O homem chega em casa, tira os sapatos, afrouxa o nó da gravata, pega um vinho, abre o vinho com o seu abridor especial, serve o vinho numa taça, pega um disco do Frank Sinatra, põe o disco do Frank Sinatra no toca-discos, liga o toca-discos, põe a agulha na faixa mais melancólica e se joga no sofá. Movimenta a taça com os dedos, de forma que o vinho faça ondulações circulares, põe os pés em cima da mesinha de centro, cruza os pés. Olha para o teto, sem parar de rodar o vinho em sua taça. Cantarola um dos versos de Sinatra. Depois ri, serve-se de mais vinho, coloca para voltar a música. Repete o processo mais algumas vezes, a música, o vinho, a risada, que agora é de embriaguez. Deixa passar a próxima faixa. É Fly me to the Moon. Ele meio que ouve a música, meio que olha para o teto. Sente que não consegue fazer os dois ao mesmo tempo, pelo menos não com a mesma concentração. Coloca a mão no rosto, esfrega um suor inexistente, olha para a varanda.
Olha para a varanda.
É agora.
O homem caminha até a varanda, nem lenta, nem rapidamente. O homem sobe no parapeito. O homem de repente se dá conta do quão sublime é o momento. Sabia, havia mentalizado a grandiosidade e o impacto desse momento em sua vida, havia racionalizado tudo, mas emocionalmente a coisa só o atinge quando ele sobe no parapeito. Fecha os olhos, contendo o choro. Abre os braços, pende para frente. Um anjo cai em cima do homem.
O homem empurra aquele corpo estranho surgido do nada para longe de si. Ele percebe que o corpo estranho tem asas, uma auréola, usa túnica branca e é um anjo, nessa ordem. O anjo, caído no chão, parece atordoado com o impacto. Vira a cabeça e vê o homem; ergue a palma da mão.
- Não faça isso!
Não é uma ordem, é um pedido urgente, uma apelação. Não faça isso. Não se mate. Por favor, não se mate. O homem sente um nó na garganta. Está diante do momento mais forte de sua vida.
- Por que não?
- Você é importante demais para morrer.
O homem chora. O homem ajoelha-se no chão. Está com o rosto coberto pelas mãos. Abruptamente, levanta o rosto e grita, indignado.
- Ah é? Se eu sou tão importante, porque Deus nunca veio me dizer isso? Por que Ele nunca demonstrou isso durante toda a minha vida, por que fez dela um vazio sem sentido?
- A sua vida tem sentido, sim. Deus planeja grandes coisas com você.
O anjo fala com voz calma, mas com urgência. Aproxima-se com cuidado para evitar movimentos bruscos que assustem o homem. O homem agora ouve o anjo e o ódio dá lugar à esperança.
- É mesmo?
O anjo assente com a cabeça.
- Isso. Por que mais ele me mandaria para salvá-lo, se não fosse por se importar com você? Ele te ama!
- Me ama?
- Sim, você é um dos filhos mais queridos Dele, e ele quer vê-lo vivo! Ele tem grandes planos. Sua vida não passará mais em branco!
- Mas tantos anos se passaram em branco! Tantas perdas, tantas decepções! Por quê? Por que devo continuar nessa espiral sem sentido?
O homem faz menção de subir de novo no parapeito. O anjo sabe que captou a atenção do homem, e ele não se jogará, ainda. O anjo estende a mão.
-Tolo! Você não vê que a confusão, a espiral sem sentido, só ganhará algum sentido com você vivo? Não vê que ela nunca adquirirá um sentido sem você? Não se dá conta da sua importância? Se você se matar, vai estragar tudo.
O anjo fica ao lado do homem, com a mão estendida.
- Por favor.
O homem pega na mão do anjo e desce do parapeito. Abraça-o.
- Isso. Muito bem. - diz o anjo.
- Eu não acreditava, entende? Eu não acreditava mais em mim! Eu não acreditava...
- Tudo bem, Daniel, tudo bem...
- É sério, eu...
O homem abre os olhos.
- Quem?
- Oi?
- Você me chamou de Daniel?
- Sim, por quê?
- Eu não me chamo Daniel.
O anjo solta o homem. O anjo tira um pequeno papel da túnica e lê o que está escrito. Estuda-o com cuidado.
- Então, você não é o Daniel.
- Não.
- Aqui é o 603?
- Não. É o 503.
- Onde é o 603?
- É o de cima. É onde mora o Daniel.
- Ah.
O homem olha, patético, para o anjo. Depois dá meia volta, senta no sofá e cruza as pernas em cima da mesinha de centro. Volta a rodopiar seu vinho. A expressão do homem é totalmente vazia. O anjo o segue.
- Olha...
- Ricardo.
- Olha Ricardo - diz o anjo -, Deus escreve por linhas tortas. Talvez tenha sido a Sua vontade que me fez cair aqui e não no apartamento do Daniel. Talvez este engano tenha ocorrido para que eu salvasse a sua vida.
- E foi?
- Como?
- Você é um emissário da divina providência. Logo, você sabe de todos os planos de Deus. Foi ou não foi de propósito?
O anjo faz um silêncio.
- ...Não.
O anjo senta no sofá ao lado do homem. O homem lhe oferece vinho.
- Não posso - responde o anjo.
- Anjos não podem ingerir álcool?
- Não é isso. Estou no meio do expediente de trabalho.
Por alguns minutos o anjo e o homem ficaram sentados lado a lado, o homem bebendo seu vinho e o anjo sem saber o que fazer. Sente-se culpado.O homem capta isso.
- Olha - diz o homem - você pode ir. Não vou ficar brabo com você. Foi um engano, paciência.
- Você vai se matar?
O homem pensa.
- Não - responde -. Não hoje.
Ouve-se um grito do lado de fora. Um corpo passa pela varanda em direção à calçada. Homem e anjo ouvem um baque surdo. Os dois correm para a varanda. Espiam para baixo.
- É o Daniel? - pergunta o anjo.
- É.
Um amontoado de gente envolve o corpo caído na calçada. Curiosos se aproximam. Uma mulher grita. O homem volta para o seu sofá, o seu vinho e o seu Sinatra. A música agora é Bad, Bad Leroy Brown. O anjo solta um palavrão. Senta-se no sofá.
- Sabe o vinho?
- Sim?
- Agora eu quero.
O homem assente e vai até a cozinha pegar uma garrafa. De lá, ouve o anjo gritar:
- E traz uns salgadinhos também.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
O bigodinho do Hitler
Causou choque nos presentes o novo bigodinho do Dudu. Era aquele corte onde são tirados os pelos das extremidades, deixando barba só no meio do buço, igualzinho ao usado por Charles Chaplin ou por...
- Hitler!
- Não. Chaplin.
- Cara, esse é o bigode do Hitler. Tira isso.
- Não, é do Chaplin. E eu não vou tirar.
O Dudu era um fã confesso dos filmes do Carlitos. Mas ninguém imaginava que a sua adoração chegasse a esse ponto. Quer dizer, ele tinha todos os filmes em dvd, e na sua parede estava pendurado aquele pôster clássico do Chaplin com o garotinho sentado ao lado, que o Dudu poderia muito bem ter comprado pronto na Wall Street Poster mas escolheu mandar fazer porque queria um modelo maior. Mas admirar um artista e imitá-lo fisicamente são coisas diferentes. Até então, todos achavam que a admiração do Dudu fosse saudável.
- E por que não seria saudável? O que há de errado em copiar a marca de uma pessoa que você admira, ressucitar seus ideais, ainda mais tratando-se do maior gênio da comédia de todos os tempos?
- O cara matou seis milhões de judeus e você chama o Hitler de gênio da comédia?
- Hitler não! Chaplin! CHAPLIN!
O bigodinho trazia problemas. Pessoas xingavam na rua. Não era raro jogarem coisas no Dudu. Quando ele precisava de uma informação, ninguém parava para lhe ajudar. Certa vez teve problema com um guarda.
- Esse seu bigode aí...
- O que tem?
- É o bigode do Hitler. Não pode andar com ele.
- Porque não?
- Não sei, mas deve ser ilegal. Não pode usar.
- Em primeiro lugar, é o bigode do Chaplin. Em segundo lugar, nã há lei que proíba porte de bigode. Qualquer bigode.
-Você não vai tirar?
- Como é que eu vou tirar um bigode no meio do shopping?
- Tá bom, vou te dar essa chance hoje, mas não pode andar com isso aí não.
- Pode sim!
- Sei não, sei não...
E o guarda ficou o tempo todo atrás do Dudu, olhando desconfiado.
Quanto mais as pessoas tratavam o Dudu mal por causa de seu bigode, mais ele encontrava forças para usá-lo. Agora não era mais pelo Chaplin. Agora era por uma causa. A causa do bigodinho. O bigodinho era o teste social definitivo. Na visão de Dudu, as únicas pessoas dignas de atenção eram as que aceitassem o seu bigodinho. Quem o tratasse diferentemente por um simples trecho de pelo debaixo do nariz não merecia a sua consideração. Os amigos o suportavam porque o conheciam de longa data, mas faziam apelos para que o Dudu tirasse o bigodinho. Isso estava acabando com a sua vida social. O Dudu nem ouvia. Iria achar pessoas que o aceitassem do jeito que era.
Como de fato achou, na Rebeca. A Rebeca era uma louraça linda que, contra todas as probabilidades, achava o bigodinho do Dudu não só bonito como, como um dia ela lhe confidenciou em particular, muito sexy. A Rebeca virou a namorada do Dudu, e ele fazia questão de sempre levá-la para tudo quanto era canto, para que todos pudessem ver que, olha lá, existem pessoas que veem muito além de um bigode polêmico. Ele gostava de jogar isso na cara dos amigos, que, com o advento da Rebeca, perderam as esperanças de fazer o Dudu raspar aquilo.
***
O que explica a surpresa geral que foi quando o Dudu apareceu de cara limpa e, tão surpreendente quanto, sem a Rebeca. Quando perguntado sobre o assunto, tudo o que o Dudu dizia é que eles tinham razão, usar o bigodinho era perigoso demais. Pressionado para contar mais, ele disse que um dia a Rebeca chamou-o para o seu apartamento. Ele bateu a campainha, e a Rebeca gritou que a porta estava aberta. Dudu entrou no apartamento e achou Rebeca deitada nua na cama, com uma boina da Gestapo.
- E aí?
- E aí que eu hesitei. Mas resolvi ir em frente.
A gota d'àgua foi quando, durante o sexo, a Rebeca começou a gritar "mein führer!" repetidamente. Aí não deu. Brochou na hora.
- No mesmo dia resolvi tirar o bigodinho do Hitler.
- Do Chaplin.
- Não, não - suspirou ele, derrotado. - Do Hitler.
Apesar do Dudu ficar bem deprimido, os amigos estavam felizes que aquela bobagem acabara. Agora o Dudu estava quase normal. Era só questão de tirar o pôster do Chaplin do quarto.
- Hitler!
- Não. Chaplin.
- Cara, esse é o bigode do Hitler. Tira isso.
- Não, é do Chaplin. E eu não vou tirar.
O Dudu era um fã confesso dos filmes do Carlitos. Mas ninguém imaginava que a sua adoração chegasse a esse ponto. Quer dizer, ele tinha todos os filmes em dvd, e na sua parede estava pendurado aquele pôster clássico do Chaplin com o garotinho sentado ao lado, que o Dudu poderia muito bem ter comprado pronto na Wall Street Poster mas escolheu mandar fazer porque queria um modelo maior. Mas admirar um artista e imitá-lo fisicamente são coisas diferentes. Até então, todos achavam que a admiração do Dudu fosse saudável.
- E por que não seria saudável? O que há de errado em copiar a marca de uma pessoa que você admira, ressucitar seus ideais, ainda mais tratando-se do maior gênio da comédia de todos os tempos?
- O cara matou seis milhões de judeus e você chama o Hitler de gênio da comédia?
- Hitler não! Chaplin! CHAPLIN!
O bigodinho trazia problemas. Pessoas xingavam na rua. Não era raro jogarem coisas no Dudu. Quando ele precisava de uma informação, ninguém parava para lhe ajudar. Certa vez teve problema com um guarda.
- Esse seu bigode aí...
- O que tem?
- É o bigode do Hitler. Não pode andar com ele.
- Porque não?
- Não sei, mas deve ser ilegal. Não pode usar.
- Em primeiro lugar, é o bigode do Chaplin. Em segundo lugar, nã há lei que proíba porte de bigode. Qualquer bigode.
-Você não vai tirar?
- Como é que eu vou tirar um bigode no meio do shopping?
- Tá bom, vou te dar essa chance hoje, mas não pode andar com isso aí não.
- Pode sim!
- Sei não, sei não...
E o guarda ficou o tempo todo atrás do Dudu, olhando desconfiado.
Quanto mais as pessoas tratavam o Dudu mal por causa de seu bigode, mais ele encontrava forças para usá-lo. Agora não era mais pelo Chaplin. Agora era por uma causa. A causa do bigodinho. O bigodinho era o teste social definitivo. Na visão de Dudu, as únicas pessoas dignas de atenção eram as que aceitassem o seu bigodinho. Quem o tratasse diferentemente por um simples trecho de pelo debaixo do nariz não merecia a sua consideração. Os amigos o suportavam porque o conheciam de longa data, mas faziam apelos para que o Dudu tirasse o bigodinho. Isso estava acabando com a sua vida social. O Dudu nem ouvia. Iria achar pessoas que o aceitassem do jeito que era.
Como de fato achou, na Rebeca. A Rebeca era uma louraça linda que, contra todas as probabilidades, achava o bigodinho do Dudu não só bonito como, como um dia ela lhe confidenciou em particular, muito sexy. A Rebeca virou a namorada do Dudu, e ele fazia questão de sempre levá-la para tudo quanto era canto, para que todos pudessem ver que, olha lá, existem pessoas que veem muito além de um bigode polêmico. Ele gostava de jogar isso na cara dos amigos, que, com o advento da Rebeca, perderam as esperanças de fazer o Dudu raspar aquilo.
***
O que explica a surpresa geral que foi quando o Dudu apareceu de cara limpa e, tão surpreendente quanto, sem a Rebeca. Quando perguntado sobre o assunto, tudo o que o Dudu dizia é que eles tinham razão, usar o bigodinho era perigoso demais. Pressionado para contar mais, ele disse que um dia a Rebeca chamou-o para o seu apartamento. Ele bateu a campainha, e a Rebeca gritou que a porta estava aberta. Dudu entrou no apartamento e achou Rebeca deitada nua na cama, com uma boina da Gestapo.
- E aí?
- E aí que eu hesitei. Mas resolvi ir em frente.
A gota d'àgua foi quando, durante o sexo, a Rebeca começou a gritar "mein führer!" repetidamente. Aí não deu. Brochou na hora.
- No mesmo dia resolvi tirar o bigodinho do Hitler.
- Do Chaplin.
- Não, não - suspirou ele, derrotado. - Do Hitler.
Apesar do Dudu ficar bem deprimido, os amigos estavam felizes que aquela bobagem acabara. Agora o Dudu estava quase normal. Era só questão de tirar o pôster do Chaplin do quarto.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Cumprimentar ou não
Uma amiga do interior - mas que hoje mora e estuda em Porto Alegre - me perguntou hoje porque as pessoas da universidade não se cumprimentam. Disse ela que em sua cidade natal todo mundo dá um "oi" ou um "tudo bem?" quando cruza com um conhecido, mesmo que seja só um conhecido de vista. Quando a minha amiga passa por um colega e sorri, este rapidamente vira a cara, e ela não consegue entender o porquê.
Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!
***
Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.
Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.
Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.
Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.
***
Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.
***
Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.
Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.
Ah, essa gente do interior. Não consegue entender as coisas mais simples. É pra fingir que não viu, oras. Tá, mas e pra quê fingir que não viu? Pra não ter que dar "oi". Mas qual é o problema em dar um "oi"? Ora, porque daí a pessoa vai ver que você a viu!
***
Pensando bem, essa tradição fantástica de ignorar conhecidos é algo bem centrado em Porto Alegre. As cidades do interior não a têm, nem outras capitais como Rio ou Salvador, conforme relatos que ouvi. É só aqui. Incrível. Isso dá margem para estudos sociológicos mil envolvendo a neura do porto-alegrense de classe média-alta com relações interpessoais de nível casual. Porto Alegre poderia se transformar num gigantesco laboratório sociológico para descobrir a variável da antipatia.
Eu tenho uma teoria. Ela não envolve explicações sobre o porquê deste fenômeno só ser observado na nossa cidade, nem tenta explicar a nossa acidez pelo histórico rústico de nosso povo ou, sei lá, pelo frio. Eu não sei por que isso acontece só aqui, mas eu sei por que acontece. Não é pela antipatia, definida aqui como desgosto pela outra pessoa. É pelo medo. Anrã. Medo da rejeição. Medo de que o outro o rejeite primeiro, que você dê o "oi" e ele resolva te ignorar, virar a cara. Para não sofrer isso, você vira a cara primeiro.
Dentro de cada pessoa que o ignorou, que já virou a cara pra você na rua, que quando o viu fingiu estar extremamente interessado no catálogo do supermercado e não levantou o rosto, existe uma alma com medo de não ser aceita. O verdadeiro antipático é aquele que você cumprimenta e ele o encara, sem dizer nada mas o encara, como prova de que ele ouviu sim, mas não var cumprimentar você, bobão. O que vira a cara e finge não ver é apenas alguém assustado. Ele não quer dar um "oi", pois você pode não responder. Se ele cumprimentá-lo e você o ignorar, ele será o ridículo e ficará em posição vulnerável. A sociedade o verá sendo rejeitado por um membro supostamente superior, e reagirá de acordo, jogando fezes no pobre indivíduo ostracizado.
Isso não acontece só na universidade, como pensa a minha amiga, mas na cidade inteira. Na universidade é mais aparente porque você convive com pessoas semipróximas todos os dias, proporcionando mais encontros embaraçosos por hora quadrada.
***
Importante a diferença entre amigo e conhecido. Amigo é seu amigo, você sabe que ele o aceita, se ele não gosta de você ele diz na sua cara, você xinga a mãe dele em resposta e então vocês se abraçam. Conhecidos são aquelas pessoas que você convive por obrigação, sem saber o que elas realmente pensam de você, sem saber se elas consideram você digno de um gasto de saliva sem ser estritamente necessário.
***
Cruzar com um conhecido num shopping de Porto Alegre é um dos momentos mais tensos da cadeia de relações sociais. Principalmente se for numa loja com uma quantidade de pessoas nem grande que um dos dois possa fingir de forma crível que não viu o outro, nem pequena que os dois não tenham modos de escape. O momento chave é quando os olhos dos dois se cruzam. Um vê que o outro o viu. Não há tempo para pensar. Os dois têm frações de segundo para decidir entre cumprimentar o conhecido ou desviar os olhos rápido e torcer para que o outro pense... pense o quê? Que o cara é míope, tem déficit de atenção ou, situação mais desejada mas que nunca acontece de verdade, que não o reconheceu. O outro certamente o reconhecerá. Sempre. Ele desviou os olhos de propósito. Você sabe disso e se sentirá um merda, porque cogitou a possibilidade de cumprimentá-lo e levou uma negativa.
A verdade é que ele é igual a você, e você provavelmente faria o mesmo, se tivesse tempo. Sim, não negue. Está na nossa criação. A diferença entre vocês dois é que os seus reflexos foram mais lentos, mas você faria o mesmo. O medo da rejeição é a nossa sina. O processo só irá mudar quando todos se comprometerem a cumprimentar seus conhecidos em qualquer ocasião, quer ele responda ou não. Será uma corrente do bem para destruir a corrente do mal da negação social. Vamos fazer uma campanha: cole no seu carro um adesivo escrito "eu cumprimento!", com um polegar fazendo sinal de positivo, ou melhor, um escrito "sou de POA e cumprimento!", para apelar para o regionalismo. Faça um bottom com os mesmo dizeres para que ninguém sinta medo de cumprimentá-lo, pois, afinal, você responderá. E é claro, cumprimente sempre. As pessoas irão responder, e você verá que elas na verdade só estavam necessitando de carinho.
Algumas desviarão o olhar antes de ver você acenar. Nesse caso, apenas continue o movimento com a mão, coloque-a na cabeça e finja estar arrumando o cabelo. Acontece. Não se pode ganhar todas.
domingo, 1 de agosto de 2010
Algo parecido com, mas não exatamente, uma parábola
O artigo do Marcos Rolim na Zero Hora de domigo (Maconha, porta de saída?) lembrou-me uma história de tempos atrás. O artigo fala da agora badalada pesquisa do psiquiatra Dartiu Xavier, feita no início dos anos 2000, sobre o tratamento à base de maconha para dependentes de crack. Apesar de um tanto antiga, só agora essa pesquisa tornou-se mais conhecida, depois que um grupo de neurocientistas, incluindo membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - um grupo sério de estudos psiquiátricos - posicionou-se publicamente criticando a atual legislação brasileira, que não considera a maconha uma substância medicinal nem recreativa. Para quem não sabe, a pesquisa do doutor Xavier consistiu em pedir para que cinquenta dependentes de crack experimentassem trocar a droga pela maconha. Trinta e quatro deles conseguiram deixar o crack de lado e posteriormente largaram até mesmo a maconha, ficando totalmente limpos.
Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.
Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.
Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.
Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.
Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo.
Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?
- Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.
- É, na pesquisa o doutor fez isso.
- Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.
- Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.
- Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.
- Hmm, acho que não. - disse o homem.
- Por que não?
- Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.
- Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?
- Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...
Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.
E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.
Apesar de todo mundo tratar como uma descoberta recente, eu já tenho conhecimento dessa pesquisa há pelo menos um ano. Na verdade, há exatamente um ano. Férias de inverno de 2009. O SET Universitário, espécie de Oscar universitário da Comunicação realizado pela Famecos, iria ocorrer em menos de dois meses e eu queria muito participar com alguma reportagem de peso. Matutava isso enquanto assistia a um episódio de Family Guy sobre maconha. Neste episódio, na verdade uma grande propaganda para a legalização da erva, um personagem menciona que a proibição da mesma deveu-se à disputas envolvendo Willian Hearst, magnata da imprensa norte-americana do século passado, e a indústria do papel. Curioso com estas informações, fui à internet checar se elas procediam. Não só obtive a confirmação como encontrei toneladas de informações interessantíssimas e muito pouco divulgadas, entre elas a pesquisa do doutor Dartiu Xavier (poderia eu chamá-lo de Professor Xavier?), que não irei relatar aqui para não fugir do tema, mas que podem ser encontradas facilmente na web.
Para contextualização: em 2009, tinha início a campanha Crack, Nem Pensar da RBS e o crack era um assunto quentíssimo. Tling! Meu sentido-jornalista apitou. Estava lá a minha pauta. Maconha contra o crack: como a cannabis pode ser usada para conter a epidemia urbana do crack. Por Giordano B. Tronco. Perfeito. A não ser... bom, não podia esquecer que comprar maconha é crime, e esta reportagem seria uma clara apologia a isso. Então me veio um insight de mestre: remédios a base de maconha! Comprimidos para tratar a dependência do crack, ou algo do gênero, feitos legalmente e com plantações registradas. Essa era a saída! Sentia que estava perto de uma descoberta revolucionária, algo que não só me renderia um prêmio do SET, mas ajudaria a sociedade de alguma maneira. Oh, pobre eu. Pobre e ingênuo eu.
Quero dizer que sabia que uma simples reportagem feita por um estudante não mudaria regras criminais ou a forma de tratamento de dependentes do crack. Eu tinha ciência disso, mas também sabia que estava diante de algo muito especial. Essa pesquisa tinha tudo a ver com o momento. A sociedade estava assustada; o consumo de crack crescia a um ritmo alarmante; os métodos tradicionais de reabilitação eram falhos. Quem entra no crack normalmente não sai mesmo com tratamento. Aquela pesquisa, feita anos atrás, já apontava a saída para a situação. Como o assunto tinha acabado de ganhar espaço na sociedade, era só questão de tempo para alguém encontrar a pesquisa e divulgá-la para as massas. Eu fui o primeiro; iria garantir que a palavra se espalhasse mais rápido. Quando todos soubessem e esses dados entrassem para a discussão social, a mudança estaria encaminhada.
Algumas pessoas passam as férias em Gramado, outras viajam para a Europa. Eu passei as minhas dentro da biblioteca da PUCRS, pesquisando, lendo, navegando por sites. Li artigos científicos, textos que se desdobravam por áreas como botânica, química, psiquiatria, farmácia, medicina. E mandei um e-mail para o Dartiu. Claro, o Professor Xavier era a melhor fonte que eu conseguiria achar: uma entrevista com ele me daria enorme credibilidade. Esperei por um bom tempo, mas o professor não retornou o meu e-mail. Enquanto isso, continuava a minha pesquisa: achei muitos livros, desde um estudo brasileiro sobre a maconha datado do século XIX até um pequeno livro dedicado a provar, por meio de dados históricos, que René Descartes, sim, o criador do plano cartesiano, fumava um. Poderia ter selecionado melhor o material, mas resolvi ler tudo com muito interesse. As informações mais valiosas eram sobre os remédios: havia, sim, remédios a base de maconha, como o Marinol, em comprimidos, usado em pacientes de quimioterapia, e o Sativex, medicina a base de gotas para quem sofre de esclerose múltipla. Um plano se desenhava em minha cabeça: seriam eles efetivos para o tratamento do crack? Por que não sugerir para os psiquiatras tratarem os dependentes com Sativex? Daria certo? Até onde eu sei, nenhum remédio a base de THC, a substância da maconha responsável tanto por sua característica medicinal quanto por deixar o usuário "chapado", jamais foi testado no combate à dependência do crack. Tais remédios eram legalizados em pouquíssimos países, e o Brasil, lugar onde foi feita a única experiência conhecida sobre o uso de THC contra o crack, não era um deles.
Por mais que os meus conhecimentos sobre o assunto estivessem aumentando ao longo daquela semana, eu ainda era um leigo e precisava de informação especializada. Precisava entrevistar alguém com conhecimentos em Farmácia para medir a eficácia do meu plano. Antes disso, contei para alguns amigos sobre a matéria que eu estava fazendo. Expliquei para eles, sem conter a minha empolgação, as minhas descobertas, e no geral todos recebiam-nas com o mesmo sorriso forçado e expressões de "é, legal". Depois diziam algo como "tem certeza, Giordano?", "sabe, não sei se isso aí é uma boa ideia", ou "quem sabe tu não faz um perfil de alguém? Um perfil é bem inofensivo". Já desconfiava que as pessoas iriam ficar preocupadas de eu mexer num assunto tão delicado, mas esperava um mínimo de suporte. Meu único pensamento na época foi que eles não tinham compreendido a minha descoberta. Eu achei a cura para o crack, pombas! A cura para o mal do novo século! Mas enfim, eles iam ver só. Iria conseguir respaldo especializado e escrever uma boa matéria. Estava convencido de que, depois de colocado tudo no papel, as pessoas iriam entender. Não me abalei; até lá, deixaria elas rirem de mim. Como eu era ingênuo.
Foi com esse pensamento que entrei na área de toxicologia da Faculdade de Farmácia da PUCRS. Minha missão: entrevistar um especialista em dependência química e apresentar a minha ideia. Oh, leigo eu. Mas fui lá, confiante. Falei com a recepcionista que eu estava fazendo uma matéria sobre maconha e crack, e ela prontamente me passou para uma especialista, que me foi super atencionsa. Contei que queria entrevistá-la sobre o uso medicinal da maconha, e ela me disse que havia um pesquisador trabalhando com ela que recentemente fizera um trabalho sobre o assunto. Ela me apresentou ao pesquisador e juntos, eu, ele e ela, conversamos sobre o impacto da maconha no organismo, os remédios à base de THC e o tratamento de diversas doenças com eles. Senti então que era a hora de dar a estocada: mencionei a pesquisa do doutor Dartiu Xavier e a impressionante recuperação dos dependentes. Não seria uma boa ideia pensar em usar a maconha para tratar a dependência de crack?
- Você diz substituir uma droga por outra? - perguntou-me a mulher.
- É, na pesquisa o doutor fez isso.
- Bom, seria uma redução de danos. Seria substituir uma substância de maior agressão ao organismo por outra de menor agressão. - disse o pesquisador.
- Sim, mas isso não iria curar os pacientes, iria transferir a dependência para a maconha. - argumentou a mulher.
- Interessantemente, não - contraargumentei - Nesse estudo todos os usuários, passado um período de alguns anos, deixaram de consumir qualquer substância tóxica, seja crack ou maconha. E eu não estou falando em fumar maconha, talvez a solução fosse usar um desses remédios no tratamento.
- Hmm, acho que não. - disse o homem.
- Por que não?
- Sabe, nós não podemos recomendar essas coisas, não sei se é uma boa ideia você fazer uma matéria dizendo que maconha é bom contra o crack... - disse-me a mulher.
- Mas eu não estou falando em maconha, estou falando em remédios! Marinol, Canabidiol, Sativex, será que nenhum deles poderia ser usado?
- Sinto muito, mas acho que você não vai achar ninguém que aceite falar sobre este assunto. Acho melhor você trocar o foco da sua matéria. Se você quiser falar de outros tratamentos a base de maconha, o Edson (digamos que fosse esse o nome do outro pesquisador) pode falar de alguns estudos que ele fez sobre o tratamento de...
Escutei educadamente, agradeci e saí de lá. Derrotado. Os especialistas não quiseram falar comigo. Mas o pior foi ouvir da pesquisadora que eu não iria achar fontes que concordassem em me ajudar. Eu tinha uma boa ideia mas não conseguiria ninguém para validá-la. Me senti um impotente. Para piorar, o Professor Xavier não respondeu o meu segundo e-mail. Estava eu pensando em tentar conseguir outras fontes, mesmo que fosse só para receber mais nãos, quando fui noticiado que o SET não aceitaria trabalhos feitos fora das disciplinas de aula. Resolvi enterrar a minha matéria de vez.
E hoje, um ano depois, leio esse artigo na Zero Hora de um cara falando exatamente o que eu descobri há um ano atrás. O autor do texto fala que, impressionantemente, ninguém propõe nada a respeito da descoberta do doutor Dartiu Xavier. Mesmo com o maior conhecimento público sobre a pesquisa, a resposta a esse impressionante estudo é o silêncio. Discussões? Projetos concretos? Propostas de estudos sobre o uso medicinal do THC? Ninguém fala nada, ninguém discute nada e os viciados em crack continuam sem ter um tratamento eficaz. Foi aí que caiu a ficha. Eu não fui o primeiro a descobrir chongas nenhuma. Muitos vieram antes de mim. E muitos virão depois, mas serão silenciados, igual a mim, por pessoas que não querem ver seus nomes metidos nessa história, por pensamentos conservadores com base em algo que só pode ser definido como preconceito irracional. Hmnf, descoberta revolucionária. Ingênuo eu. Ingênuo e inocente eu.
quinta-feira, 22 de julho de 2010
A ocorrência
- Muito bem, pode relatar o que aconteceu.
- Bom, o assalto foi ontem à tarde. Eu estava fazendo meu cooper...
- Espera, espera. Que horas foi o assalto?
- Às quatro e meia, quase cinco.
- "Cidadão foi assaltado às 5 horas da tarde de 22/06/2010". Na rua...?
- Na verdade foi na esquina da Torquato Jr. com a Marilene Silva.
- "na esquina da Rua Torquato Júnior com a Marilene Silva.".
- Isso. Ãh... só que Júnior é abreviado. Fica jota-erre.
- Como? Assim?
- É. Jota-erre. E ponto. E ali no horário também não se escreve assim. É cinco-agá. Cinco, o numeral.
- Tá bom, tá bom.
- Foi mal. É que eu sou escritor.
- Tudo bem.
- Sabe, fico pescando os erros.
- Certo. Então, o que você disse que estava fazendo?
- Estava correndo, fazendo o meu cooper.
- "O cidadão estava correndo para se exercitar."
- Não, não. Põe cooper, mesmo. É mais curto e eficiente.
- Tá.
- Na escrita, menos é sempre mais.
- Entendi. Você estava lá, fazendo o seu cooper. Aí chegou o ladrão?
- Isso.
- Chegou como? Já abordou você direto, com arma e tudo?
- Não, fingiu que queria só saber as horas. Quando eu parei para lhe informar corretamente, ele grudou em mim e disse que tinha uma faca, e que ia me furar com ela se eu não passasse a minha carteira e celular.
- "O ladrão abordou o cidadão pedindo as horas e depois disse que era um assalto. O ladrão disse que tinha uma faca e que iria furar o cidadão se ele não entregasse a carteira e o celular.". É isso?
- É.
- Quer corrigir alguma coisa?
- Não. Bem, é que...
- O que é?
- Não, deixa. Você vai me achar um chato.
- Fala.
- Não, é que você usou "ladrão" duas vezes seguidas. Não é bom repetir palavras. Sabe, fica feio pra quem lê.
- O que eu faço?
- Tenta pôr "meliante" no lugar do segundo "ladrão".
- "O meliante disse que tinha uma faca e que ia furar o cidadão se ele não..."
- Quer saber? Só coloca "ele". Está se referindo ao sujeito da última frase. O leitor irá entender.
- "Ele disse que tinha uma faca...". Ok, ok. Mais alguma coisa?
- Deixa eu ler. Ãh... É, a frase está meio mal construída. Reescreve assim: "Ele ameaçou furar o cidadão com uma faca caso este não entregasse a carteira e o celular".
- "...Carteira e celular.". Pronto. E depois?
- Depois eu passei as minhas posses e ele fugiu.
- Como? Saiu andando para onde?
- Desceu a Torquato Jr. e disse para eu seguir o meu caminho.
- "Depois de pegar a carteira e o celular do cidadão, o ladrão..."
- Já usamos ladrão. Bota "larápio".
- "...O larápio disse para o cidadão seguir o seu caminho e desceu a Torquato Júnior.".
- Júnior é jota-erre. E bota um "então" antes do "desceu".
- Como era o ladrão?
- Tipo, mais ou menos da minha altura, mas mais forte, tinha uma barba rala, pele negra...
- "O assaltante..."
- Isso. Boa.
- "...Tem uma altura de mais ou menos um metro e setenta, é negro e..."
- Não, não... quer saber? Deixa que eu escrevo.
- O quê?!
- Me dá licença? Assim... isso. Ó, a barba rala é uma coisa da aparência que pode ser mudada, já a altura e a cor não. É melhor colocar ela em uma frase separada do resto. Assim: "O assaltante é um negro de cerca de 1,70m. Tem a cabeça raspada e uma barba rala. É forte: sua estrutura corporal avantajada compensa o relativo pouco tamanho.". Mais alguma coisa?
- Hein?
- Tenho que colocar mais alguma informação?
- Não. Assim já está bom.
- E as roupas? Eu não falo das roupas?
- Não é necessário, eles mudam de roupa todos os assaltos...
- Ah, qual é? Como o personagem vai ficar crível sem uma descrição decente de aparência? Vou botar assim: "Trajava um casaco da Adidas preto, possivelmente falsificado, e uma calça de abrigo da mesma cor. Seus tênis eram velhos Kichutes desbotados como o brilho fosco de seus olhos. Sua expressão era terrível; sua voz, socos em forma de som.". Pronto. Acho que é isso. Relê tudo aí.
- Ãhn...
- Acho que está bom, né? Bom, agora é só salvar e botar no arquivo. Próximo!
- Ei, você não pode...
- Olá rapaz, o que houve?
- Oi. Eu fui assaltado ontem...
- Foi quando? De dia ou de noite?
- De noite.
- "Era uma noite sombria, na qual transitava, incauto, o nosso protagonista. Mal sabia ele que..."
- Bom, o assalto foi ontem à tarde. Eu estava fazendo meu cooper...
- Espera, espera. Que horas foi o assalto?
- Às quatro e meia, quase cinco.
- "Cidadão foi assaltado às 5 horas da tarde de 22/06/2010". Na rua...?
- Na verdade foi na esquina da Torquato Jr. com a Marilene Silva.
- "na esquina da Rua Torquato Júnior com a Marilene Silva.".
- Isso. Ãh... só que Júnior é abreviado. Fica jota-erre.
- Como? Assim?
- É. Jota-erre. E ponto. E ali no horário também não se escreve assim. É cinco-agá. Cinco, o numeral.
- Tá bom, tá bom.
- Foi mal. É que eu sou escritor.
- Tudo bem.
- Sabe, fico pescando os erros.
- Certo. Então, o que você disse que estava fazendo?
- Estava correndo, fazendo o meu cooper.
- "O cidadão estava correndo para se exercitar."
- Não, não. Põe cooper, mesmo. É mais curto e eficiente.
- Tá.
- Na escrita, menos é sempre mais.
- Entendi. Você estava lá, fazendo o seu cooper. Aí chegou o ladrão?
- Isso.
- Chegou como? Já abordou você direto, com arma e tudo?
- Não, fingiu que queria só saber as horas. Quando eu parei para lhe informar corretamente, ele grudou em mim e disse que tinha uma faca, e que ia me furar com ela se eu não passasse a minha carteira e celular.
- "O ladrão abordou o cidadão pedindo as horas e depois disse que era um assalto. O ladrão disse que tinha uma faca e que iria furar o cidadão se ele não entregasse a carteira e o celular.". É isso?
- É.
- Quer corrigir alguma coisa?
- Não. Bem, é que...
- O que é?
- Não, deixa. Você vai me achar um chato.
- Fala.
- Não, é que você usou "ladrão" duas vezes seguidas. Não é bom repetir palavras. Sabe, fica feio pra quem lê.
- O que eu faço?
- Tenta pôr "meliante" no lugar do segundo "ladrão".
- "O meliante disse que tinha uma faca e que ia furar o cidadão se ele não..."
- Quer saber? Só coloca "ele". Está se referindo ao sujeito da última frase. O leitor irá entender.
- "Ele disse que tinha uma faca...". Ok, ok. Mais alguma coisa?
- Deixa eu ler. Ãh... É, a frase está meio mal construída. Reescreve assim: "Ele ameaçou furar o cidadão com uma faca caso este não entregasse a carteira e o celular".
- "...Carteira e celular.". Pronto. E depois?
- Depois eu passei as minhas posses e ele fugiu.
- Como? Saiu andando para onde?
- Desceu a Torquato Jr. e disse para eu seguir o meu caminho.
- "Depois de pegar a carteira e o celular do cidadão, o ladrão..."
- Já usamos ladrão. Bota "larápio".
- "...O larápio disse para o cidadão seguir o seu caminho e desceu a Torquato Júnior.".
- Júnior é jota-erre. E bota um "então" antes do "desceu".
- Como era o ladrão?
- Tipo, mais ou menos da minha altura, mas mais forte, tinha uma barba rala, pele negra...
- "O assaltante..."
- Isso. Boa.
- "...Tem uma altura de mais ou menos um metro e setenta, é negro e..."
- Não, não... quer saber? Deixa que eu escrevo.
- O quê?!
- Me dá licença? Assim... isso. Ó, a barba rala é uma coisa da aparência que pode ser mudada, já a altura e a cor não. É melhor colocar ela em uma frase separada do resto. Assim: "O assaltante é um negro de cerca de 1,70m. Tem a cabeça raspada e uma barba rala. É forte: sua estrutura corporal avantajada compensa o relativo pouco tamanho.". Mais alguma coisa?
- Hein?
- Tenho que colocar mais alguma informação?
- Não. Assim já está bom.
- E as roupas? Eu não falo das roupas?
- Não é necessário, eles mudam de roupa todos os assaltos...
- Ah, qual é? Como o personagem vai ficar crível sem uma descrição decente de aparência? Vou botar assim: "Trajava um casaco da Adidas preto, possivelmente falsificado, e uma calça de abrigo da mesma cor. Seus tênis eram velhos Kichutes desbotados como o brilho fosco de seus olhos. Sua expressão era terrível; sua voz, socos em forma de som.". Pronto. Acho que é isso. Relê tudo aí.
- Ãhn...
- Acho que está bom, né? Bom, agora é só salvar e botar no arquivo. Próximo!
- Ei, você não pode...
- Olá rapaz, o que houve?
- Oi. Eu fui assaltado ontem...
- Foi quando? De dia ou de noite?
- De noite.
- "Era uma noite sombria, na qual transitava, incauto, o nosso protagonista. Mal sabia ele que..."
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Nojento
O Zeca era chato. Pra caramba.
- Zeca, dá um gole da sua Coca?
- Não.
- Por quê?
- Você vai beber do bico e vai babar tudo.
- Cara, você é chato. Pra caramba. Ao menos dá o restinho.
- Vou pensar.
Não adiantava os amigos chamarem o Zeca de afrescalhado, ele dizia que era mesmo. Assim:
- Afrescalhado? Sou mesmo.
E tomava outro gole de sua Coca. Sem dividir.
Não parava por aí. Pra tocar em tudo na casa do Zeca tinha que se lavar as mãos primeiro: nos livros, no controle do videogame, no computador.
- No computador, Zeca?
- No computador, sim. Sabe quantas bactérias ficam alojadas nas teclas por causa de mãos sujas? Sabe quantas?
O Zeca sabia. E dá-lhe estatísticas pra cima das visitas, que se sentiam menos inclinadas a visitá-lo outras vezes.
Mas o Zeca gostava muito de uma menina, a Lia. Não só ele; todo mundo desejava a Lia para si. A Lia era uma deusa. Longos cabelos lisos e loiros, longas pernas, longos cílios protegendo olhos loucamente verdes. Talvez não dê pra usar o adjetivo "loucamente" nesse caso, mas é o que melhor cabe. Os olhos de Lia eram loucamente verdes e deixavam os outros loucos. Isso e o conjunto da obra, claro.
O Téo era um que sonhava constantemente com os olhos da Lia:
- A, a Lia... por ela eu faria tudo. Me casava, contraía matrimônio, jurava eterna lealdade, deixava de ver o próximo filme do Batman...
- Eu também. Faria qualquer coisa. - disse o Zeca.
- Sério? Até dividir a mesma Coca comigo? No bico?
- Argh!
Mas aconteceu o seguinte: o Zeca descobriu que a Lia tinha mania de limpeza. Lavava as mãos pra tudo e não dividia canudinho. Chegou à conclusão de que ela era a mulher perfeita pra ele. Assim:
- Ela é a mulher perfeita pra mim!
E começou a conversar com a Lia todos os dias. Os amigos observavam os dois, pensando em como a Lia suportava o Zeca. Mas a verdade é que a Lia se identificava com ele. Por isso, foi dando abertura pro Zeca, até que um dia disse a seguinte frase:
- Ai, Zeca... nunca achei alguém que me entendesse tão bem como você!
Esse foi o sinal que Zeca esperava. Ao voltar pra casa, passou a noite pensando em tudo o que diria pra Lia no dia seguinte. Diria que estivera sempre à procura de alguém como ela, e que agora não a deixaria escapar. Prometeria amor eterno, confiança, fidelidade. E realmente, no dia seguinte, disse tudo isso.
- ...E agora que eu te achei, Lia, não vou te deixar escapar de jeito nenhum! - Finalizou.
Lia estava emocionada. Estava torcendo para que um dia ele lhe dissesse essas coisas. Aceitou. Se abraçaram. Ela olhou nos olhos dele e ele nos olhos loucamente verdes dela. Fez carícias no seu cabelo. Ele encostou seu rosto no dela. Podiam sentir a respiração um do outro. Zeca foi deslizando o rosto, aproximando sua boca da de Lia. Lia foi deslizando o corpo para longe de Zeca. Zeca não entendeu.
- Ai, não Zeca...
Zeca continuou não entendendo. Ela explicou:
- Não gosto de beijo.
E voltou a lhe abraçar, como se nada tivesse acontecido. Zeca não a abraçou. Repetiu o que ela disse:
- Você... não gosta de beijo.
- É, bobinho.
- Beijo assim, tipo, beijo, beijo de língua.
- Isso. Ui. É nojento.
- Como assim, nojento?
- Como assim o quê? A gente misturar salivas, eu deixar a língua de outro entrar na minha boca, eu - argh! - botar a minha língua na boca de outra pessoa, encostá-la nos dentes de outro, vai saber se acho um pedaço de comida? Iiuh, pra mim não, obrigada.
E continuou abraçando-o. Zeca demorou um pouco pra se ligar que tinha que abraçá-la, também. Fez isso lentamente, como se não soubesse exatamente o que tinha entre os braços. E o pior foi isso: depois de uns minutos abraçados, Lia falou sussurrando em seu ouvido:
- E não se preocupa, quem não vai te deixar escapar de jeito nenhum sou eu...
***
Zeca encontrou os amigos mais tarde, no bar. Todos fizeram uma festa quando ele entrou: cantaram alto, se levantaram para abraçá-lo, parabenizaram-no.
- Foi o Tadeu quem contou - explicou o Téo - viu você e a Lia no maior love hoje...
- Sacana de sorte, hein? Vai ter tudo aquilo pra ti, magrão! - disse o Tadeu.
Entre vivas e cantos, o Zeca sentou na mesa muito quieto. Ouvia os amigos ao longe, comentando como queriam estar no lugar do Zeca, que ele era um privilegiado, o que não fariam por uma noite com a Lia... meu Deus, pensou Zeca, se a Lia achava beijar nojento, o que dizer então de...
O Zeca pegou a Coca que o Téo estava bebendo e tomou um gole. Do bico. O Téo olhou pra ele surpreso. E o Zeca disse uma frase que o Téo na hora não entendeu:
- Já que essa é a única saliva que eu vou poder compartilhar...
E ficou de cara amarrada pelo resto da noite.
- Zeca, dá um gole da sua Coca?
- Não.
- Por quê?
- Você vai beber do bico e vai babar tudo.
- Cara, você é chato. Pra caramba. Ao menos dá o restinho.
- Vou pensar.
Não adiantava os amigos chamarem o Zeca de afrescalhado, ele dizia que era mesmo. Assim:
- Afrescalhado? Sou mesmo.
E tomava outro gole de sua Coca. Sem dividir.
Não parava por aí. Pra tocar em tudo na casa do Zeca tinha que se lavar as mãos primeiro: nos livros, no controle do videogame, no computador.
- No computador, Zeca?
- No computador, sim. Sabe quantas bactérias ficam alojadas nas teclas por causa de mãos sujas? Sabe quantas?
O Zeca sabia. E dá-lhe estatísticas pra cima das visitas, que se sentiam menos inclinadas a visitá-lo outras vezes.
Mas o Zeca gostava muito de uma menina, a Lia. Não só ele; todo mundo desejava a Lia para si. A Lia era uma deusa. Longos cabelos lisos e loiros, longas pernas, longos cílios protegendo olhos loucamente verdes. Talvez não dê pra usar o adjetivo "loucamente" nesse caso, mas é o que melhor cabe. Os olhos de Lia eram loucamente verdes e deixavam os outros loucos. Isso e o conjunto da obra, claro.
O Téo era um que sonhava constantemente com os olhos da Lia:
- A, a Lia... por ela eu faria tudo. Me casava, contraía matrimônio, jurava eterna lealdade, deixava de ver o próximo filme do Batman...
- Eu também. Faria qualquer coisa. - disse o Zeca.
- Sério? Até dividir a mesma Coca comigo? No bico?
- Argh!
Mas aconteceu o seguinte: o Zeca descobriu que a Lia tinha mania de limpeza. Lavava as mãos pra tudo e não dividia canudinho. Chegou à conclusão de que ela era a mulher perfeita pra ele. Assim:
- Ela é a mulher perfeita pra mim!
E começou a conversar com a Lia todos os dias. Os amigos observavam os dois, pensando em como a Lia suportava o Zeca. Mas a verdade é que a Lia se identificava com ele. Por isso, foi dando abertura pro Zeca, até que um dia disse a seguinte frase:
- Ai, Zeca... nunca achei alguém que me entendesse tão bem como você!
Esse foi o sinal que Zeca esperava. Ao voltar pra casa, passou a noite pensando em tudo o que diria pra Lia no dia seguinte. Diria que estivera sempre à procura de alguém como ela, e que agora não a deixaria escapar. Prometeria amor eterno, confiança, fidelidade. E realmente, no dia seguinte, disse tudo isso.
- ...E agora que eu te achei, Lia, não vou te deixar escapar de jeito nenhum! - Finalizou.
Lia estava emocionada. Estava torcendo para que um dia ele lhe dissesse essas coisas. Aceitou. Se abraçaram. Ela olhou nos olhos dele e ele nos olhos loucamente verdes dela. Fez carícias no seu cabelo. Ele encostou seu rosto no dela. Podiam sentir a respiração um do outro. Zeca foi deslizando o rosto, aproximando sua boca da de Lia. Lia foi deslizando o corpo para longe de Zeca. Zeca não entendeu.
- Ai, não Zeca...
Zeca continuou não entendendo. Ela explicou:
- Não gosto de beijo.
E voltou a lhe abraçar, como se nada tivesse acontecido. Zeca não a abraçou. Repetiu o que ela disse:
- Você... não gosta de beijo.
- É, bobinho.
- Beijo assim, tipo, beijo, beijo de língua.
- Isso. Ui. É nojento.
- Como assim, nojento?
- Como assim o quê? A gente misturar salivas, eu deixar a língua de outro entrar na minha boca, eu - argh! - botar a minha língua na boca de outra pessoa, encostá-la nos dentes de outro, vai saber se acho um pedaço de comida? Iiuh, pra mim não, obrigada.
E continuou abraçando-o. Zeca demorou um pouco pra se ligar que tinha que abraçá-la, também. Fez isso lentamente, como se não soubesse exatamente o que tinha entre os braços. E o pior foi isso: depois de uns minutos abraçados, Lia falou sussurrando em seu ouvido:
- E não se preocupa, quem não vai te deixar escapar de jeito nenhum sou eu...
***
Zeca encontrou os amigos mais tarde, no bar. Todos fizeram uma festa quando ele entrou: cantaram alto, se levantaram para abraçá-lo, parabenizaram-no.
- Foi o Tadeu quem contou - explicou o Téo - viu você e a Lia no maior love hoje...
- Sacana de sorte, hein? Vai ter tudo aquilo pra ti, magrão! - disse o Tadeu.
Entre vivas e cantos, o Zeca sentou na mesa muito quieto. Ouvia os amigos ao longe, comentando como queriam estar no lugar do Zeca, que ele era um privilegiado, o que não fariam por uma noite com a Lia... meu Deus, pensou Zeca, se a Lia achava beijar nojento, o que dizer então de...
O Zeca pegou a Coca que o Téo estava bebendo e tomou um gole. Do bico. O Téo olhou pra ele surpreso. E o Zeca disse uma frase que o Téo na hora não entendeu:
- Já que essa é a única saliva que eu vou poder compartilhar...
E ficou de cara amarrada pelo resto da noite.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
Deus e os designers
Muito mais difícil do que ser um bom físico é ser um bom designer. O bom físico entende das origens do Universo, das macroformações das galáxias, das microleis da matéria e das forças que fazem o mundo girar ao invés de quicar Infinito afora. O bom designer mestra o design. De tudo. Design é provavelmente o universo mais abrangente que existe. Não estamos falando apenas de design de móveis ou roupas ou automóveis, mas também de design de joias, livros, embalagens, interiores, webpages, e, além desses, design gráfico, de brinquedos, videogames, jogos de tabuleiro, armações de óculos...
Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.
***
Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.
***
Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.
Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.
- Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!
Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.
- Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.
- Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.
Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.
- Bravo! E o que mais?
- Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!
Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.
- Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!
- E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.
Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.
- Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.
- Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.
- Obrigado.
- Agora a parte chata...
- Sim.
- Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...
- Sim.
- ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.
- Então você quer que eu...
- Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.
- Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?
- Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?
- Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...
- Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?
- Não, tudo bem, eu faço...
- Viu? Ó, pode até deixar a orelha.
- Ok, ok.
Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.
Todo esse universo existe para solucionar problemas. O problema, quer seja abrir a embalagem de leite sem derramá-lo ou fazer caber mais meias na gaveta, é o que motiva o designer a bolar uma solução. Veneramos os bombeiros por seu trabalho, mas não paramos para pensar em quantas vidas foram poupadas através de embalagens anticriança (que precisam ser pressionadas para abrir) ou móveis antiidosos (com cantos arredondados). Quem os projetou? Designers, é claro. Não os vemos, mas eles estão lá, trabalhando incansavelmente para solucionar os nossos problemas. Eles cuidam de nós. Eles garantem que haja um compartimento especial para o celular na mochila, para que você não o perca. Eles fizeram os gorros de orelha, para que as suas orelhas fiquem quentinhas. Quando você for dormir à noite, durma tranquilo, pois em algum lugar alguém está trabalhando incansavelmente para que você não derrame mais o leite ao abrir a embalagem.
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Em Jornalismo temos o que se chama de repórter multimídia: é aquele que sabe trabalhar com todos os meios. Televisão, internet, rádio, impresso, diga que ele faz. É um profissional completo. Difícil imaginar um designer assim. O designer completo, ao fazer, digamos, um porta-aviões, faria desde o modelo geral até a tipografia do nome da embarcação. Ele deve saber desenhar desde letras até grandes e complexos veículos que devem ser funcionais, possíveis e, de preferência, bonitos. Leonardo da Vinci era um designer completo. Ele fez o tanque de guerra, a bicicleta, a Santa Ceia e o helicóptero, que não voava, mas era bonito.
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Não se esqueça, porém, que mesmo quem mestre desde a arte da moda até dos aviões sempre estará em segundo lugar ante o maior de todos os designers: Deus. Deus é o cara, ele sabe aliar forma e função melhor que qualquer bauhausiano. Às vezes ele se permite um pouco de extravagância, é só olhar o pavão. Mas é tudo de excelente bom gosto. Com exceção da barata. Um bicho que funciona sem a cabeça. Brrr.
Imagino Deus anunciando um novo modelo de criação. Ele chega na sala dos diretores da empresa, todos presentes e cheios de expectativa. Hoje é um dia importante. Deus vai mostrar uma nova forma de vida. Os encontros desse tipo são permeados por uma atmosfera de excitação. Deus sabe disso. Até fez a barba para a ocasião.
- Senhoras e senhores - diz ele - permitam-me apresentar a minha mais nova criação... o homem!
Ele projeta um slide com o desenho de um ser humano. Aplausos.
- Parece um macaco - lembra um dos dirigentes.
- Sim, realmente, mas possui um design muito mais inteligente - explica o Todo Poderoso. - Por exemplo: retirei o excesso de pelo. Pelos são muito 200.000 AC. Mas não mudei só a aparência, não: esse aí é bípede, anda apoiado nos dois pés. E, já que as mãos não são mais usadas na locomoção, aproveitei para adicionar polegares opositores.
Múrmurios de aprovação. Muito impressionante.
- Bravo! E o que mais?
- Duas fileiras de dentes, não muito grandes, mas funcionais, cinco dedos nas mãos e cinco no pé. O quinto não tem função, mas eu achei bonitinho. Sistema de língua-lábios-cordas vocais que permitem uma infinidade de sons diferentes. Dois pulmões, dois rins, um coração. Tudo muito funcional. Mas também me permiti ousar um pouco, e exercitar meu lado artístico. Então, apresento a vocês a minha obra prima: a orelha!
Passa para o slide de uma orelha. Mais aplausos.
- Perfeito, perfeito! - entusiasma-se um empresário - é lindo, muito barroco, muito lindo!
- E isso que eu não falei da melhor parte. - continuou Deus - Deem uma olhada no cérebro.
Ele passa o slide e aparece a imagem de um cérebro humano, cheio de setas e explicações.
- Como vocês veem, é extremamente complexo. Também é proporcionalmente maior do que as minhas tentativas anteriores. Com isso, o homem poderá tirar máximo proveito de toda a sua maravilhosa funcionalidade, e será mais esperto que qualquer criatura, e será capaz de sempre calcular a melhor decisão para os seus atos.
- Muito bom, muito bom - elogia o empresário. - parabéns, Deus, você se superou novamente.
- Obrigado.
- Agora a parte chata...
- Sim.
- Você sabe que isso que você está nos mostrando é maravilhoso, perfeito, e eu - nem que tentasse por um milhão de anos - nunca faria algo melhor. Mas - e não entenda isso errado -, apesar de ser algo que nós realmente gostamos, que se pudéssemos não mudaríamos em nada...
- Sim.
- ...Bem, nós temos que lembrar que trabalhamos em cima de um orçamento. E essa sua criação - e não tome isso como ofensa! - ela, bem, terá um custo de produção elevado, se for feita dessa maneira. Você sabe, eu sei, é chato, mas não podemos nos esquecer do orçamento.
- Então você quer que eu...
- Faça umas alterações, sim. Simplifique o modelo. Por hora, ao menos. Corte o supérfluo.
- Cortar o supérfluo? Você quer que eu refaça a minha obra-prima?
- Não! Por Você, não, não é nada muito drástico. São só algumas mudanças para baratear a produção, você entende, não é?
- Bom, eu suponho que possa simplificar o cérebro...
- Isso! Excelente! Mas não o faça se dar conta disso. Deixe-o pensar que ele é o ser mais inteligente. Tudo bem? Não é pedir demais?
- Não, tudo bem, eu faço...
- Viu? Ó, pode até deixar a orelha.
- Ok, ok.
Nem o melhor designer do muito conseguiu resolver o problema da falta de verbas.
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