...
O homem esperou um pouco antes de falar:
- Ou vai ver este é um mercado muito grande.
Acharam o bicarbonato de sódio e a coca-cola, mas acabaram-se os fósforos.
***
Ao tentar um caminho diferente, deram com a seção de vinhos. Eram várias estantes de madeira recheadas de tintos e secos, muitos deles importados e com preços absurdos. Fizeram uma pausa obrigatória para desfrutar do local.
- Uma coisa que eu não entendo... - diz o que estava há mais tempo no mercado, enquanto desfrutava de um tinto, safra de 78 - ...é onde estão os funcionários. Certamente devem haver funcionários. No mínimo alguém que limpe o lugar. Está sempre impecável.
O outro concordou. Raramente voltava pelos lugares por onde passou, mas quando o fazia não via sinais das embalagens que deixava pelo chão, das sobras de comida, das caixas de cereal onde defecava. Alguém limpava tudo isso. Mas nunca viu ninguém da equipe de limpeza.
- Nem o pessoal da reposição. - continuou o primeiro - Não vejo ninguém repondo os estoques. Alguém deve vir aqui repor os produtos quando eles acabam. Tem que vir. Eles não podem simplesmente reaparecer nas prateleiras.
- Mas você já viu alguém fazendo isso?
- Não. Nunca. Mas também nunca esperei para ver se alguém aparecia.
O outro teve uma ideia.
- Quer saber? Chega de vagar. Esquece esse negócio de achar uma saída. Nós vamos ficar andando para sempre e nunca saberemos se estamos indo para o lado certo. Vamos beber. Tudo.
- Tudo?
- É. Vamos acabar com os vinhos. Não deixaremos garrafa sobre garrafa. E, em algum momento, alguém vai ter que vir aqui repor as bebidas. E nós estaremos esperando.
- Brilhante ideia. Quer um tinto?
- Safra de 68?
- É.
- Manda.
***
O homem acorda com uma sensação desagradável nas costelas. Logo depois leva outro chute. Levanta a cabeça, grogue. Um sujeito enorme, vestido num terno, o encara. Ao lado, o seu amigo está sendo acordado por um outro sujeito de terno, do mesmo jeito indelicado. Ao redor dos dois, garrafas e mais garrafas vazias. O homem tenta pegar uma que ainda não está aberta: estende a mão, mas a garrafa é afastada de seu alcance por um terceiro sujeito, baixinho, de bigode. Ele parece furioso. Na sua camisa, uma credencial de "Gerente".
- Espero que vocês tenham como pagar tudo isso. - diz ele.
O homem olha para a cara do gerente. Ele é gordo e tem um bigode engraçado. O homem ri. Um dos sujeitos grandes o pega pelas vestimentas, o sacode e joga para cima do seu amigo, que está completamente perdido.
- O que vocês pensam que estão fazendo? Essa bagunça inteira, vocês acham que vai sair do bolso de quem? Estão me ouvindo?
O homem se arrasta para sair de cima do amigo. Os dois se entreolham: riem. O gerente está furioso.
- Estão rindo do quê? Vocês tem ideia de quem sou eu?
Mas os dois não conseguem ouvir o que o gerente fala. Gargalham alto, totalmente embriagados.
- Assim não dá. Segurança, eles não estão nos levando a sério. Dá uma liçãozinha neles.
Um dos homens de terno assente e pega uma barra de aço. Aí fica tudo escuro.
Ao tentar um caminho diferente, deram com a seção de vinhos. Eram várias estantes de madeira recheadas de tintos e secos, muitos deles importados e com preços absurdos. Fizeram uma pausa obrigatória para desfrutar do local.
- Uma coisa que eu não entendo... - diz o que estava há mais tempo no mercado, enquanto desfrutava de um tinto, safra de 78 - ...é onde estão os funcionários. Certamente devem haver funcionários. No mínimo alguém que limpe o lugar. Está sempre impecável.
O outro concordou. Raramente voltava pelos lugares por onde passou, mas quando o fazia não via sinais das embalagens que deixava pelo chão, das sobras de comida, das caixas de cereal onde defecava. Alguém limpava tudo isso. Mas nunca viu ninguém da equipe de limpeza.
- Nem o pessoal da reposição. - continuou o primeiro - Não vejo ninguém repondo os estoques. Alguém deve vir aqui repor os produtos quando eles acabam. Tem que vir. Eles não podem simplesmente reaparecer nas prateleiras.
- Mas você já viu alguém fazendo isso?
- Não. Nunca. Mas também nunca esperei para ver se alguém aparecia.
O outro teve uma ideia.
- Quer saber? Chega de vagar. Esquece esse negócio de achar uma saída. Nós vamos ficar andando para sempre e nunca saberemos se estamos indo para o lado certo. Vamos beber. Tudo.
- Tudo?
- É. Vamos acabar com os vinhos. Não deixaremos garrafa sobre garrafa. E, em algum momento, alguém vai ter que vir aqui repor as bebidas. E nós estaremos esperando.
- Brilhante ideia. Quer um tinto?
- Safra de 68?
- É.
- Manda.
***
O homem acorda com uma sensação desagradável nas costelas. Logo depois leva outro chute. Levanta a cabeça, grogue. Um sujeito enorme, vestido num terno, o encara. Ao lado, o seu amigo está sendo acordado por um outro sujeito de terno, do mesmo jeito indelicado. Ao redor dos dois, garrafas e mais garrafas vazias. O homem tenta pegar uma que ainda não está aberta: estende a mão, mas a garrafa é afastada de seu alcance por um terceiro sujeito, baixinho, de bigode. Ele parece furioso. Na sua camisa, uma credencial de "Gerente".
- Espero que vocês tenham como pagar tudo isso. - diz ele.
O homem olha para a cara do gerente. Ele é gordo e tem um bigode engraçado. O homem ri. Um dos sujeitos grandes o pega pelas vestimentas, o sacode e joga para cima do seu amigo, que está completamente perdido.
- O que vocês pensam que estão fazendo? Essa bagunça inteira, vocês acham que vai sair do bolso de quem? Estão me ouvindo?
O homem se arrasta para sair de cima do amigo. Os dois se entreolham: riem. O gerente está furioso.
- Estão rindo do quê? Vocês tem ideia de quem sou eu?
Mas os dois não conseguem ouvir o que o gerente fala. Gargalham alto, totalmente embriagados.
- Assim não dá. Segurança, eles não estão nos levando a sério. Dá uma liçãozinha neles.
Um dos homens de terno assente e pega uma barra de aço. Aí fica tudo escuro.
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Noites do Beco
- Tá vendo aquela pessoa?
- Qual?
- Atrás daquele cara.
- Sim, estou vendo ele... ela.
- É ele ou ela?
- É... não sei. Caramba! Não sei mesmo. Que pessoa esquisita.
- Parece um homem. Acho que é um homem.
- Com esse cabelo? Com essas roupas? Não pode ser.
- Se bem que pode ser mulher. Mas... poxa. Nunca vi mulher assim.
- Nem eu.
- Olha lá. Tá beijando um cara.
- Então é mulher.
- É.
Minutos depois.
- Olha lá.
- O quê?
- Ali. O cara-barra-mina.
- Aonde?
- Beijando aquela mulher.
- Vi.
Ele leva a cerveja até a boca, dá um gole tranquilo, depois se dá conta.
- Caramba!
- Não precisava cuspir em mim.
- Desculpe. E agora? Será que é homem?
- Sei lá. Não tem sinal de barba.
- O corpo... é reto. Não parece de mulher.
- Mas sei lá, né? Pode ser uma dessas mulheres sem peito, bunda...
- ...Sem graça. Pode ser.
- Mas olha o pé. Pé 42. É homem, com certeza.
- Tá. É homem.
- É.
Mais tempo depois.
- Olha ali o nosso cara-barra-mina. Tá ficando com outra pessoa.
- Outra? Oba, mais pistas. É homem ou mulher?
- É homem. Não, peraí, é mulher.
- Aquela ali? Só se for a mulher mais feia da Terra. É homem.
- Não, é mulher! Tô te dizendo.
- Você mesmo disse que era homem.
- Olhando de um ângulo, mas se você olha desse...
- De qual?
- Desse. Vem pra cá. Daí parece mulher.
- Mais ou menos. Não dá pra ter certeza.
- Quer saber? Dane-se.
- Por quê?
- Olha bem pra elas. Ou eles, sei lá. Não tem como a gente saber o que são porque nem eles devem
saber.
- Pior. Mas sabe de uma coisa? Eles parecem bem felizes assim. Um brinde a eles.
- A elas.
- Que seja.
***
- Tá ouvindo isso?
- O quê?
- É "Kids". De novo. Botaram pra tocar de novo essa bosta. Não aguento mais essa música.
- Pois é.
- Eles sempre botam as mesmas merdas. Ou é isso ou é "D.A.N.C.E.". Mas o pior é esse tecladinho.
Não aguento mais esse tecladinho.
- Cara...
- A música inteira é esse tecladinho. Que troço enjoado. No início era legal, agora não dá mais. Ninguém aguenta.
- Você sabe que não é com a música que você está brabo...
- É sim. Eu e todo mundo. Eu sei que essas pessoas estão dançando, mas no fundo elas estão sofrendo. Elas odeiam a música tanto quanto eu. Elas fingem gostar porque essa merda é cool. Isso me dá nos nervos. Dancem! Dancem e sofram !
- Não é assim.
- É sim.
- Não é. E fica sereno.
- Eu estou sereno. Sereníssimo. É só essa música. Não aguento mais essa música.
- Não é a música. É a Sofia, e você sabe disso.
- Não sei do que você está falando.
- Não te faz. Deixa ela pra lá, cara, não adianta ficar bolado com isso.
- Eu não estou. Sério. Não estou mesmo. Estava me divertindo à beça, só que essa música estragou tudo. É a epítome da falta de criatividade. É uma afronta aos bons ouvidos. A música está me afrontando.
- Eu sabia que a gente não devia ter vindo aqui. Eu esqueci que foi aqui que vocês se conheceram. Devíamos ter ido pra outro lugar.
- Não, não. Aqui tá ótimo. E, se ela estiver aqui hoje, tanto faz.
- É por isso que você quis vir pra cá? Porque acha que ela pode estar aqui?
- Eu? Não! Capaz, nem me passou pela cabeça. Mas se você ver ela, me avisa.
- Ela não vai voltar pra ti.
- A única coisa mais irritante que o teclado é essa voz sintetizada.
- Me escuta...
- Eu vou lá pedir pra trocarem de música. Não quero nem saber.
- Cara, ela não vai voltar...
- É isso. Eu vou ir lá pedir e já volto. Me espera aí.
- Cara...
O outro se vira, mas ele o agarra pelo braço.
- Cara, ela não vai voltar!
O outro o encara nos olhos, com raiva. Então começa a chorar. Abraça-se no amigo como uma criança na mãe.
- Eu amava ela, cara! Amava ela!
- Eu sei, eu sei...
- E sabe o que é pior? Ela que me deu o fora. Disse que acabou e acabou. Mas eu não estava pronto,
entende? Eu não estou pronto!
- Entendo, entendo...
- Por que elas acham que podem pôr um ponto final assim, no mais? E nós, cara? E nós, como ficamos?
- Ela é uma vaca. Não fica mais correndo atrás dela.
- Tá, mas eu tô sofrendo, cara, eu tô sofrendo.
- Calma, calma. Ó, até mudaram a música.
- É?
- Isso. Agora tá tocando "D.A.N.C.E."
E o outro volta a chorar.
***
- Legal, aqui. Nunca tinha vindo ao Cabaret, antes.
- Aqui é o Porão.
- Não, é o Cabaret. Olha lá o pooldance.
- O quê?
- Pooldance. O poste, lá. O mastro de cabaré.
- Ah. O pau-de-puta.
- Isso. Viu? Aqui é o Cabaret.
- O pau-de-puta só tem no Porão. Aqui é o Porão.
- Como assim? Pooldance não é coisa de cabaré?
- É, sim, mas Cabaret é o outro. É na mesma rua, mas é outro.
- Quantos Becos têm, afinal?
- Bom, tem esse, o Cabaret e o novo que abriu, o Diskoclub.
- Qual é esse?
- É aquele pequeno, escuro e apertado, com gente velha e música que ninguém conhece, e um andar
com pista de dança no subsolo.
- No subsolo? Você quer dizer num porão?
- É.
- Então aquele é o Porão?
- Não! Aqui é o Porão!
- Aqui não era o Cabaret?
- Não!
- Ah é, tá certo. Então deixa eu ver se eu entendi...
- Tá.
- O Cabaret não tem mastro de cabaré...
- Não, não tem.
- E o que tem o mastro não é o Cabaret, mas o Porão...
- Sim.
- E o que tem o porão é o Diskoclub. É isso?
- É isso. Entendeu agora?
- Não.
- Nem eu. Vamos beber?
- Vamos.
***
- Oi, com licença.
- Oi.
- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. É sério, não é papo furado. Foi uma coisa assim, pá-pum, entendeu? Eu te vi, no meio das outras, e vi que você era diferente. Vi que você era especial. Sabia que precisava falar contigo. Eu disse pra mim mesmo: "cara, eu não posso sair dessa festa sem antes falar com essa mina. Ela é especial. Eu não vou sair daqui sem beijá-la". E é isso. Sem frescura, resolvi ser direto. Não posso perder essa oportunidade, deixar você sair daqui, sair da minha vida, e talvez nunca mais vê-la, sem fazer nada. Não posso.
A menina ouve tudo sorrindo, pega na mão do menino e diz:
- Ah, sinto muito, mas eu estou namorando...
- Ah.
- É uma pena, eu sei como você está se sentindo, mas... não posso, entende?
- Sei.
- Não depende de mim. Mas não fica mal, tá cheio de gente especial por aí...
- Certo, certo...
A menina se despede e vai embora. O menino vira para outra e diz:
- Oi.
- Oi!
- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você.
- É?
- Sério. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. Eu te vi e foi, assim, pá-pum, sabe? Te vi, assim, no meio das outras, e foi aí que...
***
- Cara, afinal, o que houve?
- Não deu certo, cara. Não deu certo.
- O plano era bem simples: eu ficava com a gorda e você ficava com a outra. Não tinha erro. Ela
estava na sua!
- Eu tentei. Também pensei a mesma coisa. Mas aí...
- Aí o quê?
- Ela veio com o papo do ex-namorado.
- Ah! O papo do ex-namorado...
- Isso. Disse que tinha se separado ontem, e que não estava pronta pra recomeçar essa coisa de ficar
com outros, blablablá blablablá...
- Não cai nessa! Ela tá se fazendo!
- E o que você quer que eu faça? Que eu continue insistindo? Eu não vou ficar mendigando esmola.
- Deixa de ser orgulhoso, mulher não funciona assim. Você tem que mudar de postura. Ela tá na sua, eu vi que ela tá afim...
- Quer saber? Só estamos tentando alguma coisa aqui porque você sentiu que ela estava afim de mim. Você que disse que ela estava olhando pra mim e me empurrou pra falar com ela. Estamos aqui nos ferrando por causa de uma impressão sua. Você se ferrando mais do que eu, já que ficou com a gorda.
- Eu fiquei com a amiga gorda só pra te ajudar, e você me desperdiça a chance...
- Eu tentei te salvar. Fiz sinais frenéticos de "abortar plano!", "abortar plano!", mas você grudou a
menina na parede e nem me viu.
- O que vamos fazer agora? Decide rápido, elas podem voltar do banheiro a qualquer momento!
- Mulher tem dessas, né? Vão juntas no banheiro pra fofocar sobre nós, os homens. "Aquele cara
queria ficar comigo! Sabe o que eu fiz? Usei a tática do ex-namorado! Hohoho, ele caiu feito um patinho!"
- A mina ri que nem o Papai Noel?
- Quê? Não, eu... esquece! Temos que pensar no que fazer!
- Já sei. Vamos embora.
- Como assim? E deixar elas aqui?
- É! Porque não?
- Ir embora sem avisar?
- É.
- Deixar elas pra trás, confusas e se sentindo um lixo, rejeitadas e enganadas?
- Sim. Pilha?
- Pilho certo. Vamos aproveitar que elas estão demorando.
- Muito afudê isso, né? Mostrar quem é que manda.
- Isso aí. A mina acha que eu estou me arrastando pra ela. Agora, vai ver que eu não tô nem aí.
- É.
- Mas diz aí. Você estava gostando de ficar com a gordinha, né?
- Eu? De jeito maneira. Fiz tudo por amizade.
- Vamos lá. Confessa.
- Tá. Um pouco. Ela tem um rosto bonito.
- Aham. Sabia. Você estava curtindo.
- Além disso, ela beija bem. Uma coisa legal dessas mulheres que ninguém pega é que elas sabem dar
valor com quem tem coragem de ficar com elas. Elas fazem o cara se sentir no topo do mundo.
- É muito fogo guardado.
- Como elas estão demorando...
- Quer saber? Fica aí, curtindo ela. Eu vou embora sozinho.
- Quê? Não, cara, não é pra tanto, vamos nós dois juntos.
- Não, fica. Você tem mais é que aproveitar. Só não pede pra eu ficar e ter que suportar a arrogância
da outra...
- Mas se bem que eu pensei...
- O quê?
- Das duas uma: ou ela pode ficar arrasada porque você foi embora...
- Ou...
- Ou ela pode achar que você ficou com medo. Ou com vergonha do fora que levou.
- Ih...
- Aí ela vai se sentir melhor ainda. Mais poderosa. Mulher adora isso.
- Ah, não. Não vou dar essa satisfação.
- Vamos ficar, então?
- Não sei. Vamos dar mais um tempo, amadurecer a ideia.
- Certo, então. Mas que loucura, elas ainda estão no banheiro.
- Estão. Que vontade de fofocar, essa.
5 minutos depois:
- Ainda não vieram? Já estou sentindo falta da minha gordinha.
- Será que era verdade? O negócio do ex-namorado, eu digo. Será que ela está se sentindo mal, por querer ficar comigo mas não estar preparada? Isso explica a demora. Deve estar conversando com a amiga.
- Talvez. Eu disse que ela estava afim de você. Eu nunca me engano nessas coisas.
- Pois é. Vou tentar insistir de novo com ela quando voltar. Dizer que está tudo bem, que ela tem
que se abrir de novo para as coisas boas da vida, etcetera.
- Boa, boa. Mas se não der, a gente vaza.
- Sim, sim. E deixamos elas no chão.
Mais 5 minutos:
- Quem sabe a gente não dá uma volta? Vê se elas não estão por aí?
- Pode ser. Vamos nos separar para procurá-las?
- Sim. Nos encontramos aqui daqui a pouco.
Outros 5 minutos:
- Cara, elas foram embora.
- Não pode ser.
- Procurei por tudo. Pedi para uma menina checar no banheiro. Elas não estão em lugar nenhum.
- Elas nos deixaram. Não acredito
- Não acredito eu! Eu perdi a Ana Denise pra sempre!
- Quem? A gordinha?
- Não chama ela assim! Ela era perfeita pra mim, meu Deus, e agora ela foi embora!
- Do que você está falando, cara?
- Ela era a mulher da minha vida. E não era gordinha, nada. Era linda.
- Era gordinha.
- Tá, era gordinha. Mas linda de qualquer maneira.
- E eu, cara? Que perdi a Isabel?
- Quem?
- A amiga da gord... da Ana Denise. Podia ter insistido mais. Mas não. Desisti. Foi um teste. Ela estava afim de mim. Ela queria ver se eu estava também, se eu estava disposto a lutar por ela. Não lutei. Desisti com todas as armas na mão. Fui eu, no final, que fiquei me fazendo. Sou um merda.
- Que tipo de pessoa faria tal coisa? Que tipo de monstro nos abandonaria aqui, despedaçando nossos corações?
- O pior tipo, caro amigo. O pior tipo.
***
Ela ergue a manga e mostra as marcas de cigarro.
- Quem fez isso?
- Eu mesma.
E toma um gole da cerveja, que já está quente. Não está nem aí. Aliás, ela parece nunca ter estado aí para nada.
Acende um cigarro. Por um momento o rapaz fica tenso, pensando que ela vai apagá-lo em si mesma, mas não. Dá uma baforada, olha para as pessoas na pista de dança. Volta a face lentamente para o rapaz e continua falando:
- É para eu me lembrar de que estou viva. Às vezes é necessário pra saber que não morri. Foi parecido quando eu fiz isso - Ela mostra uma cicatriz em forma de coração em um dos braços - Lembro que eu achei que ia doer. Até que não doeu. Foi na época da Ciça.
- Ciça?
- É. Uma namorada. Uma trapezista anã, a Ciça. Fugi de casa pra seguir o circo dela, aos dezesseis. Fiz o coração como prova de amor. Pra mostrar que é algo que dói, mas que eu estava disposta a vivê-lo. Aquela vaca. Me trocou pelo mágico croata. Eu vi que ela olhava para ele de um jeito especial durante as orgias que fizemos juntos, mas não achei que ia acabar assim.
- Ah.
- Mas ela teve o que mereceu. Pedi para o Dudu dar um jeito nela.
- O Dudu é...
- O meu amigo bruxo.
- Ah.
- Invadi o quarto dela numa noite e arranquei um tanto de seu cabelo. Saí sem acordá-la. Provavelmente ela estava de porre, como sempre. Ah, Ciça. Depois dei o tufo para o Dudu, que fez um vodu. Poderosíssimo. Ela não morreu, a Ciça, mas perdeu o emprego, o amante e agora é entregadora de flyers nas sinaleiras. Foi um ritual macabro, o do Dudu. Eu participei. Tive que dar o meu sangue, para ficar mais efetivo. Foi a origem disso aqui - e mostra um corte no pulso.
Ela pontua a frase com uma baforada. Então pergunta:
- Você disse que ia me contar algo louco que fez hoje. O que era?
O rapaz cruza os braços, de forma a esconder a pequena tatuagem de "Coragem" em ideograma japonês que fizera à tarde.
- Não. Disse? Impressão sua.
- Qual?
- Atrás daquele cara.
- Sim, estou vendo ele... ela.
- É ele ou ela?
- É... não sei. Caramba! Não sei mesmo. Que pessoa esquisita.
- Parece um homem. Acho que é um homem.
- Com esse cabelo? Com essas roupas? Não pode ser.
- Se bem que pode ser mulher. Mas... poxa. Nunca vi mulher assim.
- Nem eu.
- Olha lá. Tá beijando um cara.
- Então é mulher.
- É.
Minutos depois.
- Olha lá.
- O quê?
- Ali. O cara-barra-mina.
- Aonde?
- Beijando aquela mulher.
- Vi.
Ele leva a cerveja até a boca, dá um gole tranquilo, depois se dá conta.
- Caramba!
- Não precisava cuspir em mim.
- Desculpe. E agora? Será que é homem?
- Sei lá. Não tem sinal de barba.
- O corpo... é reto. Não parece de mulher.
- Mas sei lá, né? Pode ser uma dessas mulheres sem peito, bunda...
- ...Sem graça. Pode ser.
- Mas olha o pé. Pé 42. É homem, com certeza.
- Tá. É homem.
- É.
Mais tempo depois.
- Olha ali o nosso cara-barra-mina. Tá ficando com outra pessoa.
- Outra? Oba, mais pistas. É homem ou mulher?
- É homem. Não, peraí, é mulher.
- Aquela ali? Só se for a mulher mais feia da Terra. É homem.
- Não, é mulher! Tô te dizendo.
- Você mesmo disse que era homem.
- Olhando de um ângulo, mas se você olha desse...
- De qual?
- Desse. Vem pra cá. Daí parece mulher.
- Mais ou menos. Não dá pra ter certeza.
- Quer saber? Dane-se.
- Por quê?
- Olha bem pra elas. Ou eles, sei lá. Não tem como a gente saber o que são porque nem eles devem
saber.
- Pior. Mas sabe de uma coisa? Eles parecem bem felizes assim. Um brinde a eles.
- A elas.
- Que seja.
***
- Tá ouvindo isso?
- O quê?
- É "Kids". De novo. Botaram pra tocar de novo essa bosta. Não aguento mais essa música.
- Pois é.
- Eles sempre botam as mesmas merdas. Ou é isso ou é "D.A.N.C.E.". Mas o pior é esse tecladinho.
Não aguento mais esse tecladinho.
- Cara...
- A música inteira é esse tecladinho. Que troço enjoado. No início era legal, agora não dá mais. Ninguém aguenta.
- Você sabe que não é com a música que você está brabo...
- É sim. Eu e todo mundo. Eu sei que essas pessoas estão dançando, mas no fundo elas estão sofrendo. Elas odeiam a música tanto quanto eu. Elas fingem gostar porque essa merda é cool. Isso me dá nos nervos. Dancem! Dancem e sofram !
- Não é assim.
- É sim.
- Não é. E fica sereno.
- Eu estou sereno. Sereníssimo. É só essa música. Não aguento mais essa música.
- Não é a música. É a Sofia, e você sabe disso.
- Não sei do que você está falando.
- Não te faz. Deixa ela pra lá, cara, não adianta ficar bolado com isso.
- Eu não estou. Sério. Não estou mesmo. Estava me divertindo à beça, só que essa música estragou tudo. É a epítome da falta de criatividade. É uma afronta aos bons ouvidos. A música está me afrontando.
- Eu sabia que a gente não devia ter vindo aqui. Eu esqueci que foi aqui que vocês se conheceram. Devíamos ter ido pra outro lugar.
- Não, não. Aqui tá ótimo. E, se ela estiver aqui hoje, tanto faz.
- É por isso que você quis vir pra cá? Porque acha que ela pode estar aqui?
- Eu? Não! Capaz, nem me passou pela cabeça. Mas se você ver ela, me avisa.
- Ela não vai voltar pra ti.
- A única coisa mais irritante que o teclado é essa voz sintetizada.
- Me escuta...
- Eu vou lá pedir pra trocarem de música. Não quero nem saber.
- Cara, ela não vai voltar...
- É isso. Eu vou ir lá pedir e já volto. Me espera aí.
- Cara...
O outro se vira, mas ele o agarra pelo braço.
- Cara, ela não vai voltar!
O outro o encara nos olhos, com raiva. Então começa a chorar. Abraça-se no amigo como uma criança na mãe.
- Eu amava ela, cara! Amava ela!
- Eu sei, eu sei...
- E sabe o que é pior? Ela que me deu o fora. Disse que acabou e acabou. Mas eu não estava pronto,
entende? Eu não estou pronto!
- Entendo, entendo...
- Por que elas acham que podem pôr um ponto final assim, no mais? E nós, cara? E nós, como ficamos?
- Ela é uma vaca. Não fica mais correndo atrás dela.
- Tá, mas eu tô sofrendo, cara, eu tô sofrendo.
- Calma, calma. Ó, até mudaram a música.
- É?
- Isso. Agora tá tocando "D.A.N.C.E."
E o outro volta a chorar.
***
- Legal, aqui. Nunca tinha vindo ao Cabaret, antes.
- Aqui é o Porão.
- Não, é o Cabaret. Olha lá o pooldance.
- O quê?
- Pooldance. O poste, lá. O mastro de cabaré.
- Ah. O pau-de-puta.
- Isso. Viu? Aqui é o Cabaret.
- O pau-de-puta só tem no Porão. Aqui é o Porão.
- Como assim? Pooldance não é coisa de cabaré?
- É, sim, mas Cabaret é o outro. É na mesma rua, mas é outro.
- Quantos Becos têm, afinal?
- Bom, tem esse, o Cabaret e o novo que abriu, o Diskoclub.
- Qual é esse?
- É aquele pequeno, escuro e apertado, com gente velha e música que ninguém conhece, e um andar
com pista de dança no subsolo.
- No subsolo? Você quer dizer num porão?
- É.
- Então aquele é o Porão?
- Não! Aqui é o Porão!
- Aqui não era o Cabaret?
- Não!
- Ah é, tá certo. Então deixa eu ver se eu entendi...
- Tá.
- O Cabaret não tem mastro de cabaré...
- Não, não tem.
- E o que tem o mastro não é o Cabaret, mas o Porão...
- Sim.
- E o que tem o porão é o Diskoclub. É isso?
- É isso. Entendeu agora?
- Não.
- Nem eu. Vamos beber?
- Vamos.
***
- Oi, com licença.
- Oi.
- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. É sério, não é papo furado. Foi uma coisa assim, pá-pum, entendeu? Eu te vi, no meio das outras, e vi que você era diferente. Vi que você era especial. Sabia que precisava falar contigo. Eu disse pra mim mesmo: "cara, eu não posso sair dessa festa sem antes falar com essa mina. Ela é especial. Eu não vou sair daqui sem beijá-la". E é isso. Sem frescura, resolvi ser direto. Não posso perder essa oportunidade, deixar você sair daqui, sair da minha vida, e talvez nunca mais vê-la, sem fazer nada. Não posso.
A menina ouve tudo sorrindo, pega na mão do menino e diz:
- Ah, sinto muito, mas eu estou namorando...
- Ah.
- É uma pena, eu sei como você está se sentindo, mas... não posso, entende?
- Sei.
- Não depende de mim. Mas não fica mal, tá cheio de gente especial por aí...
- Certo, certo...
A menina se despede e vai embora. O menino vira para outra e diz:
- Oi.
- Oi!
- Olha só. Desde que você chegou, não consegui tirar os olhos de você.
- É?
- Sério. Nunca uma pessoa me cativou assim antes. Eu te vi e foi, assim, pá-pum, sabe? Te vi, assim, no meio das outras, e foi aí que...
***
- Cara, afinal, o que houve?
- Não deu certo, cara. Não deu certo.
- O plano era bem simples: eu ficava com a gorda e você ficava com a outra. Não tinha erro. Ela
estava na sua!
- Eu tentei. Também pensei a mesma coisa. Mas aí...
- Aí o quê?
- Ela veio com o papo do ex-namorado.
- Ah! O papo do ex-namorado...
- Isso. Disse que tinha se separado ontem, e que não estava pronta pra recomeçar essa coisa de ficar
com outros, blablablá blablablá...
- Não cai nessa! Ela tá se fazendo!
- E o que você quer que eu faça? Que eu continue insistindo? Eu não vou ficar mendigando esmola.
- Deixa de ser orgulhoso, mulher não funciona assim. Você tem que mudar de postura. Ela tá na sua, eu vi que ela tá afim...
- Quer saber? Só estamos tentando alguma coisa aqui porque você sentiu que ela estava afim de mim. Você que disse que ela estava olhando pra mim e me empurrou pra falar com ela. Estamos aqui nos ferrando por causa de uma impressão sua. Você se ferrando mais do que eu, já que ficou com a gorda.
- Eu fiquei com a amiga gorda só pra te ajudar, e você me desperdiça a chance...
- Eu tentei te salvar. Fiz sinais frenéticos de "abortar plano!", "abortar plano!", mas você grudou a
menina na parede e nem me viu.
- O que vamos fazer agora? Decide rápido, elas podem voltar do banheiro a qualquer momento!
- Mulher tem dessas, né? Vão juntas no banheiro pra fofocar sobre nós, os homens. "Aquele cara
queria ficar comigo! Sabe o que eu fiz? Usei a tática do ex-namorado! Hohoho, ele caiu feito um patinho!"
- A mina ri que nem o Papai Noel?
- Quê? Não, eu... esquece! Temos que pensar no que fazer!
- Já sei. Vamos embora.
- Como assim? E deixar elas aqui?
- É! Porque não?
- Ir embora sem avisar?
- É.
- Deixar elas pra trás, confusas e se sentindo um lixo, rejeitadas e enganadas?
- Sim. Pilha?
- Pilho certo. Vamos aproveitar que elas estão demorando.
- Muito afudê isso, né? Mostrar quem é que manda.
- Isso aí. A mina acha que eu estou me arrastando pra ela. Agora, vai ver que eu não tô nem aí.
- É.
- Mas diz aí. Você estava gostando de ficar com a gordinha, né?
- Eu? De jeito maneira. Fiz tudo por amizade.
- Vamos lá. Confessa.
- Tá. Um pouco. Ela tem um rosto bonito.
- Aham. Sabia. Você estava curtindo.
- Além disso, ela beija bem. Uma coisa legal dessas mulheres que ninguém pega é que elas sabem dar
valor com quem tem coragem de ficar com elas. Elas fazem o cara se sentir no topo do mundo.
- É muito fogo guardado.
- Como elas estão demorando...
- Quer saber? Fica aí, curtindo ela. Eu vou embora sozinho.
- Quê? Não, cara, não é pra tanto, vamos nós dois juntos.
- Não, fica. Você tem mais é que aproveitar. Só não pede pra eu ficar e ter que suportar a arrogância
da outra...
- Mas se bem que eu pensei...
- O quê?
- Das duas uma: ou ela pode ficar arrasada porque você foi embora...
- Ou...
- Ou ela pode achar que você ficou com medo. Ou com vergonha do fora que levou.
- Ih...
- Aí ela vai se sentir melhor ainda. Mais poderosa. Mulher adora isso.
- Ah, não. Não vou dar essa satisfação.
- Vamos ficar, então?
- Não sei. Vamos dar mais um tempo, amadurecer a ideia.
- Certo, então. Mas que loucura, elas ainda estão no banheiro.
- Estão. Que vontade de fofocar, essa.
5 minutos depois:
- Ainda não vieram? Já estou sentindo falta da minha gordinha.
- Será que era verdade? O negócio do ex-namorado, eu digo. Será que ela está se sentindo mal, por querer ficar comigo mas não estar preparada? Isso explica a demora. Deve estar conversando com a amiga.
- Talvez. Eu disse que ela estava afim de você. Eu nunca me engano nessas coisas.
- Pois é. Vou tentar insistir de novo com ela quando voltar. Dizer que está tudo bem, que ela tem
que se abrir de novo para as coisas boas da vida, etcetera.
- Boa, boa. Mas se não der, a gente vaza.
- Sim, sim. E deixamos elas no chão.
Mais 5 minutos:
- Quem sabe a gente não dá uma volta? Vê se elas não estão por aí?
- Pode ser. Vamos nos separar para procurá-las?
- Sim. Nos encontramos aqui daqui a pouco.
Outros 5 minutos:
- Cara, elas foram embora.
- Não pode ser.
- Procurei por tudo. Pedi para uma menina checar no banheiro. Elas não estão em lugar nenhum.
- Elas nos deixaram. Não acredito
- Não acredito eu! Eu perdi a Ana Denise pra sempre!
- Quem? A gordinha?
- Não chama ela assim! Ela era perfeita pra mim, meu Deus, e agora ela foi embora!
- Do que você está falando, cara?
- Ela era a mulher da minha vida. E não era gordinha, nada. Era linda.
- Era gordinha.
- Tá, era gordinha. Mas linda de qualquer maneira.
- E eu, cara? Que perdi a Isabel?
- Quem?
- A amiga da gord... da Ana Denise. Podia ter insistido mais. Mas não. Desisti. Foi um teste. Ela estava afim de mim. Ela queria ver se eu estava também, se eu estava disposto a lutar por ela. Não lutei. Desisti com todas as armas na mão. Fui eu, no final, que fiquei me fazendo. Sou um merda.
- Que tipo de pessoa faria tal coisa? Que tipo de monstro nos abandonaria aqui, despedaçando nossos corações?
- O pior tipo, caro amigo. O pior tipo.
***
Ela ergue a manga e mostra as marcas de cigarro.
- Quem fez isso?
- Eu mesma.
E toma um gole da cerveja, que já está quente. Não está nem aí. Aliás, ela parece nunca ter estado aí para nada.
Acende um cigarro. Por um momento o rapaz fica tenso, pensando que ela vai apagá-lo em si mesma, mas não. Dá uma baforada, olha para as pessoas na pista de dança. Volta a face lentamente para o rapaz e continua falando:
- É para eu me lembrar de que estou viva. Às vezes é necessário pra saber que não morri. Foi parecido quando eu fiz isso - Ela mostra uma cicatriz em forma de coração em um dos braços - Lembro que eu achei que ia doer. Até que não doeu. Foi na época da Ciça.
- Ciça?
- É. Uma namorada. Uma trapezista anã, a Ciça. Fugi de casa pra seguir o circo dela, aos dezesseis. Fiz o coração como prova de amor. Pra mostrar que é algo que dói, mas que eu estava disposta a vivê-lo. Aquela vaca. Me trocou pelo mágico croata. Eu vi que ela olhava para ele de um jeito especial durante as orgias que fizemos juntos, mas não achei que ia acabar assim.
- Ah.
- Mas ela teve o que mereceu. Pedi para o Dudu dar um jeito nela.
- O Dudu é...
- O meu amigo bruxo.
- Ah.
- Invadi o quarto dela numa noite e arranquei um tanto de seu cabelo. Saí sem acordá-la. Provavelmente ela estava de porre, como sempre. Ah, Ciça. Depois dei o tufo para o Dudu, que fez um vodu. Poderosíssimo. Ela não morreu, a Ciça, mas perdeu o emprego, o amante e agora é entregadora de flyers nas sinaleiras. Foi um ritual macabro, o do Dudu. Eu participei. Tive que dar o meu sangue, para ficar mais efetivo. Foi a origem disso aqui - e mostra um corte no pulso.
Ela pontua a frase com uma baforada. Então pergunta:
- Você disse que ia me contar algo louco que fez hoje. O que era?
O rapaz cruza os braços, de forma a esconder a pequena tatuagem de "Coragem" em ideograma japonês que fizera à tarde.
- Não. Disse? Impressão sua.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Romântico
Olhe aqueles dois, ali, tão felizes, tão enamorados. Ele, com um violão de aço; ela, com um de nylon, provavelmente para não machucar os dedos. Entre os dois, apenas uma pasta de cifras. Entre os dois, um universo de músicas e acordes esperando para serem tocados, entre risos, flertes e beijos. O homem mostra, aqui, isso é um Dó, é assim, e faz a posição no braço do violão. Como, assim? A menina faz a posição invertida. Não, é assim, e ele mexe nos dedos dela, reposiciona-os, de forma a ficarem nas casas certas. Ah, ela diz, e ri, e ele também ri.
Que lugar perfeito para um encontro assim, uma praça, um banco, quatro da tarde. Sol de leve, batendo nas pernas, brisa mansa. Dois violões e uma pasta de cifras. E a música. A música une as pessoas. A música apaixona e faz apaixonar. Estou vendo a menina pedindo para aprender uma em específico, que ela adora. E ele aceita, é claro. Óbvio que ele aceita. Poderia ser a música mais difícil do mundo, mas ele nunca iria recusar um pedido da amada. Estão enamorados, é óbvio. Ele mostra, ó, começa assim. E ela tenta fazer a posição, mas não consegue, ai, é difícil. Ele ensina, ó, tem um outro jeito de fazer, vê se assim é mais fácil. Sempre há um jeito mais fácil de fazer. A música é universal e tem tantas possibilidades quanto o amor. A combinação de acordes é tão infinita quanto a combinação de pessoas, mas algumas, ah, algumas dão mais certo. Algumas são mais bonitas. Algumas casam perfeitamente, como se Deus tivesse feito um acorde, ou uma pessoa, já pensando em acompanhar o outro. Ela tenta fazer o outro acorde. Exige uma pestana. Vamos mudar de música, ele conclui, e ela concorda, e ri, e lhe dá um beijinho.
Quisera Vênus fazer o amor tão fácil de trocar como uma música. Não é assim. Amor é o que fica, é, sei lá, um aparelho de som sem a opção de trocar faixas. É um vinil! Sim, é um vinil. O amor não muda quando você quer. É preciso terminar a faixa, para então vir a próxima. Os amores da nossa vida são uma sucessão de faixas até encontrarmos aquela em que ligamos o repeat e deixamos até o fim, só curtindo a amplitude de suas ondas sonoras, dissecando cada instrumento. E o lado B é... bom, eu não tenho uma metáfora para o lado B. Mas voltemos àqueles dois. Ele mostra outra música para ela. Essa é mais fácil, e toca os acordes, e ela balança a cabeça, acompanhando o ritmo. Então faz o primeiro acorde, e toca junto dele, e tenta pegar o ritmo, mas não consegue. E tenta mais, e de novo, e ele diminui o ritmo para ficar mais fácil. Tem que soltar o pulso, ele diz, e ela sabe, mas é difícil. Tem que entrar no ritmo. Em uma relação, tem que se soltar o pulso. Quando os dois não estão na mesma levada, as notas soam fora de tempo. Quem está certo? Ninguém, é apenas a mesma música em dois tempos diferentes. É preciso que um ceda, entre no tempo do outro, ou ainda que ambos cedam, e juntos criem um tempo intermediário, um novo tempo, um tempo em comum. Olha aí, eles conseguiram. A menina acompanha o menino quase na mesma levada. Mais um pouco e ela chegará à perfeição. Confiança demanda treino. Deixar-se levar pelo outro não é sinal de fraqueza, mas de confiança. Ela entrou no ritmo dele, e ele diz, isso aí, e os dois tocam em harmonia. Estão juntos nessa, ela confiando nele, e ele levando-a, ao som da mesma música, na mesma sintonia, num mundo particular em que não entra nenhum intruso. Ninguém vai...
- Aí, rapá!
- Oi?
- Tá olhando a minha mina?
- Eu?
- Tá olhando a minha mina, mané?
- Não, é que...
- Sai fora senão eu te arrebento!
Não dá mais pra ser romântico.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Anedotas
Ninguém sabe como surgem nem para onde vão. Como os buracos negros, só que com graça. Mas é certo que a origem das anedotas é um mistério. Você certamente não conhece ninguém que criou uma. Você a ouviu de um amigo, que a ouviu de outro amigo, que a ouviu de quem mesmo? Não sabe. Leu em algum lugar. Piadas são de domínio popular. Nunca saberemos quem foi o gênio por trás da anedota do cachorro Nabunda. Possivelmente já morreu, e no anonimato. Enquanto isso, continuam reproduzindo a sua anedota em livrinhos de piada, que seriam bem menos rentáveis se tivessem que pagar direitos autorais pelas piadinhas.
E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:
- Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
- Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
- Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
- Tá! Então o Joãozinho...
- Sim...
- ....E um rabino gago...
- Sim...
- ...Em um avião. Já tem?
O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
- Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
- Argh!
Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.
E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.
E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.
- Você ouviu a do pontinho que...
- Não! Chega!!!
Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.
E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.
***
Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:
Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:
- Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.
- Em que você trabalha? - pergunta o outro?
- Num asilo. Médico gerontologista.
- Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.
- Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.
- Enfermeiro. Da área terminal.
O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:
- Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.
Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.
- Jornalista. Política nacional.
O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.
E o que aconteceria se as anedotas tivessem dono? Se elas fossem registradas como propriedade intelectual do criador, as revistinhas de humor estariam em uma fria. Seriam forçadas a produzir material próprio, contratar uma redação que teria como única finalidade ficar trancada numa sala pensando em anedotas novas. Não é fácil bolar um anedotário novo todo mês. A seção de brainstorm, perto do fechamento da edição, seria uma zona tensa:
- Rápido, mais piadas! Precisamos encher mais quatro páginas!
- Tá! Deixa eu pensar. O Joãozinho vai na escola e...
- Não, chega de Joãozinho na escola. Já temos três só nessa edição.
- Tá! Então o Joãozinho...
- Sim...
- ....E um rabino gago...
- Sim...
- ...Em um avião. Já tem?
O primeiro confere numa tabela, onde as anedotas estão classificadas por categorias como "personagens", "ambientação" e "teor ofensivo".
- Joãozinho... Rabinho gago... Avião... Já tem.
- Argh!
Falando em Joãozinho, nunca paramos pra pensar que a sua vida não é assim tão engraçada. É até trágica. Sua inadequação na escola deve ter sido a causa indireta do suicídio de ao menos quatro professoras. Seu pai é ausente, não se ouve falar dele nunca. Sua mãe morreu de morte súbita. Comete erros crassos na escola. Joãozinho acha que "hospedar" são os pedais da bicicleta. É a prova de que a educação brasileira é uma instituição falida.
E o Manuel? Costumamos chamar os portugueses de burros, mas nunca pensamos que as anedotas de portugueses giram apenas em torno do Manuel, de seu amigo Joaquim e da Maria. Que, a bem da verdade, não são bons exemplos do brilhantismo humano. Então, a nossa noção da inteligência lusitana é baseada tão somente em três pessoas. É um certo preconceito, isso. Vai ver o resto dos portugueses não é assim. Se bem que dizem que o banco 24 horas de Lisboa só abre à meia-noite. E que o trem elétrico não funcionou porque depois dos primeiros cem metros ele saía da tomada. Então talvez seja um preconceito válido.
E os pontinhos, pelo amor de Deus! O que raios são os pontinhos? E não, isso não é uma das charadas. Os pontinhos estão por toda a parte. Estão no Corcovado, na Antártida, no céu, no chão, no topo de um arranha-céu (o fandangos suicida), como uma verdadeira praga. Antigamente, essas anedotas de pontinhos davam mais que pereba em guri.
- Você ouviu a do pontinho que...
- Não! Chega!!!
Hoje, não se ouve falar mais delas. Um caso de controle de pragas bem sucedido.
E, claro, temos o Bar. O cenário padrão das anedotas. Muito especula-se sobre a exata localização geográfica do Bar. A melhor hipótese, devido ao fato de que no Bar encontram-se argentinos, gaúchos, americanos, japoneses, turcos, paulistas, mineiros e, é claro, portugueses, é que ele fique num aeroporto internacional. O Bar tem uma clientela variada. Travestis discutem com bêbados, ou travestis bêbados discutem com advogados, ou loiras, ou rabinos gagos. Todo mundo se sacaneia no Bar. Uma vez um cara apostou 500 reais que mijaria em todo o Bar, até no balconista, e este ainda sairia rindo. Até hoje esse causo é repercutido por lá. Milagres já aconteceram no Bar. Um homem recusou-se a derrubar cachaça para o santo, fez uma figa e seu braço endureceu no mesmo instante. Um velhinho viu a cena e repetiu o ato, só que baixando as calças ao invés de fazer figa. Depois puxou uma arma e ameaçou de morte quem tentasse desfazer a maldição. O povo do Bar é assim mesmo. Uma piada.
***
Contradizendo a tradição do anonimato dos anedotistas, bolei uma anedota. Ela não é muito boa, mas vale pelo registro histórico. É a primeira anedota com registro de propriedade intelectual. Está no meu blog, e não pode ser reproduzida sem os devidos créditos blablablá. Quem o fizer será severamente punido pela lei brasileira. Isso foi uma piada, a lei brasileira não pune severamente. Eu estou impossível hoje. Pois bem, vamos a ela:
Num Bar estão dois homens. Um deles puxa assunto com o outro:
- Não aguento mais o meu trabalho. É deprimente. Todo o dia eu tenho que conviver com a decadência e a perda de dignidade. Eu vejo a situação e tento me enganar que vai melhorar, mas não vai. Só piora a cada dia. À noite eu chego em casa e penso se vale a pena voltar para lá no próximo dia.
- Em que você trabalha? - pergunta o outro?
- Num asilo. Médico gerontologista.
- Pois comigo é a mesma coisa. Meu trabalho me deprime. Todo o dia eu vou lá, tentando me convencer de que a situação tem jeito, que pode ser melhorada, mas não tem. Não há melhora. Antes eu acreditava em milagres, que as piores situações tinham reparo. Não nesse caso. A única opção é piorar. À noite eu chego em casa e fico conversando com a minha mulher, até que a angústia passe.
- Trabalha no quê? - pergunta o médico gerontologista.
- Enfermeiro. Da área terminal.
O outro concorda, cabisbaixo. Daí chega um terceiro cara, que estava ouvindo a conversa, e diz:
- Eu vivo a mesma situação. Meu trabalho é uma merda. Há anos que eu penso que pode melhorar, que a situação vai evoluir positivamente, mas percebi que era pura inocência. Perda de dignidade? Nunca houve dignidade, pra começar. A coisa é tão ruim assim. Não há esperança de melhora. Tenho que viver envolto com a decadência e a putrefação humana. Antes eu acreditava em milagres. Perdi a fé. À noite eu chego em casa e choro por horas.
Os outros, impressionados, perguntam o que o terceiro cara faz.
- Jornalista. Política nacional.
O que é um pontinho bem sério sentado numa cadeira? É você, não rindo dessa anedota.
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