quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um anjo em minha vida

     O homem chega em casa, tira os sapatos, afrouxa o nó da gravata, pega um vinho, abre o vinho com o seu abridor especial, serve o vinho numa taça, pega um disco do Frank Sinatra, põe o disco do Frank Sinatra no toca-discos, liga o toca-discos, põe a agulha na faixa mais melancólica e se joga no sofá. Movimenta a taça com os dedos, de forma que o vinho faça ondulações circulares, põe os pés em cima da mesinha de centro, cruza os pés. Olha para o teto, sem parar de rodar o vinho em sua taça. Cantarola um dos versos de Sinatra. Depois ri, serve-se de mais vinho, coloca para voltar a música. Repete o processo mais algumas vezes, a música, o vinho, a risada, que agora é de embriaguez. Deixa passar a próxima faixa. É Fly me to the Moon. Ele meio que ouve a música, meio que olha para o teto. Sente que não consegue fazer os dois ao mesmo tempo, pelo menos não com a mesma concentração. Coloca a mão no rosto, esfrega um suor inexistente, olha para a varanda.

     Olha para a varanda.

     É agora.

     O homem caminha até a varanda, nem lenta, nem rapidamente. O homem sobe no parapeito. O homem de repente se dá conta do quão sublime é o momento. Sabia, havia mentalizado a grandiosidade e o impacto desse momento em sua vida, havia racionalizado tudo, mas emocionalmente a coisa só o atinge quando ele sobe no parapeito. Fecha os olhos, contendo o choro. Abre os braços, pende para frente. Um anjo cai em cima do homem.

     O homem empurra aquele corpo estranho surgido do nada para longe de si. Ele percebe que o corpo estranho tem asas, uma auréola, usa túnica branca e é um anjo, nessa ordem. O anjo, caído no chão, parece atordoado com o impacto. Vira a cabeça e vê o homem; ergue a palma da mão.

     - Não faça isso!

     Não é uma ordem, é um pedido urgente, uma apelação. Não faça isso. Não se mate. Por favor, não se mate. O homem sente um nó na garganta. Está diante do momento mais forte de sua vida.

     - Por que não?

     - Você é importante demais para morrer.

     O homem chora. O homem ajoelha-se no chão. Está com o rosto coberto pelas mãos. Abruptamente, levanta o rosto e grita, indignado.

     - Ah é? Se eu sou tão importante, porque Deus nunca veio me dizer isso? Por que Ele nunca demonstrou isso durante toda a minha vida, por que fez dela um vazio sem sentido?

     - A sua vida tem sentido, sim. Deus planeja grandes coisas com você.

     O anjo fala com voz calma, mas com urgência. Aproxima-se com cuidado para evitar movimentos bruscos que assustem o homem. O homem agora ouve o anjo e o ódio dá lugar à esperança.

     - É mesmo?

     O anjo assente com a cabeça.

     - Isso. Por que mais ele me mandaria para salvá-lo, se não fosse por se importar com você? Ele te ama!

     - Me ama?

     - Sim, você é um dos filhos mais queridos Dele, e ele quer vê-lo vivo! Ele tem grandes planos. Sua vida não passará mais em branco!

     - Mas tantos anos se passaram em branco! Tantas perdas, tantas decepções! Por quê? Por que devo continuar nessa espiral sem sentido?

     O homem faz menção de subir de novo no parapeito. O anjo sabe que captou a atenção do homem, e ele não se jogará, ainda. O anjo estende a mão.

     -Tolo! Você não vê que a confusão, a espiral sem sentido, só ganhará algum sentido com você vivo? Não vê que ela nunca adquirirá um sentido sem você? Não se dá conta da sua importância? Se você se matar, vai estragar tudo.

    O anjo fica ao lado do homem, com a mão estendida.

    - Por favor.

     O homem pega na mão do anjo e desce do parapeito. Abraça-o.

     - Isso. Muito bem. - diz o anjo.

     - Eu não acreditava, entende? Eu não acreditava mais em mim! Eu não acreditava...

     - Tudo bem, Daniel, tudo bem...

     - É sério, eu...

     O homem abre os olhos.

     - Quem?

     - Oi?

     - Você me chamou de Daniel?

     - Sim, por quê?

     - Eu não me chamo Daniel.

     O anjo solta o homem. O anjo tira um pequeno papel da túnica e lê o que está escrito. Estuda-o com cuidado.

     - Então, você não é o Daniel.

     - Não.

     - Aqui é o 603?

     - Não. É o 503.

     - Onde é o 603?

     - É o de cima. É onde mora o Daniel.

     - Ah.

     O homem olha, patético, para o anjo. Depois dá meia volta, senta no sofá e cruza as pernas em cima da mesinha de centro. Volta a rodopiar seu vinho. A expressão do homem é totalmente vazia. O anjo o segue.


     - Olha... 

     - Ricardo.

     - Olha Ricardo - diz o anjo -, Deus escreve por linhas tortas. Talvez tenha sido a Sua vontade que me fez cair aqui e não no apartamento do Daniel. Talvez este engano tenha ocorrido para que eu salvasse a sua vida.  


     - E foi?


     - Como?


     - Você é um emissário da divina providência. Logo, você sabe de todos os planos de Deus. Foi ou não foi de propósito?


     O anjo faz um silêncio.


     - ...Não.

     O anjo senta no sofá ao lado do homem. O homem lhe oferece vinho. 


     - Não posso - responde o anjo.


     - Anjos não podem ingerir álcool?


     - Não é isso. Estou no meio do expediente de trabalho.


     Por alguns minutos o anjo e o homem ficaram sentados lado a lado, o homem bebendo seu vinho e o anjo sem saber o que fazer. Sente-se culpado.O homem capta isso.


     - Olha - diz o homem - você pode ir. Não vou ficar brabo com você. Foi um engano, paciência.


     - Você vai se matar?


     O homem pensa.


     - Não - responde -. Não hoje.


     Ouve-se um grito do lado de fora. Um corpo passa pela varanda em direção à calçada. Homem e anjo ouvem um baque surdo. Os dois correm para a varanda. Espiam para baixo.

     - É o Daniel? - pergunta o anjo.

     - É.

     Um amontoado de gente envolve o corpo caído na calçada. Curiosos se aproximam. Uma mulher grita. O homem volta para o seu sofá, o seu vinho e o seu Sinatra. A música agora é Bad, Bad Leroy Brown. O anjo solta um palavrão. Senta-se no sofá.

     - Sabe o vinho?

     - Sim?

     - Agora eu quero.

     O homem assente e vai até a cozinha pegar uma garrafa. De lá, ouve o anjo gritar:

     - E traz uns salgadinhos também.

Um comentário:

  1. Querido amigo blogueiro,
    Tem um selo para você no meu blog Degrau Cultural. (www.degraucultural.blogspot.com)
    Beijos.

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