domingo, 13 de setembro de 2009

Os olhos

O homem se distrai com o barulho da campainha e erra uma pincelada. O rosto do quadro fica com uma boca mal delineada. O homem larga o pincel e vai até a porta, cuidando para não tropeçar nas roupas e jornais velhos jogados no chão. Junto com as roupas, embalagens de salgadinhos e outras comidas se amontoam em volta do sofá. Pisa numa tigela e quase cai. Chega até a porta. Abre-a. É a Marina.
- Marina?
- Cadinho! Tudo bem?
- Ah... tudo, tudo.
Ele deixa-a entrar, meio desajeitado. O corpo esbelto e belo da mulher entra na sala, contrastando com a bagunça. O homem coça a cabeça, meio confuso.
- Ãhn, eh... o que você está fazendo aqui?
- Você anda sumido, parece que nem te vejo mais! Vim fazer uma visitinha. Opa, nem te abracei.
A mulher se aproxima para abraçá-lo. Ele consegue sentir o cheiro dela por entre a cabeleira loira. Ainda o mesmo perfume.
- O que anda fazendo? - pergunta ela.
- Trabalhando, trabalhando... trabalhando bastante, na verdade. Completamente sem tempo.
- Deu pra ver. Sua barba está pedindo para ser feita.
- Ah, pois é, nem me lembrei, é tanta coisa passando pela cabeça...
- Não sei o que deu em você, você antes sempre achava tempo para os amigos... agora parece que se afastou de mim.
Ela sabe exatamente o porquê. Prefere fazer que não. Talvez seja mais fácil assim. O homem desconversa.
- Não, impressão sua... é só que eu estou ocupado, mesmo...
Depois ficou meio perdido, sem saber o que fazer em seguida.
- Ãhn... peraí que eu vou fazer um café. Me espera aí, é bem rápido. - tirou algumas roupas de cima do sofá para dar lugar para ela sentar.
Da cozinha ouviu a mulher falar:
- Bonito o quadro que você está pintando...
- É? Valeu, tenho pintado bastante, ultimamente.
- É uma mulher, é?
- É.
- Bonito, os olhos verdes.
Levou o café para a sala. Enquanto a mulher distraía-se bebendo o café, aproveitou para tirar de vista algumas fotos que estavam espalhadas pelo chão. Fotos onde ela aparecia.
- Estou pensando em viajar para a Europa, neste verão. - disse ela.
- Ah é?
- Sim. Fazer um tour. Portugal, Espanha, Alemanha, França, Itália e Grécia.
- Passa em Paris?
- Claro. Você me conhece.
- Ô se conheço. Há tempos, inclusive.
E como conhece. Conhece tudo o que é possível conhecer. Já decorou todas as marcas na pele, todos os gestos que ela faz com as mãos quando fala. Todos os sorrisos. Consegue saber quando é um sorriso irônico, quando é um sorriso falso e quando é um sorriso sincero.
- Cadinho, você está me ouvindo?
Ela estava falando mas ele não prestou atenção. Ficou imerso nas lembranças. Ela o questionava agora, olhando-o com aqueles olhos verdes. Talvez tenham sido os olhos que começaram tudo. Quando ela falava, olhando-o com aqueles olhos, o homem se sentia hipnotizado. Não conseguia parar de olhar. Quando reparou nessa força que os olhos da mulher tinham, se sentira fisgado. Lembrava agora. Foi o começo do fim.
- Cadinho, você está me ouvindo?
- Desculpe, - disse ele, esfregando a cara - eu estou lerdo hoje.
A mulher olhava-o diretamente nos olhos. Ela não fez isso naquele dia. Naquele dia ela não conseguia levantar os olhos do chão. Ele lá, abrindo o seu coração, e ela sem conseguir olhá-lo nos olhos. Colocando-se na posição dela, o homem pensa que também não conseguiria fazê-lo. Mas não deixou de ficar triste por isso. Quanto mais intimidade se consegue com uma pessoa, mais fácil fica de machucá-la. Mas o homem queria o contrário. Queria garantir que ninguém nunca mais a machucaria. Queria ele mesmo protegê-la. Foi tudo muito rápido. Rápido demais para ela.
- A gente não conversa mais... eu sinto falta disso. - diz ela.
- Eu também.
- Vamos combinar algo para fazer juntos.
- Juntos?
- É! Eu, você, o pessoal... não podemos perder o contato. Você é muito importante pra mim.
Ela deu uma pausa.
- Eu não quero perder você como amigo. - terminou.
O homem ficou sem graça. Mudou de tática. Resolveu se fazer ele de desentendido.
- Me perder? Claro que não! Por que eu deixaria de ser seu amigo?
- Não sei! Só sei que eu não quero isso.
- Eu também não. Então não há problema nenhum.
- Promete?
- Como assim?
- Promete que não vai sumir assim de novo?
- Eu já disse que não sumi. Não há nada de diferente. - mas as suas olheiras recém inauguradas desmentiam a afirmação.
- Só promete, por favor.
- Tudo bem. Você sabe que pra você eu sempre digo sim.
"Mas você não diz sempre sim pra mim", pensa ele. Ela lê esse pensamento olhando para o homem. Ele percebe isso na expressão dela. São os olhos. São mágicos, só podem ser.
- Bom, acho melhor eu ir indo... - diz ela.
- Sim, sim, tudo bem. Só uma coisa: prometa você que não vai fugir de mim.
Agora quem faz essa pergunta é ele. Ela é pega de surpresa, mas responde:
- Sim, eu prometo.
Depois sorri. Sorriso difícil de analisar. Possivelmente compaixão.
Ele a leva até a porta. Mais uma vez se abraçam (mais uma vez ele sente o cheiro dela) e então se despedem. O homem senta no sofá, na posição na qual está acostumado a ficar por horas, principalmente nos últimos dias. O interfone toca. Ele atende. É ela.
- Oi. Cadinho?
- Marina?
- Eu não esqueci as chaves do carro aí em cima?
- Vou dar uma olhada.
- O quê? Está ruim de ouvir.
- Vou dar uma olhada!
- Ah, espera! Achei, estão aqui.
- Oi?
- Achei! Achei as chaves!
- Ah.
- Bom, então é isso.
- É isso.
Ele sente um nó na garganta.
- Te amo, Marina.
- Oi?
- Nada. Eu disse tchau.
- Tchau!

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