terça-feira, 1 de setembro de 2009

O comunista

Carlos era tão comunista, mas tão comunista, que aprendeu a escrever com a mão canhota só pra poder se dizer cem por cento de esquerda. Defendia fervorosamente os ideais de igualdade capital para todos os homens, e nada o faria mudar de ideia. Fazia ele mesmo a estampa de suas camisetas do Che Guevara, pois comprar uma seria trair os ideais de seu ídolo. Quando jogava War, sempre escolhia o exército Vermelho. Nenhum de seus amigos, mesmo os de esquerda, chegavam a tal radicalismo. Se alguém ousava desafiar seus argumentos, ou dizer que o comunismo morreu, Carlos virava um possesso, e vociferava argumentos contra, invocando de Marx e Engels até os arautos do novo socialismo latino-americano. Normalmente o outro desistia, e ia embora todo sujo de cuspe, que o camarada inadvertidamente espalhara pra todo o lado. Com isso, os amigos do Carlos até podiam conviver, era só cuidar para não ofender os seus ideais. O problema era quando ele inventava de ver ofensas onde não havia.
- Putz, o negócio lá em casa tá russo...
- Ah é? - já se levantava Carlos, ameaçadoramente - Por quê? Porque russo é comunista e comunista é sinônimo de ruim, é isso?
- Não, não é isso - diz o outro assustado -  é porque o pessoal tá no vermelho...
- E qual é o problema de estar no Vermelho? Eu estou no Vermelho desde que eu nasci e nunca vou sair!
E acabava a fala citando Che Guevara: "revolución hasta la victoria siempre!".
Os amigos às vezes se irritavam. Mas não podiam reclamar. Ter o Carlos como amigo tinha seu lado bom. Ele emprestava tudo: livros, cds, revistas, filmes, era só pedir e ele prontamente colocava à disposição. Na sua filosofia, a propriedade privada deveria ser abolida. Um bem seu era um bem de todos. O que não impedia o Sílvio de provocá-lo de quando em quando:
- Comunismo é uma coisa muito bonita. Pena que não funciona.
- Como não?! - bradava Carlos já na defensiva.
- Ué, já foi testado na União Soviética e não funcionou. Só piorou tudo.
- Piorou?! Piorou nada! O grande culpado foram os interesses capitalistas do império americano, que acabaram por denegrir a imagem de um modelo igualitário de sociedade... - e lá vinha mais Marx e Engels e Trotski e etc.
Quem mais se incomodava com o Carlos era a namorada dele, a Lívia. A Lívia já tinha enchido o saco de tanta bobagem revolucionária. Era Che pra cá, Stalin pra lá, e ela com dor de cabeça de ouvir o Carlos gritar com ela sempre que comprava uma Coca-Cola. A gota d'água foi quando chegou certa manhã na casa do Carlos e tropeçou em alguma coisa. Um emaranhado de trapos no chão. O emaranhado de trapos se mexia. Lívia gritou.
- AHH! CARLOS, O QUE QUE É ISSO!?
- Calma, amor - disse o Carlos, entrando relaxado na sala de estar, ainda vestido com o seu pijama vermelho - é só o Arivaldo, o mendigo aqui da rua.
- Bom dia, dona. - disse o Arivaldo.
- Carlos, o que é que um mendigo está fazendo dormindo na sua sala de estar? - disse Lívia, lívida de raiva.
- Ah é? E você queria o quê? Que eu deixasse um companheiro dormir na rua quando eu tenho espaço suficiente pra dividir com ele? Que tipo de mente pequeno-burguesa você tem? - retrucou o Carlos.
- Ah, não. Você passou dos limites, Carlos. - Lívia se encaminhou para a saída.
- Calma, amor! - disse Carlos, correndo atrás dela - Desculpe por ofendê-la, eu não quis chamá-la de pequeno-burguesa, saiu sem querer!
- Ah, você não entende mesmo, não é?
- Volta aqui, meu amor! Minha Olguinha, minha Aleida, minha...
Haveria volta. Lívia planejou a vingança. Fizeram as pazes, mas no outro dia Carlos entrou no quarto de Lívia e encontrou-a na cama com outro homem.
- Lívia, o que significa isso?! - disse ele, surpreendido.
Lívia nem fingiu surpresa; ajeitou o lençol calmamente em volta do corpo e disse:
- Não é você que é de repartir tudo? Me reparte com os outros então!
Carlos ficou quieto. Continuou namorando com Lívia, mas agora não parecia mais tão animado com ela. Os amigos souberam. De vez em quando o Sílvio largava uma:
- Carlos! Tô precisando da tua namorada. Me empresta ela hoje à noite?
- Não enche!
E o Sílvio ria gostosamente. Esse Carlos era um sarro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário