- Ai!
- Opa.
- Você me mordeu?!
- Desculpa.
- Você me mordeu, seu tarado!
- Eu? Não.
- Mordeu sim! Tarado! Tarado!
As pessoas em volta notam o início de tumulto. Um homem alto, parrudo, pergunta:
- Está tudo bem, moça?
- Esse tarado me mordeu! No meio do ônibus!
- Olha, não vamos fazer alarde... - tentou o autor da mordida.
- Fica quieto! Qual é a sua, cara? Cê tem problemas?
- Você mordeu a moça?
O sujeito reluta, mas dá de ombros e admite.
- Sabe como é, ônibus lotado, aquele ombro nu...
- Eca!
- Tá maluco, rapaz? Morder a moça?
- Foi sem querer...
Princípio de comoção no ônibus. Uma velhinha escuta a palavra "tarado", pensa que é o homem alto e bate nele com o jornal. O autor da mordida aproveita o momento de distração para negociar com a moça:
- Olha só, desculpe, quem sabe se eu compensar isso com dinheiro...
- Quer me comprar?! É assim que você trata as mulheres? Dá mordidas e paga depois?
O homem está suando. A opinião pública não lhe é favorável e, pra piorar, o ar-condicionado do veículo não dá conta do calor. Ele tenta se explicar:
- É... É a natureza animal. Foi instinto, sabe? Estava olhando para o seu ombro e, quando vi, já tinha mordido. Eu normalmente não faço isso, juro. Sou um homem direito. Pago contas. Imposto de renda, acho que nunca soneguei.
- Ah, tá. Daqui a pouco vai dizer que sentiu o meu cheiro e não conseguiu se controlar.
- Mais ou menos. É o clima. Fez frio o mês inteiro, e agora esse veranico. Um mês inteiro sofrendo, encasacado, e daí hoje faz esse calor e eu fico prensado no ônibus bem na frente de um ombro nu, bronzeado... Nem tinha notado o quanto sentia falta de ver ombros bronzeados. Aqueles ombros redondinhos, lisinhos, com uma leve penugem loira...
Vozes em todos os cantos chamam-no de "tarado". O homem corpulento aproxima-se ameaçadoramente. Outros homens põem-se entre o tarado e a moça. Um deles diz:
- Você é uma vergonha.
O homem da mordida ouve aquela palavra. "Vergonha". Aquilo mexe com seus brios. Não, não era uma vergonha. Tinha seguido uma vida correta até ali. Correta demais, até. Um incidente no ônibus não iria derrubar sua reputação, ah não. Deixou de manter uma postura defensiva. Encheu o peito.
- Vergonha, é? Vergonha nada. Se estivessem na minha situação, a menos de um palmo do ombro da moça, em que um movimento de cabeça é tudo o que lhes separa de cravar os dentes num ombro com o encaixe perfeito de uma arcada dentária... Isso não é vergonha. Não devemos ter vergonha dos nossos instintos. Não devemos perder o contato com o barro da vida. Olhem para nós! O que nos diferencia dos animais são essas fantasias que usamos para esconder nossa nudez. Por baixo desses ternos e gravatas encontra-se um símio desesperado para copular.
As palavras surtem efeito. Os gritos de tarado pararam. Todos ouvem o monólogo.
- Você! - disse o homem da mordida ao homem parrudo - Você é como eu. Um macaco domesticado. Mas às vezes... Às vezes nos encontramos numa situação limiar. Uma situação que desperta nossos instintos. Todos nós. Pode ser uma mãe que vê o filho em perigo, ou um homem há muito tempo sem contato feminino diante de um ombro nu. Nesse momento, o macaco dentro de nós toma o controle. Nesse momento, não somos mais responsáveis por nossas ações. Vai dizer que isso nunca aconteceu com você, com todos vocês! Hein? Hein?
O autor da mordida aponta o dedo para o peito do homem parrudo. Silêncio no ônibus. Então:
- Você me chamou de macaco?
- Hein?!
- Chamou sim! Chamou de macaco! - grita a velhinha.
- Não foi isso que eu quis dizer...
Mas aí o homem já tinha puxado uma arma.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
domingo, 8 de abril de 2012
Confronto no Condomínio São Sebastião
Completa quarenta e oito horas o confronto entre a
administração do condomínio São Sebastião e os rebeldes que ocuparam o salão de
festas. O conflito teve início quando João de Marcos Rolim, 26 anos, até
recentemente morador do apartamento 410, resolveu reunir os amigos para o que
seria sua última festa antes da mudança. O síndico Allan Mesquita Silveira
Alves, 60 anos, conhecido pelos condôminos como Seu Mesquita, lembra que a
confusão já começou com o número de convidados, que excedia em muito o
permitido pelo regulamento interno, mas que isso poderia ter sido resolvido sem
prejuízo entre as partes. O real estopim foi quando, às três horas e vinte
minutos da madrugada do dia 26, após ter reclamado do barulho por diversas
vezes, dona Clotilde, moradora do 201, uma senhora de muita coragem e pouca
paciência, foi pessoalmente resolver o problema e levou uma lata de cerveja na
cara.
"Foi horrível", relata Alice, filha de Clotilde e também moradora do 201. "Ficaram fazendo piadas com mamãe, chamando-a de 'Bruxa do 201'. Isso depois de acertarem a latinha!". Num misto de tristeza e ódio, Alice rompe em lágrimas e não consegue terminar o depoimento.
Após horas de agonia, dona Clotilde veio a falecer. O condomínio em peso pediu retaliação ao síndico, que rapidamente abraçou a missão de expulsar os rebeldes. "Eles são muitos. O povo cobra ações rápidas, mas não dá pra fazer tudo na pressa. É preciso estratégia", conta Seu Mesquita. Desde as quinze horas do dia do incidente ele se encontra reunido na Sala de Jogos em reunião extraordinária com o conselho do condomínio. São momentos de tensão. Alice resume bem a situação: "Eles tiraram um dos nossos. Vamos querer um deles".
***
Terceiro dia do conflito. Para se proteger, os rebeldes erguem barricadas em volta do perímetro do salão utilizando engradados de cerveja. Moradores cobram ações do poder público, mas a prefeitura, com a repercussão popular do incidente na reserva indígena do Alto Cairú ainda vívida na memória, desautoriza a polícia a agir, alegando que uma ação militar em território não diretamente administrado pelo município implica uma interferência ilegal na autonomia política do condomínio. À tarde, uma das caixas de som que vinha tocando ininterruptamente as mesmas músicas durante 110 horas queima. Disfarçado de visitante, um amigo dos rebeldes entra no condomínio com uma caixa de som nova e um pendrive com música eletrônica. Ele consegue passar pela barreira, não sem antes sofrer uma tentativa de apedrejamento das velhinhas que patrulham o perímetro.
O conselho do condomínio alega que uma invasão à força, apesar dos pedidos dos moradores, não é opção pois os rebeldes são jovens e a maior parte dos condôminos têm problemas de articulação nas juntas. Uma das moradoras pede ajuda a Jorge de Almeida Couto, 27 anos, vulgo "Jorjão", seu fisioterapeuta e personal-trainer no contraturno, para expulsar os rebeldes. A população aplaude a chegada da arma secreta. Jorjão abre caminho facilmente através da barricada de engradados. Tumulto dentro do salão; o aparelho de som é desligado. Ouve-se gritos. Depois de minutos de suspense, Jorjão aparece à porta, visivelmente alcoolizado e com uma garrafa de Natasha na mão. O herói fora convertido. Começa a música eletrônica.
***
Quinto dia. Os rebeldes anunciam publicamente que pretendem fazer "a Maior Festa da História". Eles agora ocuparam a área da piscina e entram de roupa na água, o que Seu Mesquita identifica como "uma afronta direta às regras de uso da área recreativa". Os moradores tentam expulsá-los jogando estátuas de gatos de porcelana e caixas de remédios vencidos, sem sucesso. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Seu Mesquita reclama da omissão da polícia, dizendo que ela "tem a minha autorização para agir aqui dentro, mas não age, pombas". Procurado, o prefeito responde que o conflito e sua resolução são responsabilidade integral dos condôminos e se recusa a envolver as forças municipais no assunto. Também pede que, por favor, parem de contatá-lo, pois está no Rio de Janeiro para fechar parcerias importantes para a cidade e não gosta de levar celular à beira-mar.
À tarde, os moradores têm sua primeira vitória: dois rebeldes morrem na piscina. Após tomar o equivalente a duas garrafas de rum com energético cada um, os jovens sofrem um colapso dentro d'água e morrem afogados. Alice, integrante do movimento "Dona Clotilde Vive", diz que o álcool é uma variável importante na guerra e pode ser o responsável por desmoronar a resistência rebelde a médio prazo. João Rolim, líder dos rebeldes, recebe tal afirmação com desdém. Em entrevista coletiva para jornalistas, ele afirmou que a festa nunca esteve tão longe de terminar e que a resistência tem a situação sob controle, ainda que admita que todos estão alcoolizados há dias. Ao final da entrevista, continuou respondendo a perguntas de um repórter invisível sobre a louraça que está pegando.
***
Já faz nove dias do início do conflito e a festa ainda não tem hora para acabar. Moradores dos andares mais baixos relatam não dormir há uma semana. O confronto transforma-se numa guerra de resistência: qual dos lados aguenta mais tempo?
Às dezenove horas, tensão no salão de festas: falta luz. O síndico teve a ideia de desligar a chave de energia, deixando o salão no escuro. A bateria do MacBook dos rebeldes eventualmente acaba e a música também. Um mártir suicida do lado de fora consegue fazer passar um violão pela barreira, sendo logo depois desmembrado por velhinhas raivosas. Os rebeldes fazem uma roda de viola. Uma garota acha velas na despensa e organiza um luau. Em entrevista, o síndico diz que os rebeldes não resistirão à cerveja quente. A batalha está perto do fim.
***
Décimo dia. A condição higiênica dos banheiros leva a dois óbitos. Rebeldes colocam os corpos na geladeira, bêbados demais para lembrar que ela não funciona sem luz. Pela manhã, os primeiros despilhados cruzam a barreira, sóbrios, enjoados e pedindo, por favor, um celular para ligar para o pai vir buscar. À noite, o cheiro dos banheiros e dos corpos leva a dois desmaios, os primeiros não causados pela bebida. O grupo de revoltosos agora já é bem menor.
***
Na manhã do décimo-quinto dia os rebeldes apresentam suas condições de rendição: anulação de todas as dívidas de guerra, multas de condomínio e pendências no aluguel do salão, além de socorro imediato aos enfermos. O síndico aceita reduzir as multas em 50%, um abatimento estimado em US$ 16 bilhões. Rebeldes negam responsabilidade pelo pagamento e entregam o dono do apartamento e responsável pela festa, João Rolim, para os condôminos. Após a cerimônia de execução do líder revoltoso em praça pública, o síndico declara feriado. Ele diz à CBN que esta é uma vitória do povo sobre a opressão, da Justiça sobre a anarquia, da ordem sobre a selvageria. Uma vitória do Estado republicano, liberal, trabalhador, casado e com 2,5 filhos sobre o que ele chama de "esses guri (sic) com cocô na cabeça".
"Foi horrível", relata Alice, filha de Clotilde e também moradora do 201. "Ficaram fazendo piadas com mamãe, chamando-a de 'Bruxa do 201'. Isso depois de acertarem a latinha!". Num misto de tristeza e ódio, Alice rompe em lágrimas e não consegue terminar o depoimento.
Após horas de agonia, dona Clotilde veio a falecer. O condomínio em peso pediu retaliação ao síndico, que rapidamente abraçou a missão de expulsar os rebeldes. "Eles são muitos. O povo cobra ações rápidas, mas não dá pra fazer tudo na pressa. É preciso estratégia", conta Seu Mesquita. Desde as quinze horas do dia do incidente ele se encontra reunido na Sala de Jogos em reunião extraordinária com o conselho do condomínio. São momentos de tensão. Alice resume bem a situação: "Eles tiraram um dos nossos. Vamos querer um deles".
***
Terceiro dia do conflito. Para se proteger, os rebeldes erguem barricadas em volta do perímetro do salão utilizando engradados de cerveja. Moradores cobram ações do poder público, mas a prefeitura, com a repercussão popular do incidente na reserva indígena do Alto Cairú ainda vívida na memória, desautoriza a polícia a agir, alegando que uma ação militar em território não diretamente administrado pelo município implica uma interferência ilegal na autonomia política do condomínio. À tarde, uma das caixas de som que vinha tocando ininterruptamente as mesmas músicas durante 110 horas queima. Disfarçado de visitante, um amigo dos rebeldes entra no condomínio com uma caixa de som nova e um pendrive com música eletrônica. Ele consegue passar pela barreira, não sem antes sofrer uma tentativa de apedrejamento das velhinhas que patrulham o perímetro.
O conselho do condomínio alega que uma invasão à força, apesar dos pedidos dos moradores, não é opção pois os rebeldes são jovens e a maior parte dos condôminos têm problemas de articulação nas juntas. Uma das moradoras pede ajuda a Jorge de Almeida Couto, 27 anos, vulgo "Jorjão", seu fisioterapeuta e personal-trainer no contraturno, para expulsar os rebeldes. A população aplaude a chegada da arma secreta. Jorjão abre caminho facilmente através da barricada de engradados. Tumulto dentro do salão; o aparelho de som é desligado. Ouve-se gritos. Depois de minutos de suspense, Jorjão aparece à porta, visivelmente alcoolizado e com uma garrafa de Natasha na mão. O herói fora convertido. Começa a música eletrônica.
***
Quinto dia. Os rebeldes anunciam publicamente que pretendem fazer "a Maior Festa da História". Eles agora ocuparam a área da piscina e entram de roupa na água, o que Seu Mesquita identifica como "uma afronta direta às regras de uso da área recreativa". Os moradores tentam expulsá-los jogando estátuas de gatos de porcelana e caixas de remédios vencidos, sem sucesso. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Seu Mesquita reclama da omissão da polícia, dizendo que ela "tem a minha autorização para agir aqui dentro, mas não age, pombas". Procurado, o prefeito responde que o conflito e sua resolução são responsabilidade integral dos condôminos e se recusa a envolver as forças municipais no assunto. Também pede que, por favor, parem de contatá-lo, pois está no Rio de Janeiro para fechar parcerias importantes para a cidade e não gosta de levar celular à beira-mar.
À tarde, os moradores têm sua primeira vitória: dois rebeldes morrem na piscina. Após tomar o equivalente a duas garrafas de rum com energético cada um, os jovens sofrem um colapso dentro d'água e morrem afogados. Alice, integrante do movimento "Dona Clotilde Vive", diz que o álcool é uma variável importante na guerra e pode ser o responsável por desmoronar a resistência rebelde a médio prazo. João Rolim, líder dos rebeldes, recebe tal afirmação com desdém. Em entrevista coletiva para jornalistas, ele afirmou que a festa nunca esteve tão longe de terminar e que a resistência tem a situação sob controle, ainda que admita que todos estão alcoolizados há dias. Ao final da entrevista, continuou respondendo a perguntas de um repórter invisível sobre a louraça que está pegando.
***
Já faz nove dias do início do conflito e a festa ainda não tem hora para acabar. Moradores dos andares mais baixos relatam não dormir há uma semana. O confronto transforma-se numa guerra de resistência: qual dos lados aguenta mais tempo?
Às dezenove horas, tensão no salão de festas: falta luz. O síndico teve a ideia de desligar a chave de energia, deixando o salão no escuro. A bateria do MacBook dos rebeldes eventualmente acaba e a música também. Um mártir suicida do lado de fora consegue fazer passar um violão pela barreira, sendo logo depois desmembrado por velhinhas raivosas. Os rebeldes fazem uma roda de viola. Uma garota acha velas na despensa e organiza um luau. Em entrevista, o síndico diz que os rebeldes não resistirão à cerveja quente. A batalha está perto do fim.
***
Décimo dia. A condição higiênica dos banheiros leva a dois óbitos. Rebeldes colocam os corpos na geladeira, bêbados demais para lembrar que ela não funciona sem luz. Pela manhã, os primeiros despilhados cruzam a barreira, sóbrios, enjoados e pedindo, por favor, um celular para ligar para o pai vir buscar. À noite, o cheiro dos banheiros e dos corpos leva a dois desmaios, os primeiros não causados pela bebida. O grupo de revoltosos agora já é bem menor.
***
Na manhã do décimo-quinto dia os rebeldes apresentam suas condições de rendição: anulação de todas as dívidas de guerra, multas de condomínio e pendências no aluguel do salão, além de socorro imediato aos enfermos. O síndico aceita reduzir as multas em 50%, um abatimento estimado em US$ 16 bilhões. Rebeldes negam responsabilidade pelo pagamento e entregam o dono do apartamento e responsável pela festa, João Rolim, para os condôminos. Após a cerimônia de execução do líder revoltoso em praça pública, o síndico declara feriado. Ele diz à CBN que esta é uma vitória do povo sobre a opressão, da Justiça sobre a anarquia, da ordem sobre a selvageria. Uma vitória do Estado republicano, liberal, trabalhador, casado e com 2,5 filhos sobre o que ele chama de "esses guri (sic) com cocô na cabeça".
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
No restaurante
O homem estava sentado numa mesa de um restaurante fino, com uma taça de vinho na mão. Ele sacudiu o vinho na taça, sem olhar para o líquido. Seu olhar estava no infinito. Disse:
- A História é apenas uma versão da História.
O garçom que estava próximo não escutara direito.
- Como?
- A História é apenas uma versão da História.
O garçom bufou.
- Sei...
O homem continuou girando o líquido róseo dentro de sua taça, encarando-a firmemente. Disse:
- A vida parece muito com uma taça de vinho: embriaga, traz felicidade, mas no final vira um copo vazio. E dá azia.
O garçom nada comentou. Os cantos da boca do homem levantaram-se levemente, divertidos com a própria tirada. Ele bebeu um gole do vinho e passou a admirar a vista do restaurante. Talvez seja importante mencionar que o restaurante tinha uma vista lindíssima que dava para a parte nobre de uma cidade lindíssima, mas com um custo de vida muito alto, o que fazia o custo do restaurante ser alto também. O homem que agora estava admirando a cidade trajava um terno branco e tinha um bigode fino do tipo que, caso não esteja acompanhado do terno branco correto, corre o risco de ser muito brega.
- Dizem que a beleza é menor que a honra, por ser efêmera. Não seria a honra de todo homem tão efêmera quanto a beleza?
O garçom evitou responder a pergunta, que ele sabia ser retórica. Até porque o homem não estava falando com ninguém em especial. Talvez com o vinho. Ao invés disso, retrucou:
- Claro, e quem sabe o senhor não pede um prato do nosso cardápio para acompanhar a filosofia barata?
O homem deu um risinho, mas continuou falando para a sua taça:
- A humanidade está perdida em ódio e impaciência. Por outro lado, por que será que ninguém se impacienta com a espera da morte?
O garçom se irritou:
- O quê? Olha só, senhor, você vem todo o dia aqui no nosso restaurante, pede uma taça de vinho e fica horas aí rodopiando a sua bebida e falando frases pseudointeligentes, que não significam nada! Eu não sei se você acha que engana alguém com esse falso ar de personagem existencialista de romance europeu, mas o meu trabalho aqui é servir os clientes e não ficar ouvindo baboseiras!
- Sabe por que os ocidentais são um povo triste? Porque perderam o contato com o barro - continuou o homem, ainda sem encarar o garçom - o barro, é claro, é ilusório; o homem, uma falácia. O barro é a falácia da falácia.
- O que raios isso significa?
- Voulez-vous couché avec moi, ce soir. Voulez-vous couché avec moi.
- Isso é a letra de Lady Marmalade! Você não pode achar que disse uma coisa inteligente só porque é em francês!
O homem agarrou o garçom pela lapela e encarou-o, com ódio. Disse:
- Quem guardará os guardiões? Quem guardará os guardiões!
- Essa frase não é sua, é do poeta grego Juvenal! Sua farsa! Pensa que pode me subestimar só porque sou um garçom? Pensa que essa sua pose, essas suas tiradas e esse seu vinho enganam alguém?
O homem soltou o garçom e atirou-se na cadeira, entediado. Falou:
- Os que se julgam fortes precisavam primeiro derrotar suas fraquezas...
- Outra frase que não significa nada! Eu sei o que você está fazendo! Está inventando frases que parecem profundas, mas que se você ver bem de perto não significam nada! Acha que engana alguém, seu charlatão? Acha que basta um punhado de frases de efeito para virar um intelectual? Acha que...
Nisso aproxima-se uma mulher, vestido vermelho, cabelo loiro e curvas estonteantes, e interrompe o discurso do garçom ao chamar a atenção do homem de bigode:
- Com licença... Aquela sua frase, dos fortes que precisam derrotar suas fraquezas... O que quer dizer?
O homem dá um sorriso blasé, atira-se para trás na cadeira e cruza as pernas com muito charme.
- O que são pedidos de explicações senão um jeito de adiar outras perguntas?
O garçom faz um ruído de desprezo.
- Nossa... isso é Nietzche? - pergunta a mulher ao homem. Ele sorri.
- Os pensadores são apenas aqueles que pensaram primeiro.
A mulher fica boquiabera.
- Uau... Se importa se eu me sentar?
O garçom fica boquiaberto. Pelo resto da noite os olhos da mulher não desgrudam da boca do homem, que continua desferido vários pequenos pensamentos em sequência. A mulher acompanha tudo muito interessada e pergunta se o homem não quer continuar a explanação na sua casa. Na saída o homem sente que alguém o cutucou: vira-se e dá com o garçom, com uma caneta e um bloco de notas em punho e um sorriso muito conciliador no rosto.
- Com licença... aquela sua frase da História ser a versão da História, como é que era mesmo?
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Sem pé, com cabeça
Tem uma banda chamada Hotel Santa Clara da qual gosto muito. Eles são daqui de Porto Alegre mas fazem um som em inglês, que chamam de twee-pop, um estilo de folk/pop britânico. Só que o som deles é muito melhor do que o fabricado em terras bretãs. Não que eu seja ou não um fã da música britânica, mas é que eles são muito bons. Mesmo.
Lá por 2009 eles postaram várias músicas apaixonantes no Myspace. Descobri-os através da minha irmã, que me mostrou um clipe de uma música, chamada Hopefully Foolness, e eu pirei. Depois achei outras músicas, Witty Song, Fitting Silhouettes, Cold as Your Heart, boa, linda, ótima. Apesar das gravações serem demos, a qualidade musical do grupo era inegável. Eles têm um vocalista muito bom que, apesar de não cantar em todas as músicas, tem voz, pronúncia e timbre invejáveis para qualquer banda, nacional ou internacional.
A Hotel Santa Clara é uma big band, ou seja, tem músico a dar com pau: tecladista, trompetista, violinista, três vocalistas e o combo guitarras-baixo-bateria. Não esqueço até hoje um show deles em 2009, o único que assisti: eu, minha irmã e o então namorado dela, num estabelecimento que mais parecia uma casa, sem palco. A banda tocava no nível da plateia. Era a noite inaugural da Tweepopnight, a primeira festa de twee-pop de Porto Alegre. A sala onde seria realizado o show era pequena, e parecia ainda menor pelo fato de haver uma cortina tapando metade dela. O show começou com dois membros do HSC tocando uma música acústica, bonita, mas simples, à frente da cortina. Só que, perto do final da canção... BAM! As cortinas caem e revelam, além de todo o resto da banda, um palco decorado com nuvens de cartolina, charmosamente simples. Todos os instrumentistas se juntam à música numa orgia sonora. É de deixar qualquer um extasiado. Inesquecível. Lá jurei meus votos de fã, e a minha irmã comprou um bottom escrito I (coração) HSC.
No mesmo 2009 eles anunciaram um CD por vir, e eu me beliscava de antecipação. A cena musical da época era favorável ao lançamento: Mallu Magalhães estava em alta fazendo músicas em inglês no Brasil, então o público estava pronto para receber propostas similares. Talvez, quem sabe, eles fizessem barulho no país inteiro? Talento eles tinham. Competência sonora, mais ainda. Com uma boa divulgação eles chegariam longe. Só que...
Só que não aconteceu. Porque a banda acabou.
Uns poucos meses antes do lançamento oficial do cd, a Hotel Santa Clara fechou as portas. Do nada. Num dia estavam postando notícias das gravações no Twitter, no outro não estavam mais juntos. Foi abrupto desse jeito.
Fiquei meio sem entender. Pensei que ia ser um tempo, só, mas o tempo foi passando, passando, e nada. Aí caiu a ficha que eles acabaram mesmo. E caiu a segunda ficha, que não haveria cd. Que aquelas demos, uma amostra do que a banda seria, eram o que de mais oficial restara. Até hoje escuto as músicas, mas me sinto estranho. Ninguém as conhece, por melhores que sejam. Não há ninguém que possa conversar comigo sobre elas. As próprias pessoas que as comporam já seguiram em frente e deixaram suas criações à própria sorte, melodias abandonadas no deserto da internet, para algum explorador encontrar por acidente.
Fiz todo esse preâmbulo para falar que a vida não segue uma cronologia lógica como um filme, com começo, meio e fim. Nem precisa necessariamente ser sem pé nem cabeça: pode ter pé e não ter cabeça, ou ter cabeça sem pé. Pode ser uma coisa com total sentido, de total importância, que simplesmente ficou pela metade. Como a última obra de arte do pintor, aquela que fica inacabada e é bela pelo que é, e mais ainda pelo que poderia ser. Como uma amizade que prometia muita coisa, mas foi interrompida por uma viagem ou, sei lá, pela morte. Como uma carreira interrompida por qualquer motivo. Como um relacionamento que acaba sem ter porquê.
O Myspace do Hotel Santa Clara é este, e algumas das faixas que ficaram prontas para o álbum não-lançado podem ser encontradas aqui. Talvez o fato de mais pessoas conhecerem essas músicas faça-as vivas de novo. Quem sabe.
Tem gente que acha que é mais bonito se algo belo nunca se completar, porque a promessa do que poderia ter sido é infinitamente mais bela do que a realidade blablá... Sei. Não acho. Queria muito saber como seriam várias coisas que ficaram pra trás antes de desabrochar. Inclusive a Tweepopnight, da qual nunca mais ouvi falar. Nem da casa de shows sem palco, aliás, cuja localização nunca mais encontrei. Talvez tenha sido engolida pelo passado, onde existirá eternamente. Talvez exista até hoje em alguma dimensão do espaço-tempo, hospedando bandas finadas com músicas não-gravadas, frequentada por uma plateia de gente sem face que não existe e, por isso mesmo, canta alegremente o repertório, brindando com suas cervejas de marcas falidas.
Ou talvez eu esteja enlouquecendo.
Lá por 2009 eles postaram várias músicas apaixonantes no Myspace. Descobri-os através da minha irmã, que me mostrou um clipe de uma música, chamada Hopefully Foolness, e eu pirei. Depois achei outras músicas, Witty Song, Fitting Silhouettes, Cold as Your Heart, boa, linda, ótima. Apesar das gravações serem demos, a qualidade musical do grupo era inegável. Eles têm um vocalista muito bom que, apesar de não cantar em todas as músicas, tem voz, pronúncia e timbre invejáveis para qualquer banda, nacional ou internacional.
A Hotel Santa Clara é uma big band, ou seja, tem músico a dar com pau: tecladista, trompetista, violinista, três vocalistas e o combo guitarras-baixo-bateria. Não esqueço até hoje um show deles em 2009, o único que assisti: eu, minha irmã e o então namorado dela, num estabelecimento que mais parecia uma casa, sem palco. A banda tocava no nível da plateia. Era a noite inaugural da Tweepopnight, a primeira festa de twee-pop de Porto Alegre. A sala onde seria realizado o show era pequena, e parecia ainda menor pelo fato de haver uma cortina tapando metade dela. O show começou com dois membros do HSC tocando uma música acústica, bonita, mas simples, à frente da cortina. Só que, perto do final da canção... BAM! As cortinas caem e revelam, além de todo o resto da banda, um palco decorado com nuvens de cartolina, charmosamente simples. Todos os instrumentistas se juntam à música numa orgia sonora. É de deixar qualquer um extasiado. Inesquecível. Lá jurei meus votos de fã, e a minha irmã comprou um bottom escrito I (coração) HSC.
No mesmo 2009 eles anunciaram um CD por vir, e eu me beliscava de antecipação. A cena musical da época era favorável ao lançamento: Mallu Magalhães estava em alta fazendo músicas em inglês no Brasil, então o público estava pronto para receber propostas similares. Talvez, quem sabe, eles fizessem barulho no país inteiro? Talento eles tinham. Competência sonora, mais ainda. Com uma boa divulgação eles chegariam longe. Só que...
Só que não aconteceu. Porque a banda acabou.
Uns poucos meses antes do lançamento oficial do cd, a Hotel Santa Clara fechou as portas. Do nada. Num dia estavam postando notícias das gravações no Twitter, no outro não estavam mais juntos. Foi abrupto desse jeito.
Fiquei meio sem entender. Pensei que ia ser um tempo, só, mas o tempo foi passando, passando, e nada. Aí caiu a ficha que eles acabaram mesmo. E caiu a segunda ficha, que não haveria cd. Que aquelas demos, uma amostra do que a banda seria, eram o que de mais oficial restara. Até hoje escuto as músicas, mas me sinto estranho. Ninguém as conhece, por melhores que sejam. Não há ninguém que possa conversar comigo sobre elas. As próprias pessoas que as comporam já seguiram em frente e deixaram suas criações à própria sorte, melodias abandonadas no deserto da internet, para algum explorador encontrar por acidente.
Fiz todo esse preâmbulo para falar que a vida não segue uma cronologia lógica como um filme, com começo, meio e fim. Nem precisa necessariamente ser sem pé nem cabeça: pode ter pé e não ter cabeça, ou ter cabeça sem pé. Pode ser uma coisa com total sentido, de total importância, que simplesmente ficou pela metade. Como a última obra de arte do pintor, aquela que fica inacabada e é bela pelo que é, e mais ainda pelo que poderia ser. Como uma amizade que prometia muita coisa, mas foi interrompida por uma viagem ou, sei lá, pela morte. Como uma carreira interrompida por qualquer motivo. Como um relacionamento que acaba sem ter porquê.
O Myspace do Hotel Santa Clara é este, e algumas das faixas que ficaram prontas para o álbum não-lançado podem ser encontradas aqui. Talvez o fato de mais pessoas conhecerem essas músicas faça-as vivas de novo. Quem sabe.
Tem gente que acha que é mais bonito se algo belo nunca se completar, porque a promessa do que poderia ter sido é infinitamente mais bela do que a realidade blablá... Sei. Não acho. Queria muito saber como seriam várias coisas que ficaram pra trás antes de desabrochar. Inclusive a Tweepopnight, da qual nunca mais ouvi falar. Nem da casa de shows sem palco, aliás, cuja localização nunca mais encontrei. Talvez tenha sido engolida pelo passado, onde existirá eternamente. Talvez exista até hoje em alguma dimensão do espaço-tempo, hospedando bandas finadas com músicas não-gravadas, frequentada por uma plateia de gente sem face que não existe e, por isso mesmo, canta alegremente o repertório, brindando com suas cervejas de marcas falidas.
Ou talvez eu esteja enlouquecendo.
sábado, 20 de agosto de 2011
Ciúme
O ciúme fede. O ciúme é um sentimento vil, amargo, que faz suar, que deixa a gente com aquele mal-estar no peito, que desanima, que pode ser o colesterol, mas se estiver tudo em ordem, então não há engano, é ciúme. É ruim. E é besta, porque ciúme sempre é besta. Não há ciúme inteligente, racional. O ciúme é mimado, bobo. E o problema é que todos sentem, por mais racionais que sejam, porque o ciúme é próprio da natureza humana. Algo a ver com a evolução, o instinto de guardar os genes do parceiro para si, a fim de não perdê-lo para a concorrência. Para não sentir ciúme, é preciso abdicar de sua humanidade; para não sentir ciúme, é preciso ser sobrehumano.
É assim que é o Vílson. O Vílson é um cara mirradinho, fala pouco, apesar de ser bem simpático, e é muito sereno. Vílson, claro, é um nome inventado, para preservar a fonte. E o Vílson namora uma gostosa, e o pior tipo de gostosa: a que sabe que é gostosa. A gostosa da namorada do Vílson sabe que é gostosa e adora ser visada, ficar de papo-furado com outros homens, rir, flertar e deixá-los loucos. E o pior, faz isso na frente do namorado. É bizarro ver o Vílson e a namorada com os amigos: o Vílson fica lá, sentado com os seus cinquenta e cinco quilos numa cadeira, bem sereno, enquanto a namorada faz a social. Você, um novato no grupo, não entende: os dois chegaram juntos, de mãos dadas, e agora a namorada nem dá bola pro Vílson. Você resolve tirar a dúvida:
- Aqueles dois são namorados, mesmo?
- Ela e o Vílson? Acho que são - responde o outro.
E a namorada do Vílson, só de risadinhas. Ela faz graça para o grupo, formado só por por homens mais fortes e altos que o Vílson e com olhares maliciosos que fariam qualquer garotinha inocente corar. A namorada do Vílson anuncia que foi pra praia no fim de semana e ficou com marquinha, querem ver? Todos concordam, e ela afasta a alça do sutiã para que vejam que, sim, lá está a marquinha. Um dos caras senta-se e pergunta se a namorada do Vílson quer sentar no seu colo, o que ela prontamente faz. Você leva a mão à boca:
- Esses aí não eram pra ser os amigos do cara?! - você pergunta, com um leve desespero na voz.
Seu amigo dá de ombros. Um dos caras elogia os cabelos da namorada do Vílson, passa a mão neles; ela dá um risinho. E o Vílson, apesar de sentado bem de frente da cena, parece se entreter observando o cadarço desamarrado. Você, compadecido, vai puxar papo, sei lá, consolar o cara. O Vílson é gente-fina, vocês conversam amenidades, ele não desvia o olhar por nem um momento para ver onde está a namorada. Você é surpreendido pela própria, que debruça-se no seu ombro para falar, com voz manhosa, que tem que ir embora, amanhã tem cursinho. Enquanto ela se despede dos garotos, você tem a impressão que um deles passa a mão na bunda dela.
Como explicar o comportamento apático do Vílson? Sua não somente inação, mas total desinteresse nos supostos rivais amorosos, que rodeiam sua garota como lobos em volta de carne seca? Só há uma explicação.
O Vílson atingiu o Nirvana.
Sim, o Vílson não é mais um de nós. Ele está em outro plano. Sua alma não se corrompe com preocupações terrenas como a baixa do dólar ou o ciúme. Os outros são somente punhados de pó perdidos na existência. Buda já dizia que as posses não são posses, pois um homem jamais possuirá nada na sua essência. Ninguém nunca o fez, mas tenho certeza que quem entrar no quarto do Vílson à noite vai vê-lo meditanto na posição de lótus, enquanto recita o mantra secreto do Bodhisattva, aquele mesmo que o quarto Dalai Lama utilizou quando tentou dormir numa caverna cheia de mosquitos, goteiras e música ambiente da Enya. Só isso explica a sua paz de espírito. Explica até o seu peso. Ninguém deve engordar se alimentando só de luz.
Atingir a iluminação é o único jeito de eliminar o ciúme. De outra forma, temos que aprender a conviver com ele, nem nos repreendendo, nem repreendendo a outra pessoa por coisas que só acontecem na nossa cabeça. Um pouquinho vai doer. Mas é uma dor administrável.
Agora, o que ninguém consegue saber é o que a namorada do Vílson viu nele, que é magricela, feio e sem dinheiro. Talvez, insatisfeita com apenas um homem, ela tenha ficado com uma opção que lhe permita ter vários ao mesmo tempo. Ou talvez ela tenha sido atraída pelos prazeres exóticos do sexo tântrico. Ah, os mistérios do Oriente...
É assim que é o Vílson. O Vílson é um cara mirradinho, fala pouco, apesar de ser bem simpático, e é muito sereno. Vílson, claro, é um nome inventado, para preservar a fonte. E o Vílson namora uma gostosa, e o pior tipo de gostosa: a que sabe que é gostosa. A gostosa da namorada do Vílson sabe que é gostosa e adora ser visada, ficar de papo-furado com outros homens, rir, flertar e deixá-los loucos. E o pior, faz isso na frente do namorado. É bizarro ver o Vílson e a namorada com os amigos: o Vílson fica lá, sentado com os seus cinquenta e cinco quilos numa cadeira, bem sereno, enquanto a namorada faz a social. Você, um novato no grupo, não entende: os dois chegaram juntos, de mãos dadas, e agora a namorada nem dá bola pro Vílson. Você resolve tirar a dúvida:
- Aqueles dois são namorados, mesmo?
- Ela e o Vílson? Acho que são - responde o outro.
E a namorada do Vílson, só de risadinhas. Ela faz graça para o grupo, formado só por por homens mais fortes e altos que o Vílson e com olhares maliciosos que fariam qualquer garotinha inocente corar. A namorada do Vílson anuncia que foi pra praia no fim de semana e ficou com marquinha, querem ver? Todos concordam, e ela afasta a alça do sutiã para que vejam que, sim, lá está a marquinha. Um dos caras senta-se e pergunta se a namorada do Vílson quer sentar no seu colo, o que ela prontamente faz. Você leva a mão à boca:
- Esses aí não eram pra ser os amigos do cara?! - você pergunta, com um leve desespero na voz.
Seu amigo dá de ombros. Um dos caras elogia os cabelos da namorada do Vílson, passa a mão neles; ela dá um risinho. E o Vílson, apesar de sentado bem de frente da cena, parece se entreter observando o cadarço desamarrado. Você, compadecido, vai puxar papo, sei lá, consolar o cara. O Vílson é gente-fina, vocês conversam amenidades, ele não desvia o olhar por nem um momento para ver onde está a namorada. Você é surpreendido pela própria, que debruça-se no seu ombro para falar, com voz manhosa, que tem que ir embora, amanhã tem cursinho. Enquanto ela se despede dos garotos, você tem a impressão que um deles passa a mão na bunda dela.
Como explicar o comportamento apático do Vílson? Sua não somente inação, mas total desinteresse nos supostos rivais amorosos, que rodeiam sua garota como lobos em volta de carne seca? Só há uma explicação.
O Vílson atingiu o Nirvana.
Sim, o Vílson não é mais um de nós. Ele está em outro plano. Sua alma não se corrompe com preocupações terrenas como a baixa do dólar ou o ciúme. Os outros são somente punhados de pó perdidos na existência. Buda já dizia que as posses não são posses, pois um homem jamais possuirá nada na sua essência. Ninguém nunca o fez, mas tenho certeza que quem entrar no quarto do Vílson à noite vai vê-lo meditanto na posição de lótus, enquanto recita o mantra secreto do Bodhisattva, aquele mesmo que o quarto Dalai Lama utilizou quando tentou dormir numa caverna cheia de mosquitos, goteiras e música ambiente da Enya. Só isso explica a sua paz de espírito. Explica até o seu peso. Ninguém deve engordar se alimentando só de luz.
Atingir a iluminação é o único jeito de eliminar o ciúme. De outra forma, temos que aprender a conviver com ele, nem nos repreendendo, nem repreendendo a outra pessoa por coisas que só acontecem na nossa cabeça. Um pouquinho vai doer. Mas é uma dor administrável.
Agora, o que ninguém consegue saber é o que a namorada do Vílson viu nele, que é magricela, feio e sem dinheiro. Talvez, insatisfeita com apenas um homem, ela tenha ficado com uma opção que lhe permita ter vários ao mesmo tempo. Ou talvez ela tenha sido atraída pelos prazeres exóticos do sexo tântrico. Ah, os mistérios do Oriente...
quinta-feira, 2 de junho de 2011
A mulher do Souza
Ninguém sabia por que o Souza não trazia a mulher para as festas da firma. Talvez, sugeriam alguns, porque fosse gostosa, e o Souza sentisse ciúmes. O que só dava mais vontade de ver a esposa do Souza. Ou podia ser feia demais, ou tímida demais, ou, sei lá, ter cinco braços. Virou um tema de conversa. De vez em quando alguém levantava a pergunta:
- E a mulher do Souza?
Era uma indagação genérica, não precisava ser formulada além disso. E a mulher do Souza? Ninguém sabia da mulher do Souza. Se a pergunta fosse para o Souza, ele desconversava.
- Ah, pois é...
Dizia que ela não saía para eventos, que era complicado, que ela não gostava dessas coisas, que estava com caxumba. Ih, aí tem coisa, disse o Jorge. Ou a mulher não gosta dessas coisas, ou está com caxumba. Porque, quando alguém dá duas desculpas diferentes para a mesma coisa, é porque nenhuma delas é verdade, não é verdade? É verdade. Aí tem coisa.
Tiveram uma ideia. Pediram para o seu Breno, o empregado mais velhinho da firma, que continuava trabalhando no setor de finanças apesar dos quase 90 anos e que estava de aniversário na próxima semana, requisitar especialmente para o Souza a presença de sua mulher no aniversário.
- Sabe como é, seu Souza, talvez seja o meu último aniversário aqui na firma, então quero que todos compareçam com suas famílias.
- Sim, sim...
- Sabe, é importante para mim conhecer a família de todos vocês, com quem convivo há tantos anos, até porque pode não ter outra oportunidade...
- Ok, ok, tudo bem.
O Souza chegou atrasado na festa: inclusive, com a demora pensaram que ele não viria. Mas ele veio sim, estrategicamente na hora que o Jorge estava fazendo um discurso bonito sobre o Seu Breno e as suas décadas de coleguismo na empresa. O Souza entrou de fininho, pra não chamar atenção. Com a mulher. Olhares de todos os cantos se fixaram no casal. Quando viu os dois, o Jorge até abreviou o discurso para receber o Souza.
- Grande Souza! Tudo certo? Essa deve ser a...
- Sim, sim, é ela.
E o Souza mal apresentou a mulher: disse duas palavras e deixou por isso. Como quem faz de má vontade. A esposa do Souza não era uma deusa, como se imaginava. Era bem mais ou menos. Alguns comentariam mais tarde que ela era feia, o que era um exagero, sem dúvidas. Só não era o espetáculo que todos imaginavam. Bom, ao menos a hipótese do Souza esconder a mulher para preservar sua beleza sobrenatural caiu por terra. A hipótese dos cinco braços também não se confirmou.
Mas, então, qual seria o motivo da relutância em trazer a mulher a público? O Plínio, o Cruz e o Jorge resolveram pressionar. Enquanto a mulher do Souza estava conversando com outras mulheres de outros colegas, os três foram puxar papo com ele:
- E a tua mulher, hein, Souza?
- Pois é.
- Pois é o quê?
- Sei lá. Vocês que perguntaram.
- Finalmente ela veio. Ó, se deu bem com o pessoal, tá conversando de boa. Socializou legal, não ficou tímida num canto, nem saiu descontrolada atirando brigadeiros nos convidados ou gritando em alemão. É uma boa mulher. Então por quê?
- Por quê o quê?
- Pra que isso? Essa relutância em trazê-la às festas?
- Impressão de vocês...
- Não força, Souza.
- Sei lá...
- Souza, não tente nos enrolar. É desrespeitoso. Abre o jogo.
Tanto insistiram, que o Souza ficou acuado. Não tinha mais como esconder.
- Tá bom, tá bom, eu falo! É que... é ridículo, mas é verdade.
- O quê?
- Vocês vão ver.
Sabe aquela brincadeira conjugal de interpretar papéis? Para atiçar o relacionamento? Sim, todos sabiam. Pra ficar mais fácil pro Souza se soltar, o Plínio disse que brincava com a mulher de homem-das-cavernas, mas quando ele se empolgava e a puxava pelos cabelos, a mulher lhe dava um tapa e virava de lado na cama. O Souza o interrompeu. Queria falar, o assunto era sério. Agora sentia que a hora da verdade devia ser essa mesmo, precisava dividir seu drama com alguém. Pois bem. Depois do casamento o Souza e a mulher ficaram com medo de que o matrimônio esfriasse as coisas, então resolveram atiçar a relação experimentando um jogo de papéis. Ela seria a moça do interior, ingênua, uma atriz que veio para a cidade grande em busca da fama. Ele, um magnata da televisão que apadrinharia ela, mediante favores especiais. Uma brincadeira bem picante. O Plínio vibrou:
- É isso aí, garotão!
- Não, espera, deixa eu terminar.
Fizeram a interpretação direitinho. Foram para um restaurante, fingiram que não se conheciam, ele chegou nela, ela contou a sua história de mocinha do interior em busca de sucesso, ele fez a proposta indecente e a levou para a sua casa. No caso, a casa dos dois, mas enfim. Chegaram lá, amaram-se, e então...
- Então o quê?
Então, depois do ato, cansados e com o sentimento de dever feito, ele olhou pra ela e ela olhou pra ele, e ele pensou: e agora? Sigo com a fantasia, ou ela para logo depois do sexo? Continuo fingindo que sou Jânus, o magnata da rede Ultrasat, e que ela é Dóroti, a menina inocente de Três Coroas que acaba de ser seduzida pelo seu poder sobre a mídia?
- Estávamos nesses papeis desde o início da noite. Quando é que se sabe que acaba? Não tem nenhum diretor pra dizer corta, entende? Quando é que eu sei que corta?
Estavam nesses papeis há cinco anos. Para ela, ele era Jânus. Para ele, ela era a inocente Dóroti. Quando Souza estavam longe dela ele podia ser o mesmo Souza de sempre, mas na presença um do outro eles se tratavam assim. O Souza evitava levar a mulher para sair junto com os amigos, e até mesmo com a família, para não causar constrangimentos.
- Tá, e você nunca pensou em parar? - questionou o Plínio.
- Pois é, mas parar do nada, depois de cinco anos?
Os outros concordaram. Depois de continuar tanto tempo com a brincadeira, encerrar do nada seria admitir que os dois gastaram meia década fazendo uma coisa totalmente idiota. E outra: talvez nem houvesse mais casamento depois da encenação. Talvez o casamento só funcionasse por causa da encenação. Acabada a brincadeira, seriam dois idiotas completamente desconhecidos um do outro.
- E eu nem sei mais o que ela faz da vida. Quando ela sai para trabalhar, ela diz que está indo para a gravação da novela. Mas no que ela trabalha realmente? Eu perdi toda a comunicação com a minha esposa de verdade. Eu nem sei como ela é, o que ela pensa, o que ela faz.
- E você? Diz o quê pra ela?
- Que eu trabalho com televisão. Disse que hoje era uma festa da produção do meu mais novo filme, um thriller policial que se passa dentro de uma empresa. A festa é num dos sets de filmagem. Viu? É ridículo!
- É. Quer dizer, não é, é só estranho, mas...
Mas nessa hora chega a mulher do Souza e se aproxima dele. Ele abre um sorriso galanteador, passa um braço em volta do ombro dela e diz, num tom de voz forçado:
- E aí, beibe? Se divertindo?
Ela fica imediatamente vermelha, e olha para baixo. Os colegas do Souza também ficam constrangidos. Souza não fala nada, mas faz uma cara para os outros de quem diz: "viram no que eu me meti?".
***
Enterro do seu Breno. Dia chuvoso. Todo mundo assistindo o caixão ser baixado na terra, com capas de chuva, bem quietos. O Plínio, o Cruz e o Jorge lado a lado. Então o Souza aparece do lado do Cruz, meio encolhido.
- E aí pessoal? Tudo bem?
- Souza! Tá encolhido assim por quê? Tá com frio?
- Não. Estou me escondendo da Dóroti. Quer dizer, da minha mulher. Não quero que ela me chame de Jânus na frente dos meus colegas. É embaraçoso demais.
- Então por que você trouxe ela de novo?
- Sei lá. Era tão importante para o velho esse negócio de família... me senti na obrigação.
O padre estava fazendo uma oração. Ficaram uns momentos quietos.
- Ainda está ruim com ela? - perguntou o Plínio.
- Ô. O problema nem é não saber mais quem é a pessoa com quem você dorme. Isso eu já me acostumei. O problema são as coisas mais práticas, como o dinheiro. Nos primeiros dias, eu ainda me divertia interpretando o magnata da indústria televisiva. É bom pro ego, sei lá. Aí eu agia como se fosse um milionário, mesmo: comprava joias, dava presentes caríssimos pra ela. Só que o negócio fugiu do controle. Ela tem uma impressão errada da minha renda: às vezes estamos no shopping e ela me pede para comprar roupas caríssimas, assim, por impulso. Eu nunca disse não. Quase todo o meu dinheiro vai para pagar esta farsa. Daqui a pouco vou ter que vender a casa. O que vou dizer pra ela?
- A sua mansão? Pombas, nós sempre discutíamos como você fazia pra pagar um casarão daqueles. Eu achava que você estava metido no narcotráfico, mas nunca comentei nada. - disse o Plínio. - Isso é insano. Tem que por um ponto final nisso.
Começaram a discutir soluções. O Cruz veio com uma ideia boa, que, após alguns pitacos dos outros, se tornou um plano tático. Seria assim: Jânus chegaria para a mulher e diria que está com problemas. A tevê da qual ele é dono está para falir.
- A Ultrasat? O conglomerado de comunicações mais poderoso do Pacífico Sul? Como?
- Sei lá. Inventa uma desculpa. Põe a culpa na internet.
Com o negócio falido, haveria uma contenção de gastos. De imediato, seriam cortados os supérfluos, como presentes e roupas. Aos poucos, a farsa iria se aproximar do mundo real.
- Genial, pessoal! É isso o que eu vou fazer! - exclamou, feliz, o Souza.
- E tem mais - disse o Jorge - a gente podia fazer o seguinte...
***
Mansão do Souza. Batem na porta. A mulher do Souza atende. É o Cruz.
- Bom dia. O seu marido está?
- Ele está no banho. Por favor entre. Qual é o seu nome?
- Sou Alberto Goldfrapp, do conglomerado midiático Satvision. Tenho negócios a tratar com Jânus.
A mulher do Souza olha o Cruz com uma cara surpresa. O Cruz senta-se no sofá da sala, com um porte elegante que ele normalmente não possui. Está usando um casaco de pele, um chapéu panamá e carrega um charuto na boca. O Cruz não fuma charuto, mas todos concordaram que o charuto era essencial para o papel.
- Ãhn... sobre o que seria, senhor... Goldtrapp?
- Goldfrapp. Trouxe uns documentos para o senhor Jânus assinar. É sobre a venda da rede Ultrasat.
A mulher senta-se no sofá, confusa. O Souza entra na sala, secando os cabelos - tinha tomado banho há pouco - e se depara com os dois. A mulher vira-se para ele.
- Querido, este homem quer comprar do Jânus, quer dizer, de você... algo sobre uma venda...
- Oh, querida - Souza finge estar abalado - não queria que você soubesse desse jeito. Sim, é terrível. A rede Ultrasat está falida.
- O quê?
- Falida. Completamente quebrada. É a internet. Sabe, esses jovens de hoje não assistem mais televisão. Como resultado, estou vendendo a rede para ser incorporada pela Satvision...
- A preço de banana, diga-se de passagem - diz o Cruz.
- Mas como isso é possível? - A mulher está completamente perdida.
- É a lógica de mercado, beibe: os maiores comem os menores. Devia ter vendido a rede quando ela ainda valia alguma coisa. Agora, para pagar as despesas do meu último thriller policial me vi obrigado a vender a empresa. Ah, no negócio ainda perdemos a nossa casa.
A mulher do Souza solta um "Oh!".
- Mas não se preocupe, beibe. Já consegui um novo emprego numa empresa, como contador. O salário não é bom, então teremos que fazer cortes de gastos. Mas acho que essa mudança é uma oportunidade de dar uma renovada nas nossas vidas, que tal?
***
Os colegas do Souza estavam muito orgulhosos do plano, que fora um sucesso. O Souza parecia bem mais disposto nos últimos dias. Disse que estava prestes a quitar todas as suas dívidas, e se sentia melhor de não ter que mentir sobre o seu emprego.
Passaram algumas semanas, e certo dia notaram que nem o Souza, nem o Cruz foram trabalhar. Estranharam. O Souza chegou várias horas depois, atrasado. O que houve?, perguntaram o Jorge e o Plínio. Vocês não vão acreditar, disse o Souza.
- Acordo hoje de manhã com barulho de movimento no meu quarto. É a minha mulher, fazendo as malas. Pergunto o que houve, e ela diz que vai embora. Que precisa correr atrás do sonho de ser atriz. "Que sonho?", eu perguntei. O sonho, oras! O sonho que agora eu, Jânus não era mais capaz de realizar. Aí eu enchi o saco. Disse chega, vamos parar com essa farsa, já não tem mais graça. Ela fez que não entendeu. "Que farsa?", ela perguntou, mas eu notei o desdém na voz. Ela disse que estava indo morar com Alberto Goldfrapp no Rio.
- O Cruz! - exclamaram os dois colegas.
- Exato. Ele é o novo tubarão da mídia e está muito mais apto a fazê-la feliz. E, antes de ir, ainda teve a coragem de me dizer que o nosso contrato acabou. A vagabunda!
- Não esquenta, cara - disse o Jorge - ela não vale nada. O Cruz também. Eu sabia que ele não prestava. E mais, agora tenho certeza que era ele quem roubava os atilhos da minha mesa, o desgraçado.
O Plínio disse que não era para o Souza se preocupar. Sairiam os três, naquela noite, para catar mulher. O Souza iria ver, disse o Plínio, que o mundo tá cheio de mulher louca para ficar com ele. Iriam apresentá-lo como um Don Juan. Don Juan não!, protestou o Souza. Chega de fingir. Seria o Souza, corno, falido e contador de uma empresa de médio porte.
Tudo bem. Tudo iria ficar bem. Depois de um tempo o Souza começou a rir. E o riso se transformou numa gargalhada.
- Quando a gente estava interpretando papéis, eu às vezes brincava que nós iríamos mudar para o Rio, e a minha mulher dizia que a única condição para isso é que comprássemos um apartamento de um andar inteiro no Leblon. O Cruz não sabe no que se meteu.
E o Souza continuou gargalhando como um maníaco. Os amigos olharam um para o outro. É, talvez fosse preciso acabar com as farsas. Mas talvez o Souza precisasse forçar uma personalidade menos esquisitona se quisesse arranjar outra mulher. Só um pouquinho, pelo menos.
- E a mulher do Souza?
Era uma indagação genérica, não precisava ser formulada além disso. E a mulher do Souza? Ninguém sabia da mulher do Souza. Se a pergunta fosse para o Souza, ele desconversava.
- Ah, pois é...
Dizia que ela não saía para eventos, que era complicado, que ela não gostava dessas coisas, que estava com caxumba. Ih, aí tem coisa, disse o Jorge. Ou a mulher não gosta dessas coisas, ou está com caxumba. Porque, quando alguém dá duas desculpas diferentes para a mesma coisa, é porque nenhuma delas é verdade, não é verdade? É verdade. Aí tem coisa.
Tiveram uma ideia. Pediram para o seu Breno, o empregado mais velhinho da firma, que continuava trabalhando no setor de finanças apesar dos quase 90 anos e que estava de aniversário na próxima semana, requisitar especialmente para o Souza a presença de sua mulher no aniversário.
- Sabe como é, seu Souza, talvez seja o meu último aniversário aqui na firma, então quero que todos compareçam com suas famílias.
- Sim, sim...
- Sabe, é importante para mim conhecer a família de todos vocês, com quem convivo há tantos anos, até porque pode não ter outra oportunidade...
- Ok, ok, tudo bem.
O Souza chegou atrasado na festa: inclusive, com a demora pensaram que ele não viria. Mas ele veio sim, estrategicamente na hora que o Jorge estava fazendo um discurso bonito sobre o Seu Breno e as suas décadas de coleguismo na empresa. O Souza entrou de fininho, pra não chamar atenção. Com a mulher. Olhares de todos os cantos se fixaram no casal. Quando viu os dois, o Jorge até abreviou o discurso para receber o Souza.
- Grande Souza! Tudo certo? Essa deve ser a...
- Sim, sim, é ela.
E o Souza mal apresentou a mulher: disse duas palavras e deixou por isso. Como quem faz de má vontade. A esposa do Souza não era uma deusa, como se imaginava. Era bem mais ou menos. Alguns comentariam mais tarde que ela era feia, o que era um exagero, sem dúvidas. Só não era o espetáculo que todos imaginavam. Bom, ao menos a hipótese do Souza esconder a mulher para preservar sua beleza sobrenatural caiu por terra. A hipótese dos cinco braços também não se confirmou.
Mas, então, qual seria o motivo da relutância em trazer a mulher a público? O Plínio, o Cruz e o Jorge resolveram pressionar. Enquanto a mulher do Souza estava conversando com outras mulheres de outros colegas, os três foram puxar papo com ele:
- E a tua mulher, hein, Souza?
- Pois é.
- Pois é o quê?
- Sei lá. Vocês que perguntaram.
- Finalmente ela veio. Ó, se deu bem com o pessoal, tá conversando de boa. Socializou legal, não ficou tímida num canto, nem saiu descontrolada atirando brigadeiros nos convidados ou gritando em alemão. É uma boa mulher. Então por quê?
- Por quê o quê?
- Pra que isso? Essa relutância em trazê-la às festas?
- Impressão de vocês...
- Não força, Souza.
- Sei lá...
- Souza, não tente nos enrolar. É desrespeitoso. Abre o jogo.
Tanto insistiram, que o Souza ficou acuado. Não tinha mais como esconder.
- Tá bom, tá bom, eu falo! É que... é ridículo, mas é verdade.
- O quê?
- Vocês vão ver.
Sabe aquela brincadeira conjugal de interpretar papéis? Para atiçar o relacionamento? Sim, todos sabiam. Pra ficar mais fácil pro Souza se soltar, o Plínio disse que brincava com a mulher de homem-das-cavernas, mas quando ele se empolgava e a puxava pelos cabelos, a mulher lhe dava um tapa e virava de lado na cama. O Souza o interrompeu. Queria falar, o assunto era sério. Agora sentia que a hora da verdade devia ser essa mesmo, precisava dividir seu drama com alguém. Pois bem. Depois do casamento o Souza e a mulher ficaram com medo de que o matrimônio esfriasse as coisas, então resolveram atiçar a relação experimentando um jogo de papéis. Ela seria a moça do interior, ingênua, uma atriz que veio para a cidade grande em busca da fama. Ele, um magnata da televisão que apadrinharia ela, mediante favores especiais. Uma brincadeira bem picante. O Plínio vibrou:
- É isso aí, garotão!
- Não, espera, deixa eu terminar.
Fizeram a interpretação direitinho. Foram para um restaurante, fingiram que não se conheciam, ele chegou nela, ela contou a sua história de mocinha do interior em busca de sucesso, ele fez a proposta indecente e a levou para a sua casa. No caso, a casa dos dois, mas enfim. Chegaram lá, amaram-se, e então...
- Então o quê?
Então, depois do ato, cansados e com o sentimento de dever feito, ele olhou pra ela e ela olhou pra ele, e ele pensou: e agora? Sigo com a fantasia, ou ela para logo depois do sexo? Continuo fingindo que sou Jânus, o magnata da rede Ultrasat, e que ela é Dóroti, a menina inocente de Três Coroas que acaba de ser seduzida pelo seu poder sobre a mídia?
- Estávamos nesses papeis desde o início da noite. Quando é que se sabe que acaba? Não tem nenhum diretor pra dizer corta, entende? Quando é que eu sei que corta?
Estavam nesses papeis há cinco anos. Para ela, ele era Jânus. Para ele, ela era a inocente Dóroti. Quando Souza estavam longe dela ele podia ser o mesmo Souza de sempre, mas na presença um do outro eles se tratavam assim. O Souza evitava levar a mulher para sair junto com os amigos, e até mesmo com a família, para não causar constrangimentos.
- Tá, e você nunca pensou em parar? - questionou o Plínio.
- Pois é, mas parar do nada, depois de cinco anos?
Os outros concordaram. Depois de continuar tanto tempo com a brincadeira, encerrar do nada seria admitir que os dois gastaram meia década fazendo uma coisa totalmente idiota. E outra: talvez nem houvesse mais casamento depois da encenação. Talvez o casamento só funcionasse por causa da encenação. Acabada a brincadeira, seriam dois idiotas completamente desconhecidos um do outro.
- E eu nem sei mais o que ela faz da vida. Quando ela sai para trabalhar, ela diz que está indo para a gravação da novela. Mas no que ela trabalha realmente? Eu perdi toda a comunicação com a minha esposa de verdade. Eu nem sei como ela é, o que ela pensa, o que ela faz.
- E você? Diz o quê pra ela?
- Que eu trabalho com televisão. Disse que hoje era uma festa da produção do meu mais novo filme, um thriller policial que se passa dentro de uma empresa. A festa é num dos sets de filmagem. Viu? É ridículo!
- É. Quer dizer, não é, é só estranho, mas...
Mas nessa hora chega a mulher do Souza e se aproxima dele. Ele abre um sorriso galanteador, passa um braço em volta do ombro dela e diz, num tom de voz forçado:
- E aí, beibe? Se divertindo?
Ela fica imediatamente vermelha, e olha para baixo. Os colegas do Souza também ficam constrangidos. Souza não fala nada, mas faz uma cara para os outros de quem diz: "viram no que eu me meti?".
***
Enterro do seu Breno. Dia chuvoso. Todo mundo assistindo o caixão ser baixado na terra, com capas de chuva, bem quietos. O Plínio, o Cruz e o Jorge lado a lado. Então o Souza aparece do lado do Cruz, meio encolhido.
- E aí pessoal? Tudo bem?
- Souza! Tá encolhido assim por quê? Tá com frio?
- Não. Estou me escondendo da Dóroti. Quer dizer, da minha mulher. Não quero que ela me chame de Jânus na frente dos meus colegas. É embaraçoso demais.
- Então por que você trouxe ela de novo?
- Sei lá. Era tão importante para o velho esse negócio de família... me senti na obrigação.
O padre estava fazendo uma oração. Ficaram uns momentos quietos.
- Ainda está ruim com ela? - perguntou o Plínio.
- Ô. O problema nem é não saber mais quem é a pessoa com quem você dorme. Isso eu já me acostumei. O problema são as coisas mais práticas, como o dinheiro. Nos primeiros dias, eu ainda me divertia interpretando o magnata da indústria televisiva. É bom pro ego, sei lá. Aí eu agia como se fosse um milionário, mesmo: comprava joias, dava presentes caríssimos pra ela. Só que o negócio fugiu do controle. Ela tem uma impressão errada da minha renda: às vezes estamos no shopping e ela me pede para comprar roupas caríssimas, assim, por impulso. Eu nunca disse não. Quase todo o meu dinheiro vai para pagar esta farsa. Daqui a pouco vou ter que vender a casa. O que vou dizer pra ela?
- A sua mansão? Pombas, nós sempre discutíamos como você fazia pra pagar um casarão daqueles. Eu achava que você estava metido no narcotráfico, mas nunca comentei nada. - disse o Plínio. - Isso é insano. Tem que por um ponto final nisso.
Começaram a discutir soluções. O Cruz veio com uma ideia boa, que, após alguns pitacos dos outros, se tornou um plano tático. Seria assim: Jânus chegaria para a mulher e diria que está com problemas. A tevê da qual ele é dono está para falir.
- A Ultrasat? O conglomerado de comunicações mais poderoso do Pacífico Sul? Como?
- Sei lá. Inventa uma desculpa. Põe a culpa na internet.
Com o negócio falido, haveria uma contenção de gastos. De imediato, seriam cortados os supérfluos, como presentes e roupas. Aos poucos, a farsa iria se aproximar do mundo real.
- Genial, pessoal! É isso o que eu vou fazer! - exclamou, feliz, o Souza.
- E tem mais - disse o Jorge - a gente podia fazer o seguinte...
***
Mansão do Souza. Batem na porta. A mulher do Souza atende. É o Cruz.
- Bom dia. O seu marido está?
- Ele está no banho. Por favor entre. Qual é o seu nome?
- Sou Alberto Goldfrapp, do conglomerado midiático Satvision. Tenho negócios a tratar com Jânus.
A mulher do Souza olha o Cruz com uma cara surpresa. O Cruz senta-se no sofá da sala, com um porte elegante que ele normalmente não possui. Está usando um casaco de pele, um chapéu panamá e carrega um charuto na boca. O Cruz não fuma charuto, mas todos concordaram que o charuto era essencial para o papel.
- Ãhn... sobre o que seria, senhor... Goldtrapp?
- Goldfrapp. Trouxe uns documentos para o senhor Jânus assinar. É sobre a venda da rede Ultrasat.
A mulher senta-se no sofá, confusa. O Souza entra na sala, secando os cabelos - tinha tomado banho há pouco - e se depara com os dois. A mulher vira-se para ele.
- Querido, este homem quer comprar do Jânus, quer dizer, de você... algo sobre uma venda...
- Oh, querida - Souza finge estar abalado - não queria que você soubesse desse jeito. Sim, é terrível. A rede Ultrasat está falida.
- O quê?
- Falida. Completamente quebrada. É a internet. Sabe, esses jovens de hoje não assistem mais televisão. Como resultado, estou vendendo a rede para ser incorporada pela Satvision...
- A preço de banana, diga-se de passagem - diz o Cruz.
- Mas como isso é possível? - A mulher está completamente perdida.
- É a lógica de mercado, beibe: os maiores comem os menores. Devia ter vendido a rede quando ela ainda valia alguma coisa. Agora, para pagar as despesas do meu último thriller policial me vi obrigado a vender a empresa. Ah, no negócio ainda perdemos a nossa casa.
A mulher do Souza solta um "Oh!".
- Mas não se preocupe, beibe. Já consegui um novo emprego numa empresa, como contador. O salário não é bom, então teremos que fazer cortes de gastos. Mas acho que essa mudança é uma oportunidade de dar uma renovada nas nossas vidas, que tal?
***
Os colegas do Souza estavam muito orgulhosos do plano, que fora um sucesso. O Souza parecia bem mais disposto nos últimos dias. Disse que estava prestes a quitar todas as suas dívidas, e se sentia melhor de não ter que mentir sobre o seu emprego.
Passaram algumas semanas, e certo dia notaram que nem o Souza, nem o Cruz foram trabalhar. Estranharam. O Souza chegou várias horas depois, atrasado. O que houve?, perguntaram o Jorge e o Plínio. Vocês não vão acreditar, disse o Souza.
- Acordo hoje de manhã com barulho de movimento no meu quarto. É a minha mulher, fazendo as malas. Pergunto o que houve, e ela diz que vai embora. Que precisa correr atrás do sonho de ser atriz. "Que sonho?", eu perguntei. O sonho, oras! O sonho que agora eu, Jânus não era mais capaz de realizar. Aí eu enchi o saco. Disse chega, vamos parar com essa farsa, já não tem mais graça. Ela fez que não entendeu. "Que farsa?", ela perguntou, mas eu notei o desdém na voz. Ela disse que estava indo morar com Alberto Goldfrapp no Rio.
- O Cruz! - exclamaram os dois colegas.
- Exato. Ele é o novo tubarão da mídia e está muito mais apto a fazê-la feliz. E, antes de ir, ainda teve a coragem de me dizer que o nosso contrato acabou. A vagabunda!
- Não esquenta, cara - disse o Jorge - ela não vale nada. O Cruz também. Eu sabia que ele não prestava. E mais, agora tenho certeza que era ele quem roubava os atilhos da minha mesa, o desgraçado.
O Plínio disse que não era para o Souza se preocupar. Sairiam os três, naquela noite, para catar mulher. O Souza iria ver, disse o Plínio, que o mundo tá cheio de mulher louca para ficar com ele. Iriam apresentá-lo como um Don Juan. Don Juan não!, protestou o Souza. Chega de fingir. Seria o Souza, corno, falido e contador de uma empresa de médio porte.
Tudo bem. Tudo iria ficar bem. Depois de um tempo o Souza começou a rir. E o riso se transformou numa gargalhada.
- Quando a gente estava interpretando papéis, eu às vezes brincava que nós iríamos mudar para o Rio, e a minha mulher dizia que a única condição para isso é que comprássemos um apartamento de um andar inteiro no Leblon. O Cruz não sabe no que se meteu.
E o Souza continuou gargalhando como um maníaco. Os amigos olharam um para o outro. É, talvez fosse preciso acabar com as farsas. Mas talvez o Souza precisasse forçar uma personalidade menos esquisitona se quisesse arranjar outra mulher. Só um pouquinho, pelo menos.
terça-feira, 26 de abril de 2011
Páscoa atrasada
A Páscoa tem símbolos muito fortes, os quais todos nós aprendemos nas aulinhas de religião do colégio. De cabeça, agora, eu me lembro daquela vela grande, que tinha um nome especial mas eu não me recordo qual agora (círio pascal?), o coelho e o ovo. Eles, apesar de não estarem presentes na história de Cristo, têm um significado relacionado à ressurreição: o ovo, obviamente, representa a vida, e o coelho também, por sua enorme capacidade de reprodução. Tudo muito subjetivo, muito semiológico. O problema é quando se interpreta esses símbolos de forma literal. Daí, surgem aberrações como o Coelhinho da Páscoa.
Peguei-me pensando no último domingo sobre o que é o Coelhinho da Páscoa. Ele une o ovo e o coelho, os dois maiores símbolos pascais (pascais?), numa representação literal, uma entidade física da Páscoa, mas que não faz sentido nenhum. O que se sabe sobre o Coelhinho da Páscoa é que ele é um coelho, sim, e aparece na Páscoa para esconder ninhos com ovos de chocolate nas residências onde há crianças. Só que coelho não bota ovo. Muito menos de chocolate. Na tentativa de criar um mascote para a data (acho que Jesus não era o suficiente), eles uniram dois símbolos que, juntos, não têm nenhuma coerência. Me pergunto até hoje como eu, que fui uma criança letrada e inteligente, pude cair por tanto tempo numa farsa tão sem sentido.
Acho que os marqueteiros que inventaram o Coelhinho da Páscoa miraram-se no Papai Noel, representante do Natal, para criar o garoto-propaganda da Páscoa. Só que, enquanto o Papai Noel é um case de sucesso, o Coelhinho da Páscoa é uma falha de planejamento completa. É só perguntar para as crianças qual é o seu preferido. É claro que é o Papai Noel. O Papai Noel é muito mais coerente: ele tem uma residência, tem um emprego. Seu meio de locomoção, apesar de mal-explicado, é ao menos mencionado. Por fim, ele é humano. O Coelhinho da Páscoa nem um coelhinho é. É um ser antropomorfo, nem homem nem coelho. Já começa por aí. Nunca ficou clara a sua natureza, e nunca tentaram esclarecê-la. Mesmo um observador desatento não deixa de notar que não se trata de um coelho comum, pequeno, quadrúpede, e sim de um ser bípede, do tamanho de um homem, só que com cara de coelho. Isso abre margem para questionamentos mil: ele é o único de sua raça? Porque não se vê outros coelhos antropomorfizados por aí? O que ele faz no resto do ano? Se ele é meio-humano, meio-coelho, ele vive numa casa ou numa toca? E afinal, se ele é meio-humano, quer dizer que ele tem uma vida como a nossa, onde ele trabalha, paga as contas, etc?
O Papai Noel nós sabemos, ele trabalha no Pólo Norte o ano todo fazendo os brinquedos, possivelmente patrocinado por megacorporações da indústria do entretenimento infantil, que veem no velhinho um meio de divulgar seus produtos e inclusive o autorizam a usar suas patentes. Todo mundo sabe disso. O Coelhinho da Páscoa nós não sabemos nem de onde ele tira os ovos. É ele quem os bota? Qual a explicação biológica para um coelho botar ovos de chocolate? E, se ele bota ovos, não deveria ser uma coelhinha? A máscara cai frente à primeira contestação. Cuidado, Coelhinho. As crianças de hoje estão ligeiras. Elas não se enganam com a sua farsa.
Isso é um exemplo para o que não fazer ao criar um gimmick: não se deve fazer um pastiche sem critérios dos atributos ao qual se quer associar a marca. Neste caso, tentaram por todos os símbolos (bota o ovo! Bota o coelho!) num personagem só, e o resultado é um produto exagerado, não crível e que não gera empatia com o público. O Coelhinho da Páscoa é um erro. O Coelhinho da Páscoa é um insulto à capacidade crítica das crianças. O Coelhinho da Páscoa precisa de uma remodelagem urgente, sob o risco de cair no ridículo e estar fadado ao esquecimento.
***
Ou então eu estou errado e esse texto é só para extravasar a decepção de não ter ganho nenhum ovo de chocolate domingo passado. Pode ser.
Peguei-me pensando no último domingo sobre o que é o Coelhinho da Páscoa. Ele une o ovo e o coelho, os dois maiores símbolos pascais (pascais?), numa representação literal, uma entidade física da Páscoa, mas que não faz sentido nenhum. O que se sabe sobre o Coelhinho da Páscoa é que ele é um coelho, sim, e aparece na Páscoa para esconder ninhos com ovos de chocolate nas residências onde há crianças. Só que coelho não bota ovo. Muito menos de chocolate. Na tentativa de criar um mascote para a data (acho que Jesus não era o suficiente), eles uniram dois símbolos que, juntos, não têm nenhuma coerência. Me pergunto até hoje como eu, que fui uma criança letrada e inteligente, pude cair por tanto tempo numa farsa tão sem sentido.
Acho que os marqueteiros que inventaram o Coelhinho da Páscoa miraram-se no Papai Noel, representante do Natal, para criar o garoto-propaganda da Páscoa. Só que, enquanto o Papai Noel é um case de sucesso, o Coelhinho da Páscoa é uma falha de planejamento completa. É só perguntar para as crianças qual é o seu preferido. É claro que é o Papai Noel. O Papai Noel é muito mais coerente: ele tem uma residência, tem um emprego. Seu meio de locomoção, apesar de mal-explicado, é ao menos mencionado. Por fim, ele é humano. O Coelhinho da Páscoa nem um coelhinho é. É um ser antropomorfo, nem homem nem coelho. Já começa por aí. Nunca ficou clara a sua natureza, e nunca tentaram esclarecê-la. Mesmo um observador desatento não deixa de notar que não se trata de um coelho comum, pequeno, quadrúpede, e sim de um ser bípede, do tamanho de um homem, só que com cara de coelho. Isso abre margem para questionamentos mil: ele é o único de sua raça? Porque não se vê outros coelhos antropomorfizados por aí? O que ele faz no resto do ano? Se ele é meio-humano, meio-coelho, ele vive numa casa ou numa toca? E afinal, se ele é meio-humano, quer dizer que ele tem uma vida como a nossa, onde ele trabalha, paga as contas, etc?
O Papai Noel nós sabemos, ele trabalha no Pólo Norte o ano todo fazendo os brinquedos, possivelmente patrocinado por megacorporações da indústria do entretenimento infantil, que veem no velhinho um meio de divulgar seus produtos e inclusive o autorizam a usar suas patentes. Todo mundo sabe disso. O Coelhinho da Páscoa nós não sabemos nem de onde ele tira os ovos. É ele quem os bota? Qual a explicação biológica para um coelho botar ovos de chocolate? E, se ele bota ovos, não deveria ser uma coelhinha? A máscara cai frente à primeira contestação. Cuidado, Coelhinho. As crianças de hoje estão ligeiras. Elas não se enganam com a sua farsa.
Isso é um exemplo para o que não fazer ao criar um gimmick: não se deve fazer um pastiche sem critérios dos atributos ao qual se quer associar a marca. Neste caso, tentaram por todos os símbolos (bota o ovo! Bota o coelho!) num personagem só, e o resultado é um produto exagerado, não crível e que não gera empatia com o público. O Coelhinho da Páscoa é um erro. O Coelhinho da Páscoa é um insulto à capacidade crítica das crianças. O Coelhinho da Páscoa precisa de uma remodelagem urgente, sob o risco de cair no ridículo e estar fadado ao esquecimento.
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Ou então eu estou errado e esse texto é só para extravasar a decepção de não ter ganho nenhum ovo de chocolate domingo passado. Pode ser.
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