quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A gravata amarela

     - Bom dia, seu Marcílio! Entre!

     - Bom dia, seu Juarez! A que devo a honra de ser chamado para a sua sala? É algo de bom ou ruim?

     - Que nada, seu Marcílio. Não precisa ficar preocupado. Você é o melhor funcionário da empresa. Suas vendas são maiores que a de todos os outros vendedores. Puxa vida, mês passado seu desempenho foi melhor que o do Gabardo e o do Pacheco, juntos.

     - Mas, cá entre nós, uma toupera vende mais que o seu Pacheco.

     - Rarará, é verdade. Enfim, piadas ofensivas à parte, você é o nosso funcionário modelo. Pontual. Eficiente. Sempre disponível.

     - Sim.

     - Mas... tem uma coisa, uma coisinha só, que eu gostaria que o senhor mudasse.

     - Sim?

     - É a sua gravata.

     - A minha gravata?

     - É.

     - O que tem a minha gravata?

     - Ela é amarela.

     - E...?

     - Não é profissional. É berrante demais. Eu vejo primeiro a sua gravata e depois você. Eu vejo um clarão amarelo e tenho que cobrir os olhos e perguntar: "quem está aí?", sabe? E você sempre usa essa gravata. Nada contra, até acho bonita para outras ocasiões, mas tente entender que usar uma gravata amarela no trabalho é uma atitute antiprofissional.

     - Você não gosta da minha gravata?

     - Não foi isso o que eu disse.

     - Com todo respeito, senhor Juarez, não é como se eu estivesse vindo trabalhar, digamos, de bermudas. Eu estou usando uma simples gravata. Além do mais, eu odeio gravatas, mas é obrigação usá-las, ok. Se eu tenho de usá-las, pelo menos uso de uma cor que eu gosto. Ela não piora meu desempenho, então não há problemas...

     - Mas o seu desempenho não é o caso, senhor Marcílio. O senhor é o profissional modelo, a não ser... por essa gravata! É só deixar de usá-la!

     - Não.

     - Não?

     - Eu cumpro prazos, faço vendas, uso terno no calor do verão e com o ar-condicionado estragado, ainda por cima. A gravata é o meu jeito de extravasar.

     - Você não vai tirar a gravata?

     - Não.

     - Bom, isso me obriga a adotar medidas drásticas...

     - Como o quê? Eu sou o melhor funcionário. Você não iria querer me perder. Esta reunião acabou.

     - Marcílio! Volte aqui!

     - Você mexeu num vespeiro, seu Juarez. Passar bem.

***

     - Pode entrar, seu Asdrúbal.

     - Bom dia, chefe. Vim reportar um comportamento inadequado do seu Marcílio. Ele está usando uma gravata com desenhos de personagens da Looney Tunes. Isso está causando um grande rebuliço no escritório.

     - É mesmo?

     - Sim. As pessoas perguntam se ele sabe o que está fazendo, se ele não tem medo de levar uma repreensão, mas ele insiste em dizer que está blindado. O seu Marcílio está zombando da empresa.

     - Sei...

     - Chefe, gostaria de sugerir um plano de ação...

     - Qual?

     - Demita o funcionário rebelde. Seu mau-comportamento irá se espalhar como um vírus. É preciso acabar com o câncer antes que ele germine. Dê o exemplo para o resto do escritório.

     - Eu não sei, o seu Marcílio é o nosso melhor funcionário.

     - Pense nisso como a amputação de uma perna para salvar o resto do corpo. E, caso o seu Marcílio faça falta, você pode me promover a chefe de vendas, já que as minhas vendas vêm crescendo a níveis...

     - Bom, acho melhor esperar para ver o que o Marcílio está tramando. Seu Asdrúbal, preciso que o senhor fique colado nele e me reporte todas as ações dignas de repreensão.

     - Sim, senhor. Considere cumprido.

     - E me traga um café. Esse está frio.

     - Sim, senhor. Num piscar de olhos.

     - Ah, duas colheres de açúcar, sim?

     - Com certeza, meu amo... digo, chefe.

***

     - Chefe, chefe!

     - O que foi, seu Asdrúbal?

     - O seu Marcílio... o resto do escritório... venha ver!

     O seu Juarez sai da sala com o seu Asdrúbal e vai para o grande escritório onde os vendedores trabalham. Todos estão usando gravatas numa profusão de cores absurda: vermelho, roxo, amarelo, laranja. A mandíbula do seu Juarez cai.

     - Quem é o responsável por isso!?

     - Seu Juarez, que prazer ver o senhor! Como vai?

     - Seu Marcílio, o que é isso na sua gravata?!

     - São pelos. Legal, não? Eles não se contentaram em desenhar uma mulher nua, também quiseram adicionar um efeito 3D...

     - Ora você. Eu vou, eu vou lhe...

     - Vai o quê? Estamos todos ouvindo.

     - Eu vou... seu Asdrúbal!

     - Sim, chefe!

     - Vamos para a minha sala!

     - Sim, senhor!

     Seu Juarez e seu Asdrúbal voltam para a sala de Juarez. Este se senta em sua mesa e põe as mãos no rosto.

     - É o pandemônio...

     - Chefe, para mim está claro o que o seu Marcílio está tramando. Ele quer derrubá-lo e pegar o seu cargo. Para isso, ele o está desacreditando na frente dos outros funcionários.

     - É pior que isso, é uma revolução... ele quer fazer uma revolução no escritório...

     - Faça o que eu disse: despeça-o enquanto ainda é tempo!

     - Eu não posso, Asdrúbal! Não vê? Ele iria embora como mártir! A bomba iria explodir toda na minha cara. Todos iam passar a me desobedecer. Um Poder só é Poder quando há pessoas que o obedecem. Seria o meu fim...

     - O que fazer?

     - Eu tenho que minar o poder das gravatas. Mas como? A não ser... já sei!

     Seu Juarez sai correndo de sua sala e adentra no escritório:

     - Escutem todos! À partir de amanhã, não é mais obrigatório o uso de gravatas no ambiente de trabalho! Rará, é isso mesmo! Ninguém mais é obrigado a vir engravatado para trabalhar! Por isso, podem tirar essa forca ao redor dos seus pescoços, a opressão terminou!

     Todos ouviram o seu Juarez em silêncio. Ele, arfante ao final do discurso, observou as caras neutras de seus funcionários. Então, todos voltaram ao trabalho.

     - Eu acho que eu consegui, Asdrúbal. Eu acho que eu consegui. Estou suando: me busque uma toalha.

     - Sim, mestre... digo, chefe.
    
***

     - Eu não acredito.

     No dia seguinte, todos os funcionários vieram usando bermudas e chinelos de dedos. E gravatas.

     - Eu não entendo, Asdrúbal... eu liberei as gravatas... por quê?

     - Essa é uma atitude totalmente não profissional, chefe. As bermudas então, nem se fala.

     - Eu sei, infeliz! Eu só... Opa, lá vem ele.

     Seu Marcílio entra na sala de seu Juarez, com suas bermudas, seu chinelo de dedo e sua gravata amarela.

     - Boa jogada, Juarez. Pena que falhou.

     - Seu maldito! Eu vou esganá-lo, seu infeliz!

     - Opa! Não toque em mim. Lembre-se que eu estou blindado. Fazer qualquer coisa comigo seria suicídio.

     - Por quê, Marcílio, por quê?

     - Por quê? Porque o senhor representa tudo o que ainda há de podre no sistema trabalhista! Toda a tirania dos chefes que acham que podem ditar o modo de vida de seus trabalhadores, o que fazer, quando comer, o que vestir. O senhor simboliza toda uma repressão sem sentido que nos faz ter de vir trabalhar em pleno verão, de terno preto e sapato, com a joça do ar-condicionado estragado! Por que você não manda consertá-lo? A sanidade mental dos seus funcionários não é importante?

     - Isso é por causa do ar-condicionado?

     - Vai muito além do ar-condicionado.

     - Mas eu cedi! Eu permiti que os funcionários viessem sem gravata! Não é isso o que você queria?

     - Ah, chefinho, a gravata é apenas um símbolo. Não é porque não precisamos mais ter uma corda em volta do pescoço que estamos livres de amarras. Ainda somos controlados por um senhor de terno preto e gravata no pescoço. A única forma de sermos livres é derrubando a ditadura corporativa dos homens de terno!

     - Eu não acredito... você realmente quer fazer uma revolução...

     - A classe operária tomará conta dos meios de produção! Basta de opressão! Viva Lênin! Viva Marx! Viva Che!

     - Asdrúbal! Tire ele daqui!

     - É pra já, chefe.

     - Ei, tire suas mãos de mim, seu discípulo de engravatado...

     Asdrúbal expulsa seu Marcílio e fecha a porta. Suspira.

     - Eu avisei, chefe. O caos está instaurado. Eu quero que saiba que estarei com você enquanto o navio afunda.

     - Cala a boca, Asdrúbal! Ainda não acabou. O seu Marcílio fez um grande teatrinho onde eu fui pintado como o monstro escravizador. Tenho que mostrar que sou como eles, que sou humano. Mas como? A não ser...

***

     No outro dia, o seu Juarez foi trabalhar de gravata amarela. O amarelo da gravata do seu Juarez era muito mais amarelo que o amarelo da gravata do seu Marcílio. O seu Juarez fez questão de cruzar pelo escritório várias vezes, de forma a exibir sua nova aquisição. E, sempre que passava pelos funcionários, fazia um elogio:

     - Bela gravata, seu Dutra!

     - Gostei da cor, seu Carvalho!

     - Legal o tom, seu Pacheco. Rosa. Progressivo.

     - É roxo, chefe.

     - Ainda assim. Muito bom. Continue fazendo... essa coisa de usar... isso.

     Seu Juarez comprou uma gravata amarela para cada dia da semana. Ele tinha as gravatas amarelas mais chamativas do escritório. Desconfiava-se que o seu Juarez pintova suas gravatas com marca-texto, para elas brilharem mais. Pouco a pouco, os funcionários foram deixando de usar as gravatas exóticas; dada algumas semanas, todos já estavam trabalhando novamente de terno. Agora que o chefe aderiu ao hábito, não tinha mais graça. O protesto perdeu a sua razão de ser. Até o seu Marcílio passou a usar uma gravata amarela mais sóbria. Seu Juarez venceu.

***

     O que não quer dizer que ele parou de usar as gravatas amarelas: seu Juarez acabou gostando do acessório. Seu Marcílio tinha razão: elas realmente davam um sentimento de liberdade, de extravasar. Por causa delas, seu Juarez ia de bom humor para o trabalho. Desse jeito, tratava melhor os funcionários, que rendiam mais e realizavam mais vendas. Logo, a divisão do seu Juarez bateu todas as vendas das outras divisões. Seu Juarez foi chamado para uma reunião com os cabeças da empresa:

     - Seu Juarez, em primeiro lugar, parabéns pelo ótimo desempenho apresentado nos últimos meses.

     - Obrigado.

     - A sua divisão é a que mais vende, muito mais que a divisão B ou a C juntas, por exemplo.

     - Bom, temos que ver que uma toupeira vende mais que a divisão C.

     - Rarará, é verdade. Gosto do seu espírito, seu Juarez. Por isso queremos elevá-lo a diretor regional da empresa.

     - Uau! É mesmo!?

     - Com certeza. Você é nosso melhor funcionário. Ninguém bate o seu desempenho em questão de gerência. Só que...

     - O quê?

     - Bom, gerente regional é um cargo que exige que se transmita confiança e profissionalismo. E, para que você assuma o cargo, tem uma coisinha que gostaríamos que o senhor mudasse...

     - O quê? O que é?

     - A sua gravata amarela.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A cultura do ódio

     Não sei se vocês sabem, mas existem certas restrições impostas a jornalistas em ano de eleições. Não dá, por exemplo, para emitir opinião sobre propaganda eleitoral. Tudo para equilibrar o jogo democrático, afinal, se a mídia quiser fazer uma panelinha para falar só os podres de um candidato e só o lado bom do outro certamente o resultado da eleição é afetado. Esse é o motivo pelo qual tenho evitado escrever sobre política, apesar de ser o momento mais propício. Sim, provavelmente nada aconteceria a um simples blogueiro, em um blog que nem tem lá muitas visualizações, mas lei é lei, né.

     Só que dessa vez eu resolvi quebrar o silêncio, e por um bom motivo. Antes eu evitava publicar as minhas opiniões até mesmo para ser imparcial, o que eu acho necessário em período de eleição (não sou contra as restrições aos jornais nesse período), mas agora eu resolvi falar porque o que tenho para criticar acontece não com um ou com outro, mas com TODOS os candidatos. Todos os dois.

     O que é essa campanha de ódio que estamos vendo na TV? Os últimos debates se resumiram a trocas de farpas entre os candidatos. Propostas, necas. O essencial não é mostrar-se o mais bem preparado, e sim pintar o outro como um monstro que levará o país a um retrocesso perigoso e potencialmente sem volta. Isso é mentira: nem Serra nem Dilma ousariam alterar bruscamente um projeto de governo tão popular quanto o atual, tenha ele suas raízes no governo FHC ou Lula. O fato é que nenhum dos dois irá mexer no Bolsa Família, na Petrobrás ou na legislação sobre o aborto, nem reprivatizar ou privatizar loucamente as empresas. São pontos polêmicos, cujas alterações desagradariam a grande parte da população e condenariam o governo do potencial presidente mexeriqueiro ao ostracismo. Muito perigoso. O ideal é deixar como está.

     Ainda assim os dois lados acusam seus opositores de radicalização, como se os planos de governo fossem opostos. E cria-se ódio e mais ódio, e factoides, e os factoides geram agressão, e a agressão gera mais agressão, e os candidatos ao invés de mandarem parar com o baixo nível se fazem de vítima por agressões com uma bolinha de papel e uma bexiga suspeita. O correto seria pedir para os eleitores baixarem a bola, mas o clima de acusações mútuas está a levar o Brasil para um cenário no qual não importa quem ganhe, metade da população não vai gostar. E vai espernear.

***

     Não precisava ser assim, mas a agressão colou. Colou porque é bom odiar. É bom se dizer anti-alguma coisa. Os políticos só estão a dar ao povo o que o povo quer. É ótimo poder xingar irracionalmente qualquer coisa. Um meio-motivo já basta. Não é necessário um quadro imparcial da situação, é bom saber os fatos só o suficiente para poder ter ódio de alguém, sem saber os motivos que o levaram a fazer aquilo. O FHC privatizou porque é do mal. Não foi para renovar empresas sucateadas e sim para dar dinheiro aos estrangeiros. O PT fez o mensalão porque é do mal, e não para conseguir apoio num Congresso engessado onde a maioria era oposição. Ouvir só um lado da história é bom, porque dá motivos para odiar sem ter que entender. Entender é secundário. Entender dá menos motivos para odiar.

     Por que e quando começou essa cultura do ódio? Do ódio por prazer? Será que sempre foi assim? E os hippies, será que no fundo, por baixo daquela capa de paz e amor, eles não amavam odiar? Os alemães têm uma palavra para se referir ao prazer que temos ao ver o outro se dando mal. Como quando rimos ao ver uma vídeo-cassetada. Não tenho ideia de como é a palavra, deve ser alguma coisa cheia de consoantes, mas o fato é que esse prazer na dor alheia existe de fato. Está registrado no dicionário. O prazer na dor é o combustível do ódio. Odiar é querer ver o outro se ferrar, e se sentir bem com isso. Na Alemanha ou em qualquer outro lugar.

     Não acho que esse amor pelo ódio seja uma característica inata e sim algo adquirido com a falta de amor. Pois veja bem, alguém rejeitado, que não se adequa ao que é esperado dele, deve se sentir muito bem ao ver que não é o único tratado assim. Quem é a grande maioria dos fãs dos vídeos do Felipe Neto? São pessoas bem resolvidas ou adolescentes e pós-adolescentes, vítimas de bullying ou indiferença, que precisam provar, até para si mesmos, que existem pessoas mais ridículas do que eles e, portanto, mais merecedoras de um estigma social? Poderiam ser elas os alvos desses vídeos, mas não são, e por isso elas podem rir à vontade.

     Não é ótimo rir quando o lado menos aceito dos outros é exposto na internet, um lugar onde todos podem gerar ódio e ninguém precisa assumir sua identidade? Na internet todo mundo paga de foda e ninguém o é, senão não perderiam tempo em discussões nas páginas de comentários do Youtube.

***

     Não, não: essa cultura do ódio é recente e parte das exigências que a estrutura social atual pede de seus membros. É uma estrutura que exige o alcance de patamares altíssimos, que apresenta modelos ideais impossíveis de se alcançar, que reforça a competição ao invés da cooperação. Há um perfil ideal extremamente restrito de cor, sexualidade, poder monetário, beleza, felicidade e disponibilidade de tempo impossível de ser implantado em sua totalidade em uma mísera pessoa. Ninguém o é, e todos adoram jogar isso na cara uns dos outros.

     Essa cultura surgida na estrutura econômica subiu para a superestrutura cultural e agora alcançou a política. Nunca, desde a redemocratização, houve tamanha corrente de ódio. Isso ameaça a democracia de um jeito muito óbvio: como pode um presidente odiado por metade da população governar um país? Será que destruiremos anos de construção de uma democracia forte por isso, ódio? Odiar não por o presidente ter um programa de governo ruim, mas simplesmente porque ele não é o outro candidato?

     Eu não vou pedir para que no domingo vocês votem com consciência. Votem sem ódio. Só isso. Boas eleições.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um anjo em minha vida

     O homem chega em casa, tira os sapatos, afrouxa o nó da gravata, pega um vinho, abre o vinho com o seu abridor especial, serve o vinho numa taça, pega um disco do Frank Sinatra, põe o disco do Frank Sinatra no toca-discos, liga o toca-discos, põe a agulha na faixa mais melancólica e se joga no sofá. Movimenta a taça com os dedos, de forma que o vinho faça ondulações circulares, põe os pés em cima da mesinha de centro, cruza os pés. Olha para o teto, sem parar de rodar o vinho em sua taça. Cantarola um dos versos de Sinatra. Depois ri, serve-se de mais vinho, coloca para voltar a música. Repete o processo mais algumas vezes, a música, o vinho, a risada, que agora é de embriaguez. Deixa passar a próxima faixa. É Fly me to the Moon. Ele meio que ouve a música, meio que olha para o teto. Sente que não consegue fazer os dois ao mesmo tempo, pelo menos não com a mesma concentração. Coloca a mão no rosto, esfrega um suor inexistente, olha para a varanda.

     Olha para a varanda.

     É agora.

     O homem caminha até a varanda, nem lenta, nem rapidamente. O homem sobe no parapeito. O homem de repente se dá conta do quão sublime é o momento. Sabia, havia mentalizado a grandiosidade e o impacto desse momento em sua vida, havia racionalizado tudo, mas emocionalmente a coisa só o atinge quando ele sobe no parapeito. Fecha os olhos, contendo o choro. Abre os braços, pende para frente. Um anjo cai em cima do homem.

     O homem empurra aquele corpo estranho surgido do nada para longe de si. Ele percebe que o corpo estranho tem asas, uma auréola, usa túnica branca e é um anjo, nessa ordem. O anjo, caído no chão, parece atordoado com o impacto. Vira a cabeça e vê o homem; ergue a palma da mão.

     - Não faça isso!

     Não é uma ordem, é um pedido urgente, uma apelação. Não faça isso. Não se mate. Por favor, não se mate. O homem sente um nó na garganta. Está diante do momento mais forte de sua vida.

     - Por que não?

     - Você é importante demais para morrer.

     O homem chora. O homem ajoelha-se no chão. Está com o rosto coberto pelas mãos. Abruptamente, levanta o rosto e grita, indignado.

     - Ah é? Se eu sou tão importante, porque Deus nunca veio me dizer isso? Por que Ele nunca demonstrou isso durante toda a minha vida, por que fez dela um vazio sem sentido?

     - A sua vida tem sentido, sim. Deus planeja grandes coisas com você.

     O anjo fala com voz calma, mas com urgência. Aproxima-se com cuidado para evitar movimentos bruscos que assustem o homem. O homem agora ouve o anjo e o ódio dá lugar à esperança.

     - É mesmo?

     O anjo assente com a cabeça.

     - Isso. Por que mais ele me mandaria para salvá-lo, se não fosse por se importar com você? Ele te ama!

     - Me ama?

     - Sim, você é um dos filhos mais queridos Dele, e ele quer vê-lo vivo! Ele tem grandes planos. Sua vida não passará mais em branco!

     - Mas tantos anos se passaram em branco! Tantas perdas, tantas decepções! Por quê? Por que devo continuar nessa espiral sem sentido?

     O homem faz menção de subir de novo no parapeito. O anjo sabe que captou a atenção do homem, e ele não se jogará, ainda. O anjo estende a mão.

     -Tolo! Você não vê que a confusão, a espiral sem sentido, só ganhará algum sentido com você vivo? Não vê que ela nunca adquirirá um sentido sem você? Não se dá conta da sua importância? Se você se matar, vai estragar tudo.

    O anjo fica ao lado do homem, com a mão estendida.

    - Por favor.

     O homem pega na mão do anjo e desce do parapeito. Abraça-o.

     - Isso. Muito bem. - diz o anjo.

     - Eu não acreditava, entende? Eu não acreditava mais em mim! Eu não acreditava...

     - Tudo bem, Daniel, tudo bem...

     - É sério, eu...

     O homem abre os olhos.

     - Quem?

     - Oi?

     - Você me chamou de Daniel?

     - Sim, por quê?

     - Eu não me chamo Daniel.

     O anjo solta o homem. O anjo tira um pequeno papel da túnica e lê o que está escrito. Estuda-o com cuidado.

     - Então, você não é o Daniel.

     - Não.

     - Aqui é o 603?

     - Não. É o 503.

     - Onde é o 603?

     - É o de cima. É onde mora o Daniel.

     - Ah.

     O homem olha, patético, para o anjo. Depois dá meia volta, senta no sofá e cruza as pernas em cima da mesinha de centro. Volta a rodopiar seu vinho. A expressão do homem é totalmente vazia. O anjo o segue.


     - Olha... 

     - Ricardo.

     - Olha Ricardo - diz o anjo -, Deus escreve por linhas tortas. Talvez tenha sido a Sua vontade que me fez cair aqui e não no apartamento do Daniel. Talvez este engano tenha ocorrido para que eu salvasse a sua vida.  


     - E foi?


     - Como?


     - Você é um emissário da divina providência. Logo, você sabe de todos os planos de Deus. Foi ou não foi de propósito?


     O anjo faz um silêncio.


     - ...Não.

     O anjo senta no sofá ao lado do homem. O homem lhe oferece vinho. 


     - Não posso - responde o anjo.


     - Anjos não podem ingerir álcool?


     - Não é isso. Estou no meio do expediente de trabalho.


     Por alguns minutos o anjo e o homem ficaram sentados lado a lado, o homem bebendo seu vinho e o anjo sem saber o que fazer. Sente-se culpado.O homem capta isso.


     - Olha - diz o homem - você pode ir. Não vou ficar brabo com você. Foi um engano, paciência.


     - Você vai se matar?


     O homem pensa.


     - Não - responde -. Não hoje.


     Ouve-se um grito do lado de fora. Um corpo passa pela varanda em direção à calçada. Homem e anjo ouvem um baque surdo. Os dois correm para a varanda. Espiam para baixo.

     - É o Daniel? - pergunta o anjo.

     - É.

     Um amontoado de gente envolve o corpo caído na calçada. Curiosos se aproximam. Uma mulher grita. O homem volta para o seu sofá, o seu vinho e o seu Sinatra. A música agora é Bad, Bad Leroy Brown. O anjo solta um palavrão. Senta-se no sofá.

     - Sabe o vinho?

     - Sim?

     - Agora eu quero.

     O homem assente e vai até a cozinha pegar uma garrafa. De lá, ouve o anjo gritar:

     - E traz uns salgadinhos também.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O bigodinho do Hitler

     Causou choque nos presentes o novo bigodinho do Dudu. Era aquele corte onde são tirados os pelos das extremidades, deixando barba só no meio do buço, igualzinho ao usado por Charles Chaplin ou por...

     - Hitler!

     - Não. Chaplin.

     - Cara, esse é o bigode do Hitler. Tira isso.

     - Não, é do Chaplin. E eu não vou tirar.

     O Dudu era um fã confesso dos filmes do Carlitos. Mas ninguém imaginava que a sua adoração chegasse a esse ponto. Quer dizer, ele tinha todos os filmes em dvd, e na sua parede estava pendurado aquele pôster clássico do Chaplin com o garotinho sentado ao lado, que o Dudu poderia muito bem ter comprado pronto na Wall Street Poster mas escolheu mandar fazer porque queria um modelo maior. Mas admirar um artista e imitá-lo fisicamente são coisas diferentes. Até então, todos achavam que a admiração do Dudu fosse saudável.

     - E por que não seria saudável? O que há de errado em copiar a marca de uma pessoa que você admira, ressucitar seus ideais, ainda mais tratando-se do maior gênio da comédia de todos os tempos?

     - O cara matou seis milhões de judeus e você chama o Hitler de gênio da comédia?

     - Hitler não! Chaplin! CHAPLIN!

     O bigodinho trazia problemas. Pessoas xingavam na rua. Não era raro jogarem coisas no Dudu. Quando ele precisava de uma informação, ninguém parava para lhe ajudar. Certa vez teve problema com um guarda.

     - Esse seu bigode aí...

     - O que tem?

     - É o bigode do Hitler. Não pode andar com ele.

     - Porque não?

     - Não sei, mas deve ser ilegal. Não pode usar.

     - Em primeiro lugar, é o bigode do Chaplin. Em segundo lugar, nã há lei que proíba porte de bigode. Qualquer bigode.

     -Você não vai tirar?

     - Como é que eu vou tirar um bigode no meio do shopping?

     - Tá bom, vou te dar essa chance hoje, mas não pode andar com isso aí não.

     - Pode sim!

     - Sei não, sei não...

     E o guarda ficou o tempo todo atrás do Dudu, olhando desconfiado.

     Quanto mais as pessoas tratavam o Dudu mal por causa de seu bigode, mais ele encontrava forças para usá-lo. Agora não era mais pelo Chaplin. Agora era por uma causa. A causa do bigodinho. O bigodinho era o teste social definitivo. Na visão de Dudu, as únicas pessoas dignas de atenção eram as que aceitassem o seu bigodinho. Quem o tratasse diferentemente por um simples trecho de pelo debaixo do nariz não merecia a sua consideração. Os amigos o suportavam porque o conheciam de longa data, mas faziam apelos para que o Dudu tirasse o bigodinho. Isso estava acabando com a sua vida social. O Dudu nem ouvia. Iria achar pessoas que o aceitassem do jeito que era.

      Como de fato achou, na Rebeca. A Rebeca era uma louraça linda que, contra todas as probabilidades, achava o bigodinho do Dudu não só bonito como, como um dia ela lhe confidenciou em particular, muito sexy. A Rebeca virou a namorada do Dudu, e ele fazia questão de sempre levá-la para tudo quanto era canto, para que todos pudessem ver que, olha lá, existem pessoas que veem muito além de um bigode polêmico. Ele gostava de jogar isso na cara dos amigos, que, com o advento da Rebeca, perderam as esperanças de fazer o Dudu raspar aquilo.

***

     O que explica a surpresa geral que foi quando o Dudu apareceu de cara limpa e, tão surpreendente quanto, sem a Rebeca. Quando perguntado sobre o assunto, tudo o que o Dudu dizia é que eles tinham razão, usar o bigodinho era perigoso demais. Pressionado para contar mais, ele disse que um dia a Rebeca chamou-o para o seu apartamento. Ele bateu a campainha, e a Rebeca gritou que a porta estava aberta. Dudu entrou no apartamento e achou Rebeca deitada nua na cama, com uma boina da Gestapo.

     - E aí?

     - E aí que eu hesitei. Mas resolvi ir em frente.

     A gota d'àgua foi quando, durante o sexo, a Rebeca começou a gritar "mein führer!" repetidamente. Aí não deu. Brochou na hora.

     - No mesmo dia resolvi tirar o bigodinho do Hitler.

     - Do Chaplin.

     - Não, não - suspirou ele, derrotado. - Do Hitler.

     Apesar do Dudu ficar bem deprimido, os amigos estavam felizes que aquela bobagem acabara. Agora o Dudu estava quase normal. Era só questão de tirar o pôster do Chaplin do quarto.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cumprimentar ou não

     Uma amiga do interior - mas que hoje mora e estuda em Porto Alegre - me perguntou hoje porque as pessoas da universidade não se cumprimentam. Disse ela que em sua cidade natal todo mundo dá um "oi" ou um "tudo bem?" quando cruza com um conhecido, mesmo que seja só um conhecido de vista. Quando a minha amiga passa por um colega e sorri, este rapidamente vira a cara, e ela não consegue entender o porquê.

     Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!

***
   
     Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.

     Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.

     Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.

     Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.

***

     Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.

***

     Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
     
     A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.

     Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Algo parecido com, mas não exatamente, uma parábola

     O artigo do Marcos Rolim na Zero Hora de domigo (Maconha, porta de saída?) lembrou-me uma história de tempos atrás. O artigo fala da agora badalada pesquisa do psiquiatra Dartiu Xavier, feita no início dos anos 2000, sobre o tratamento à base de maconha para dependentes de crack. Apesar de um tanto antiga, só agora essa pesquisa tornou-se mais conhecida, depois que um grupo de neurocientistas, incluindo membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - um grupo sério de estudos psiquiátricos - posicionou-se publicamente criticando a atual legislação brasileira, que não considera a maconha uma substância medicinal nem recreativa. Para quem não sabe, a pesquisa do doutor Xavier consistiu em pedir para que cinquenta dependentes de crack experimentassem trocar a droga pela maconha. Trinta e quatro deles conseguiram deixar o crack de lado e posteriormente largaram até mesmo a maconha, ficando totalmente limpos.

     Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.

     Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.

     Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.

      Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.

     Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo. 

      Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?

     - Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.

     - É, na pesquisa o doutor fez isso.

     - Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.

     - Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.

     - Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.

     - Hmm, acho que não. - disse o homem.

     - Por que não?

     - Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.

      - Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?

      - Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...

     Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.

     E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A ocorrência

     - Muito bem, pode relatar o que aconteceu.

     - Bom, o assalto foi ontem à tarde. Eu estava fazendo meu cooper...

     - Espera, espera. Que horas foi o assalto?

     - Às quatro e meia, quase cinco.

    - "Cidadão foi assaltado às 5 horas da tarde de 22/06/2010". Na rua...?

     - Na verdade foi na esquina da Torquato Jr. com a Marilene Silva.

    - "na esquina da Rua Torquato Júnior com a Marilene Silva.".

     - Isso. Ãh... só que Júnior é abreviado. Fica jota-erre.

     - Como? Assim?

     - É. Jota-erre. E ponto. E ali no horário também não se escreve assim. É cinco-agá. Cinco, o numeral.

     - Tá bom, tá bom.

     - Foi mal. É que eu sou escritor.

      - Tudo bem.

      - Sabe, fico pescando os erros.

     - Certo. Então, o que você disse que estava fazendo?

     - Estava correndo, fazendo o meu cooper.

     - "O cidadão estava correndo para se exercitar."

     - Não, não. Põe cooper, mesmo. É mais curto e eficiente.

     - Tá.

     - Na escrita, menos é sempre mais.

     - Entendi. Você estava lá, fazendo o seu cooper. Aí chegou o ladrão?

     - Isso.

     - Chegou como? Já abordou você direto, com arma e tudo?

     - Não, fingiu que queria só saber as horas. Quando eu parei para lhe informar corretamente, ele grudou em mim e disse que tinha uma faca, e que ia me furar com ela se eu não passasse a minha carteira e celular.

      - "O ladrão abordou o cidadão pedindo as horas e depois disse que era um assalto. O ladrão disse que tinha uma faca e que iria furar o cidadão se ele não entregasse a carteira e o celular.". É isso?

     - É.

     - Quer corrigir alguma coisa?

     - Não. Bem, é que...

     - O que é?

     - Não, deixa. Você vai me achar um chato.

     - Fala.

     - Não, é que você usou "ladrão" duas vezes seguidas. Não é bom repetir palavras. Sabe, fica feio pra quem lê.

     - O que eu faço?

     - Tenta pôr "meliante" no lugar do segundo "ladrão".

     - "O meliante disse que tinha uma faca e que ia furar o cidadão se ele não..."

     - Quer saber? Só coloca "ele". Está se referindo ao sujeito da última frase. O leitor irá entender.

     - "Ele disse que tinha uma faca...". Ok, ok. Mais alguma coisa?

     - Deixa eu ler. Ãh... É, a frase está meio mal construída. Reescreve assim: "Ele ameaçou furar o cidadão com uma faca caso este não entregasse a carteira e o celular".

     - "...Carteira e celular.". Pronto. E depois?

     - Depois eu passei as minhas posses e ele fugiu.

     - Como? Saiu andando para onde?

     - Desceu a Torquato Jr. e disse para eu seguir o meu caminho.

     - "Depois de pegar a carteira e o celular do cidadão, o ladrão..."

     - Já usamos ladrão. Bota "larápio".

     - "...O larápio disse para o cidadão seguir o seu caminho e desceu a Torquato Júnior.".

    - Júnior é jota-erre. E bota um "então" antes do "desceu".

    - Como era o ladrão?

    - Tipo, mais ou menos da minha altura, mas mais forte, tinha uma barba rala, pele negra...

     - "O assaltante..."

     - Isso. Boa.

     - "...Tem uma altura de mais ou menos um metro e setenta, é negro e..."

     - Não, não... quer saber? Deixa que eu escrevo.

     - O quê?!

     - Me dá licença? Assim... isso. Ó, a barba rala é uma coisa da aparência que pode ser mudada, já a altura e a cor não. É melhor colocar ela em uma frase separada do resto. Assim: "O assaltante é um negro de cerca de 1,70m. Tem a cabeça raspada e uma barba rala. É forte: sua estrutura corporal avantajada compensa o relativo pouco tamanho.". Mais alguma coisa?

     - Hein?

     - Tenho que colocar mais alguma informação?

     - Não. Assim já está bom.

     - E as roupas? Eu não falo das roupas?

     - Não é necessário, eles mudam de roupa todos os assaltos...

     - Ah, qual é? Como o personagem vai ficar crível sem uma descrição decente de aparência? Vou botar assim: "Trajava um casaco da Adidas preto, possivelmente falsificado, e uma calça de abrigo da mesma cor. Seus tênis eram velhos Kichutes desbotados como o brilho fosco de seus olhos. Sua expressão era terrível; sua voz, socos em forma de som.". Pronto. Acho que é isso. Relê tudo aí.

     - Ãhn...

     - Acho que está bom, né? Bom, agora é só salvar e botar no arquivo. Próximo!

     - Ei, você não pode...

     - Olá rapaz, o que houve?

     - Oi. Eu fui assaltado ontem...

     - Foi quando? De dia ou de noite?

     - De noite.

     - "Era uma noite sombria, na qual transitava, incauto, o nosso protagonista. Mal sabia ele que..."