quarta-feira, 9 de março de 2011

A liberdade relativa

A História se move de modo lento, mas as coisas importantes acontecem muito rápido. Olhem o Muro de Berlim: levou uma noite para se erguer e uma noite para cair. Os bolcheviques levaram dez dias para abalar o mundo, como nos conta John Reed. E a Revolução Jasmim na Tunísia, ainda há pouco, derrubou em algumas semanas um regime de décadas de duração.


É interessante como estes pontos de mudança ocorrem depois de um longo período de mesmisse. É como se o povo de países como a Líbia, Egito e Tunísia estivessem enchendo uma barrinha de insatisfação, que ao se completar permitiria passar para o próximo nível. Alcançado o ponto máximo, é hora de seguir para a próxima fase. Só que ninguém sabe qual é. Dificilmente será uma democracia, no nosso conceito.

Walter Laqueur, um historiador sovietólogo, escreveu no seu livro “Fim de um Sonho” que o principal motivo para o povo russo ter se mantido apático durante a ditadura stalinista foi o seu conformismo herdado. Sim, pois antes do regime soviético os russo tiveram anos de monarquia czarista, e portanto não eram livres há gerações, se é que um dia o foram. Eles estavam acostumados a esperar as coisas melhorarem de situação, conscientes de que o poder para isso não estava com eles mas sim na boa vontade de alguém mais poderoso. Penso que no mundo árabe deve ser parecido: todos os países, ou ao menos a sua maioria, migraram de monarquias antigas para um longo período de ditaduras, que são também meio que monarquias, pois o Kadafi planeja botar o filho no poder e o Mubarak até mês passado pensava o mesmo. Eles não conhecem a liberdade. Para quem não é livre, é filho de pais não-livres e neto de gerações subordinadas, liberdade é artigo de luxo. É dispensável, até.

Estranho este conceito para nós, ocidentais. Liberdade não é a prioridade de todo mundo. Ou, ao menos, a liberdade democrática representada por eleições livres. Estas revoluções nascidas no mundo árabe não têm como motivo a luta por eleições livres, e sim uma mudança na conduta do governo. Se antes das revoltas pegarem fogo o Mubarak saísse para a sacada e anunciasse reformas profundas na economia e cortes na corrupção, seria capaz de os egípcios o deixarem mais trinta anos no poder. Não, não. O motivo dessas lutas é que o pão está caro, e não há empregos para pagar o pão. Uma situação diferente da Líbia, que tinha um desempenho decente comparado ao resto da região, mas ali ninguém sabe direito o que está acontecendo.

Eles não querem, necessariamente, uma democracia representativa. Se isso vier, é lucro. Tudo o que eles querem, aparentemente, é alguém comprometido a tirá-los do buraco, ditador ou não. Nos países em que não há oposição organizada, nem partidos políticos nem nada do gênero, chuto dois possíveis destinos: um, uma junta militar vai liderar um processo de transição, como ocorre no Egito, e essa transição vai durar o tempo que eles quiserem (o que é irônico, porque foi mais ou menos assim que Mubarak chegou ao poder), ou dois, vai subir ao poder o único grupo que sempre está organizado mesmo com a ausência de partidos políticos, que é o religioso. O que normalmente não significa liberdade.

De qualquer jeito, o negócio vai se assentar, durante décadas, até que a nova ditadura não sirva mais, e o povo, num rompante orgiástico, o coloque pra fora em duas semanas. Como sempre acontece.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cantigas I

Era uma casa muito engraçada. Não tinha teto, não tinha nada. Engraçado, pensou o João. Casa sem teto, onde já se viu? Até deu uma olhada no endereço: Rua dos Bobos, nº 0. Era ali mesmo. Aquela era a casa que comprara. Mas não podia ser. Resolveu telefonar para o Osmar. O Osmar era o corretor de imóveis que havia lhe indicado a compra. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Atendeu. Alô, Seu Osmar? João, como vai? Olá João! Curtindo a nova casa? Muito engraçada essa casa, seu Osmar. Passei para dar uma olhada e vi que a casa não tinha teto, não tinha nada. É claro que não tem nada, respondeu o seu Osmar, como se estivesse falando com uma criança. A compra foi de um imóvel não-mobiliado. Não é isso, seu Osmar. A casa não tem teto. Onde já se viu casa sem teto?
Opa. Seu Osmar estranhou. Você já entrou na casa? Não, nem eu nem ninguém pode entrar nela não, porque na casa não tinha chão. É só um buraco. Um grande buraco, seu Osmar. Minto, tem uma rede jogada no meu terreno. Estão usando a minha casa como depósito de lixo! Seu Osmar pensou rápido. Ora, João, veja pelo lado positivo. Uma casa sem chão, um ar rústico, não era o que você queria? E sem teto, dá para dormir sob o céu estrelado, na terra batida, ainda, caso você não queira mobiliá-la. João respondeu que dormir no chão de terra batida não era a sua ideia de rústico. Preferia até dormir na rede jogada no chão, mas nem isso ele podia, dormir na rede, sabe por quê, seu Osmar? Porque na casa não tinha parede. Não tinha parede para pendurar sua rede, suas pinturas nem sua coleção de botões que havia mandado emoldurar especialmente para a casa nova. Uma casa com paredes era o mínimo que ele exigia. Calma, seu João. Calma nada, seu Osmar! A situação está ficando insustentável, seu Osmar. Ele, João, não podia fazer pipi, porque penico não tinha ali. Penico, seu Osmar! Estava disposto a abdicar dos três banheiros que haviam lhe prometido na planta baixa por um reles penico, mas nem isso havia ali. Veio à nova casa pronto para inaugurar o banheiro e agora não estava mais conseguindo se segurar.

Primeiro, seu João, não desdenhe da casa, afinal, ela foi feita com muito esmero. Segundo, em nenhum lugar estava escrito que a casa tinha três banheiros. E depois, muitas pessoas matariam para ter uma casa como esta. Pense nas vantagens. A casa não tem paredes, mas por isso mesmo é superventilada e possui iluminação natural. E tem mais: a ausência de paredes proporciona um contato sem igual com os vizinhos. Maravilha, respondeu João, só que eu não quero ter esse contato com os meus vizinhos quando eu estiver no banheiro, que aliás inexiste, como a minha bexiga faz questão de lembrar.

Seu Osmar disse que não podia fazer nada. João já havia comprado a casa e assinado os termos sem olhar. João ficou fulo. Pegou um pedaço de pau e atirou no gato-to. Atirou para matar. Mas o gato-to não morreu. “Gato-to!”, admirou-se Dona Chica-ca, com o berro do gato. O que foi isso, perguntou seu Osmar, do outro lado da linha. É o berro do Gato-to, o gato da Chica-ca, minha vizinha. Como assim, Gato-to, Chica-ca? É que ela é de uma família de gagos, explicou João. Os pais a registraram como “Chica-ca” porque não conseguiam pronunciar o nome corretamente, e ela não consegue chamar o gato dela de outro jeito, então ficou “Gato-to” mesmo. Isso não faz nenhum sentido, disse o seu Osmar. Pois é, veja só a vizinhança que o senhor me arranjou, respondeu João.

Dona Chica-ca foi tirar satisfações com João. Seu João-ão, começou Chica-cá, mas João a interrompeu, disse que estava no meio de uma ligação importante e que sabia que o que fez foi errado, mas discutiriam isso depois. Estava cuidando da compra de sua casa. Aliás, muito engraçada-da, a sua casa-sa, disse Dona Chica-ca. Não tinha teto-to, não tinha nada-da. Gostei-tei. Meio rústico-co. Ok, disse João, apenas não fale “rústico” novamente, o cacófato é horrível. Seu Osmar, ouvindo tudo pelo telefone, sugeriu que João negociasse o imóvel com Dona Chica-ca, aí todos sairiam felizes. Faz sentido-do, Dona Chica-ca admirou-se-se. João deu uma olhada na fachada da casa de Dona Chica-ca e gostou do que viu. Os dois fecharam o negócio, um ficou com a casa do outro e no final o pau no Gato-to foi perdoado, até porque ele não morreu-rreu. Que bom-bom, disse João, se atrapalhando. Quando terminou de assinar os termos foi que João se lembrou de perguntar: tem banheiro na sua casa? Não, tem só penico-co. Aff.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A incorporação do Rei

     Nos anos oitenta, o Banco Central promovia olimpíadas entre as filiais de diferentes Estados. Sei disso porque meu pai me contou, orgulhoso, que fazia parte da seleção de futebol da filial gaúcha. Além de futebol, havia outros esportes, como vôlei e xadrez. Meu pai viajou para São Paulo para participar das finais dos jogos, junto com outros desportistas da área contábil. Entre eles, estava um enxadrista talentoso. Sabia jogar como ninguém, realmente imergia no jogo.
  
     Meu pai usou esse cara como exemplo para provar uma teoria: a de que o Ronaldinho amarelara na final da Copa de 98.

     - Impossível! Tu achas que um profissional como ele iria amarelar? - interpelou a minha mãe. - Esses jogadores estão acostumados com a pressão!

     Mas esse meu colega enxadrista amarelara, disse meu pai. Era talentoso, quase profissional, e amarelara. O fato de estar acostumado com o jogo só provou ser uma desvantagem, no final. Durante a viagem para São Paulo, este enxadrista começou a passar mal. Seus colegas ficaram preocupados:

     - O que foi, cara? Você está legal?

     O enxadrista estava debilitado, nervoso, desamparado. Vomitara o jantar. No final, admitiu: estava estressado. Estava preocupado demais em perder. E disse uma frase que até hoje meu pai se lembra:

     - Eu incorporei o Rei.

     Sim, pois, quando o enxadrista entrava numa partida, não era o Rei quem estava no tabuleiro, mas ele mesmo. Olhava para o tabuleiro e via, ao invés da pecinha do Rei, a sua própria miniatura, tremendo ante o avanço das peças inimigas. O Rei era o enxadrista e o enxadrista era o Rei. Sentia como se ele próprio caísse caso o Rei fosse derrubado. A mera imaginação de perder uma partida lhe dava calafrios. Talvez fosse uma espécie de tática, jogar o jogo como se sua vida dependesse disso, mas era algo que havia fugido do controle. Ele amarelara.

     - Tá, e se isso aconteceu com o meu colega, também pode ter acontecido com o Ronaldinho, hein? Hein?

     Tá, pai. Talvez.

***

      No filme Cisne Negro, em cartaz nos cinemas, a bailarina vivida por Natalie Portman incorpora o personagem homônimo do filme para executar a peça "O Lago dos Cisnes". Para dançar como a personagem Cisne Negro, ela passa a se comportar agressiva e lascivamente, ter alucinações de virar um pássaro e outras coisas desagradáveis. O filme foi um sucesso. Penso que algo poderia ser feito na mesma linha, um thriller psicológico com o xadrez no lugar do balé. "O Rei Negro". Ou "O Rei Branco", dependendo do lado do jogador. Como o colega de meu pai, o personagem principal seria um enxadrista paranoico que, ao se preparar para o jogo de sua vida, acaba incorporando características do Rei. Ele começa a ter alucinações com o chão de sua cozinha, quadriculado: passa a só conseguir andar um quadrado por vez. Abre o armário e enxerga todas as suas roupas pretas. Passa a mão pelos cabelos e sente uma cruz crescendo em seu couro cabeludo, mas, quando olha no espelho, ela não está lá.

     O filme vai num crescendo de tensão. O enxadrista quase é pego ao tentar matar pessoas vestidas com roupas brancas em posições adjacentes à sua na fila do banco. Fugindo da polícia, tenta se proteger atrás de um bispo, que não entende nada, mas fica com medo e resolve dar abrigo ao fugitivo. O bispo veste branco. Ele mata o bispo. Depois acorda no chão da cozinha e percebe que foi tudo alucinação.

    No dia da partida, ele foge do hospital onde a sua família o internou, com dificuldade, pois no estado em que está só consegue andar uma posição por vez. Finalmente chega ao local onde ocorrerá a batalha final. O enxadrista adversário já está lá. Ele se aproxima do tabuleiro, mas não consegue chegar perto. Há alguma força interferindo no movimento. Ele olha para o outro enxadrista, e percebe que este também incorporou o Rei. Os dois não conseguem se aproximar, pois dois Reis não podem ocupar espaços adjacentes. A partida é cancelada: a burocracia do xadrez vence o instinto autodestrutivo de competição.

***

     Ou, pensando bem, talvez seja melhor fazer só thrillers sobre balé, mesmo.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A minha amada

     Sinto saudades da minha amada. Não ouço nenhum som seu há quase dois meses, agora. Adorava quando ela cantava, às vezes só pra mim. Ela desafinava um pouco, mas eu não ligava. Amar é quando os defeitos não são defeitos, são apenas detalhes. E ser desafinada era um detalhe. Agora, nem isso mais. A melodia acabou. Nada.

     Sobram as reminiscências. Nossa relação começou quando eu tinha treze anos, quase catorze. Se eu sabia que iria ser ela, desde que a vi? Não. Seria mentira se dissesse que foi amor à primeira vista. Estava entre tantas outras, experimentei várias. Não tenho medo de dizer: várias passaram pela minha mão antes dela. Ela sabe. Ela entende, nunca foi de me cobrar por isso. Sabe que as que vieram antes foram apenas testes. Eu estava atrás da certa. Com ela foi real. Por que ela, e não alguma das outras? Certamente não por algum amor platônico: o amor se desenvolveu mais tarde. Na hora em que nos encontramos pela primeira vez, achei-a simpática, no máximo. Só mais tarde fomos realmente nos encontrar.

***

     Os primeiros contatos foram atrapalhados. Nem eu nem ela sabíamos o que estávamos fazendo. Passava a mão pelo seu braço, subia até o seu pescoço, roçava a parte de trás de sua cabeça. Tocava-a com a ponta dos dedos, desajeitadamente. Ela soltava gritinhos desafinados, querendo dizer que era por aí, mas eu não estava fazendo no lugar certo. Tentava de novo, mais pra cá, mais pra cá. Isso. Aos poucos fui pegando o jeito. Ninguém nasce mestre, ainda mais nessas coisas. Não sou exceção, mas acho que evoluí rápido. Aprendi quase tudo sozinho. Ou quase. Hoje em dia a internet dá um bocado de dicas, está tudo lá, um grande manual da perversão. Aos poucos já sabia como fazê-la gemer do jeito que eu queria. E ela o fazia, bem alto.

     Os vizinhos ouviam, é claro, mas não tinham coragem de reclamar. Mas eu via nos olhos deles, quando nos cruzávamos nos corredores do prédio, que eles se incomodavam. Era ciúmes, eu sabia. Ciúmes das nossas demonstrações sonoras de paixão. Uma vez a minha vizinha de baixo veio reclamar pessoalmente. Sem nem ruborizar, disse que seu escritório era embaixo do meu quarto, onde eu e meu amor nos encontrávamos todas as noites. Pior: quem recebeu as reclamações foi a minha mãe, que depois me passou, meio sem graça, a mensagem da vizinha. Não ligávamos: continuávamos com nossos encontros ruidosos.

***

     Nunca fui um cavalheiro no nosso relacionamento: se fui alguma coisa, era bem o oposto. Tinha dias que eu chegava da escola louco para surrá-la. E o fazia, sem compaixão nem piedade. Ela nunca reclamou, um dia sequer, mesmo depois de uma semana de surras diárias. Não me arrependo: de fato, desconfio que ela gosta. Ela gosta de ser surrada, de ser pega com força, de que eu arranhe nela. Com o tempo minha pegada foi ficando cada vez mais forte, e ela ali, aguentando e gemendo, gemendo e aguentando, mas gostando, isso sim.

     Nós nos bastávamos, certamente, mas eu sempre quis mais. Queria experimentar. Ela sabia qual era a minha vontade, sempre soube: fazer uma experiência grupal. Quando finalmente achei pessoas com quem poderia rolar uma experiência legal, lá estava ela, berrando e gemendo como sempre.

     Fizemos e refizemos a experiência várias vezes, quase todo mês nos encontrávamos com nossa turma de depravados. Esses encontros não podiam ser na casa de ninguém, então pagávamos um lugar e mandávamos ver. Entretanto, o grupo tinha ideias mais ambiciosas. Não, não, aquilo não era o suficiente: era preciso mais. Era preciso fazer em público. Havia lugares para isso, lugares onde as pessoas iam para ver performances grupais como as nossas, só que públicas. Não vou negar, quando foi apresentada a ideia, fui seu mais ferrenho apoiador. Talvez de todos lá eu fosse o mais doente. Já ela, eu não sei: nunca se manifestou sobre as minhas decisões. Quando eu dizia que queria fazer tal coisa, ela simplesmente ia, sem questionar. Na verdade, creio que é por um medo crescente de ser trocada. Ela sabe que não é a melhor, e que eu poderia achar uma substituta superior em todos os quesitos. Ela nunca me disse, mas acho que tem medo. Por isso talvez não tenha se manifestado em uma decisão de tamanha magnitude.

***

     O show estava marcado, haveria até palco para a nossa exibição, mas ela vacilou. Não se garantiria ali, na frente de todos. Eu a amava, mas ela não era comparável às outras, iria passar vergonha. O pior é que, por mais que eu gostasse dela, por mais que eu a amasse profundamente, eu sabia que era verdade. Ela não era realmente boa. Naquele dia, subi ao palco com uma substituta, empréstimo de um amigo meu. Ele não se importou: diferente da maioria dos caras, não parecia muito apegado à sua companheira; inclusive queria se desfazer da coitada. Tentou com que eu ficasse com ela. Houve até dinheiro envolvido. Seiscentos contos, e a dita cuja era minha.
     Olhei para a minha pretinha: pude sentir a sua tensão, era o seu maior pesadelo. Não troquei-a. E foi legítimo: apesar de o empréstimo de meu amigo ter seu valor, a substituta não tinha qualidades que a minha Pretinha possuía. Ela não era tão boa de agarrar, e, ainda por cima, gemia estranho. Passei a oferta. Não sei o que aconteceu com a outra: deve estar encalhada até hoje.

     Tal experiência ensinou-me que a minha pretinha, que eu esnobava tanto, que eu falava tão mal, tinha sim seu valor. Com nós dois mais confiantes, achei que seria uma boa fazermos uma nova tentativa. Subimos ao palco os dois juntos, e dessa vez fiz tudo com ela, e ela se desempenhou muito bem, por sinal. Não havia nada a temer. Tá bom que foi meio estranho, tanto para nós quanto para o público. Talvez o nosso desempenho como grupo, apesar de ser muito legal para nós, não seja muito agradável de se assistir. Ainda assim, a culpa não foi dela.
***
     E assim continuamos nosso casamento, até que aconteceu uma tragédia: ela emudeceu. Não emite mais som. Tentei descobrir o problema, mas foi inconclusivo. Diagnóstico dos especialistas: transformador da caixa queimada, necessita conserto. Ufa, pelo menos não foi nada com ela. Mas agora é isso: estou há dois meses sem ouvir o som da minha guitarra. Meus dedos estão sedentos por tocá-la de novo. Não que eu esteja num período de ensaios com o meu grupo, mas eu gostaria de passar meus dedos por suas cordas e ouvir o seu som mais uma vez, depois de tanto tempo.
     No desespero, dá para pedir a substituta do meu amigo. Não será traição, é só necessidade física. Ela compreenderá.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Resoluções

     Eu nunca fiz resoluções de Ano-Novo. Sim, este post trata de resoluções, e é quase ano novo, mas não são resoluções de Ano-Novo: só coincidiram de serem feitas em Dezembro. Ainda assim, o fato de ser Ano-Novo pouco ou nada tem a ver com as minhas resoluções de Ano-Novo, digo, com as minhas resoluções. Na real, é uma só resolução. Feito esse esclarecimento, vamos a ela:

     A minha resolução é fazer uma faxina na minha vida criativa. Cortar o que atrapalha. 2010 foi um ano disperso. Sabe quando você chega em casa, e tem a vontade de fazer várias coisas, e na confusão de escolher o que se faz primeiro, acaba não fazendo nada porque, de tanto pensar em fazer tanta coisa, tudo o que se quer é desopilar um pouco? Só um pouquinho, sabe? Só um tempo fora de si mesmo, de ficar com a cabeça trabalhando, trabalhando, sem conseguir expremer nada. Tem dias que eu chego em casa me sentindo uma laranja com pouco suco, da qual tentaram extrair uma jarra inteira.

     Pois é, eu não fiz muito coisa nesse ano. Mas, em compensação, eu quase fiz muita coisa. Elas poderiam ter acontecido, a não ser pelo fato de que simplesmente não aconteceram.

     Em busca do motivo desse nadismo crônico descobri que o problema foi justamente a vontade de fazer várias coisas novas. Queria tentar me aventurar por estilos diferentes, métodos de criação que não havia tentado. Ficava atento por novas referências. Precisava de um repertório renovado porque... porque precisava, oras! Pedra que rola não cria limo.

     Essa vontade de inovar, descobri eu, é extremamente prejudicial. Exemplo: quem acompanha este blog sentiu a gutural diminuição no ritmo de postagens em comparação ao último ano. A verdade é que eu nunca parei de escrever. Nunca, antes de 2010, comecei tantos textos, e nunca deixei tantos textos incompletos. São pedaços, retalhos, alguns sem pé nem cabeça, alguns faltou a cabeça, alguns faltou o pé... esses quase foram publicados mas, mancando, tropeçaram. Falta de foco. Tantas idéias, mas não havia tempo para desenvolvê-las! Precisava produzir mais, mas... o quê? Em busca do novo, acabei não produzindo nada.

     Algumas pessoas, no Ano-Novo, fazem promessas de cortar gorduras. Eu corto referências. Agora, só o básico. Sem inventar moda. Já chega de provar outras comidas e sair com um gosto ruim na boca. Tentei expandir meu universo para áreas nunca dantes navegadas, me forçar a fazer música, escrever, roteirizar coisas fora da minha zona de conforto, mas o resultado foi pífio. Não que sair da zona de conforto seja ruim, pelo contrário: é um exercício necessário à sobrevivência de qualquer artista. Mas isso tem que ser feito do jeito certo. Não adianta eu querer de cara sair criando, sei lá, uma MPB, se eu não me dispus a saber como ela funciona, se eu não me familiarizei com ela antes. Senão o máximo que farei é uma cópia malfeita. Descobri uma palavra: técnica. A técnica é o meio pelo qual se canaliza a expressão. Sem mestrar a técnica, corre-se o risco de perder toda a autenticidade quando o que se buscava era justamente novas linguagens para o autêntico.

Mas o que foi feito de tão diferente, que o leitor não viu? Pois é, nada! Eu não fiz nada, nem de igual nem de diferente. Faltou produzir. Faltou gerar material. Essa saída da zona de conforto foi tão... desconfortável, que a briga por gerar algo fora dos meus padrões de criação regulares era tão desgastante que, quando vinha alguma idéia nos novos moldes, ela era fraca, não valia o esforço de ser colocada no papel. O suco que saía era amargo demais para ser degustado. Então eu não botava nada no papel. Por isso que, nesse fim de ano, resolvi cortar as novas influências que não me levaram a lugar nenhum. Descobri que com menos se faz mais. Agora é back to basics. Hora de me reencontrar, criativamente falando.

O texto ficou confuso. Leiam tudo isso aí de novo que deve fazer mais sentido. Eu não vou reescrever.

***

     Isso me remete à minha querida banda, a (até alguns meses atrás) 5 a Seco. 2010 era para ser o ano da 5 a Seco: com o novo estúdio próprio, os ensaios iriam ser mais numerosos que nunca. O que não era difícil, pois eles nunca foram numerosos. Ao invés disso, esse se revelou um ano de perdas para o grupo: perdemos um membro, que foi para a Califórnia e só volta Deus sabe quando, e perdemos metade do nosso nome. Sim, pois há, acreditem, uma outra 5 a Seco no Rio de Janeiro. Exatamente assim: 5 a Seco. Quais são as chances? Eles chegaram primeiro e, o fato que mais dói, eles são muito, muito, muito bons. Depois de alguma hesitação (foi sugerido mudar para “5 à Seco”, com um acento diferencial), o nome foi amputado, para a decepção de tantos que achavam graça nas piadinhas de cunho sexual feitas a ele. Agora é só 5. O numeral. Era isso ou mudar totalmente de nome.

     O fato é que, 5 a Seco ou só 5, eu amo a minha banda. Nós temos três músicas prontas, umas quatro em trabalho e cerca de 49 jam-sessions com trinta minutos de duração cada que nunca foram aproveitadas. Ou seja, a média de produção de qualquer banda com dois anos. As pessoas olham torto para as nossas (pouquíssimas) apresentações. Elas não entendem a arte, obviamente. Tivemos que fazer alterações em O Velho Flautista, uma balada-épica de inspiração claramente Tolkienana, com um elegante dedilhado de violão clássico costurando os vocais poéticos da música, uma ode a um velho bardo que, sem ter mais o seu amor, transforma seu sentimento em uma linda canção que atrai o povoado ao seu redor. Haveria um segundo movimento, uma mudança de tempo para um ska pegado, com uma bateria a la Rodrigo Barba na era pré-Bloco do Eu Sozinho, que foi cortado devido a apelo popular. Dos próprios membros da banda. Eu achava tão legal. Acho que eles também não entendem. O inimigo vem de dentro, pelo visto.

     Pois bem, o ponto é que eu havia perdido esse toque de criar as coisas que me agradem. Acabava pensando se aquilo que eu fazia era bom ou não, com base na interpretação de terceiros. E acabei esquecendo do princípio número 1 da arte, a meu ver, que é o que diz que ela nasce da expressão e do ponto de vista individual do artista. O primeiro passo para a boa arte é ser considerada boa por seu realizador, senão ela será fraca, ruim, não terá apoio do seu próprio progenitor. Não adianta eu criar um repertório que não me pertence. Se eu, o artista, não me sentir conectado com a minha produção, como eu vou querer que alguma outra pessoa o faça?

     Então, de volta à minha banda: o que me faz gostar tanto dela é que criamos músicas para nós mesmos, e, se outras pessoas não a apreciarem, tudo bem. Dentro dela eu pude me manter autoral, mesmo no meu ano menos autoral de todos. Quero começar 2011 fazendo coisas que eu gosto, lendo coisas que eu quero ler, ouvindo coisas que eu ouço por prazer. Tocando músicas que só eu e o meu grupo entendemos. E recomendo que todo mundo faça isso, procure um repertório próprio, que possa chamar de seu. Mesmo que seja considerado tosco pra caramba pelos outros. É isso o que cria um diferencial criativo.

    Feliz Ano-Novo a todos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A gravata amarela

     - Bom dia, seu Marcílio! Entre!

     - Bom dia, seu Juarez! A que devo a honra de ser chamado para a sua sala? É algo de bom ou ruim?

     - Que nada, seu Marcílio. Não precisa ficar preocupado. Você é o melhor funcionário da empresa. Suas vendas são maiores que a de todos os outros vendedores. Puxa vida, mês passado seu desempenho foi melhor que o do Gabardo e o do Pacheco, juntos.

     - Mas, cá entre nós, uma toupera vende mais que o seu Pacheco.

     - Rarará, é verdade. Enfim, piadas ofensivas à parte, você é o nosso funcionário modelo. Pontual. Eficiente. Sempre disponível.

     - Sim.

     - Mas... tem uma coisa, uma coisinha só, que eu gostaria que o senhor mudasse.

     - Sim?

     - É a sua gravata.

     - A minha gravata?

     - É.

     - O que tem a minha gravata?

     - Ela é amarela.

     - E...?

     - Não é profissional. É berrante demais. Eu vejo primeiro a sua gravata e depois você. Eu vejo um clarão amarelo e tenho que cobrir os olhos e perguntar: "quem está aí?", sabe? E você sempre usa essa gravata. Nada contra, até acho bonita para outras ocasiões, mas tente entender que usar uma gravata amarela no trabalho é uma atitute antiprofissional.

     - Você não gosta da minha gravata?

     - Não foi isso o que eu disse.

     - Com todo respeito, senhor Juarez, não é como se eu estivesse vindo trabalhar, digamos, de bermudas. Eu estou usando uma simples gravata. Além do mais, eu odeio gravatas, mas é obrigação usá-las, ok. Se eu tenho de usá-las, pelo menos uso de uma cor que eu gosto. Ela não piora meu desempenho, então não há problemas...

     - Mas o seu desempenho não é o caso, senhor Marcílio. O senhor é o profissional modelo, a não ser... por essa gravata! É só deixar de usá-la!

     - Não.

     - Não?

     - Eu cumpro prazos, faço vendas, uso terno no calor do verão e com o ar-condicionado estragado, ainda por cima. A gravata é o meu jeito de extravasar.

     - Você não vai tirar a gravata?

     - Não.

     - Bom, isso me obriga a adotar medidas drásticas...

     - Como o quê? Eu sou o melhor funcionário. Você não iria querer me perder. Esta reunião acabou.

     - Marcílio! Volte aqui!

     - Você mexeu num vespeiro, seu Juarez. Passar bem.

***

     - Pode entrar, seu Asdrúbal.

     - Bom dia, chefe. Vim reportar um comportamento inadequado do seu Marcílio. Ele está usando uma gravata com desenhos de personagens da Looney Tunes. Isso está causando um grande rebuliço no escritório.

     - É mesmo?

     - Sim. As pessoas perguntam se ele sabe o que está fazendo, se ele não tem medo de levar uma repreensão, mas ele insiste em dizer que está blindado. O seu Marcílio está zombando da empresa.

     - Sei...

     - Chefe, gostaria de sugerir um plano de ação...

     - Qual?

     - Demita o funcionário rebelde. Seu mau-comportamento irá se espalhar como um vírus. É preciso acabar com o câncer antes que ele germine. Dê o exemplo para o resto do escritório.

     - Eu não sei, o seu Marcílio é o nosso melhor funcionário.

     - Pense nisso como a amputação de uma perna para salvar o resto do corpo. E, caso o seu Marcílio faça falta, você pode me promover a chefe de vendas, já que as minhas vendas vêm crescendo a níveis...

     - Bom, acho melhor esperar para ver o que o Marcílio está tramando. Seu Asdrúbal, preciso que o senhor fique colado nele e me reporte todas as ações dignas de repreensão.

     - Sim, senhor. Considere cumprido.

     - E me traga um café. Esse está frio.

     - Sim, senhor. Num piscar de olhos.

     - Ah, duas colheres de açúcar, sim?

     - Com certeza, meu amo... digo, chefe.

***

     - Chefe, chefe!

     - O que foi, seu Asdrúbal?

     - O seu Marcílio... o resto do escritório... venha ver!

     O seu Juarez sai da sala com o seu Asdrúbal e vai para o grande escritório onde os vendedores trabalham. Todos estão usando gravatas numa profusão de cores absurda: vermelho, roxo, amarelo, laranja. A mandíbula do seu Juarez cai.

     - Quem é o responsável por isso!?

     - Seu Juarez, que prazer ver o senhor! Como vai?

     - Seu Marcílio, o que é isso na sua gravata?!

     - São pelos. Legal, não? Eles não se contentaram em desenhar uma mulher nua, também quiseram adicionar um efeito 3D...

     - Ora você. Eu vou, eu vou lhe...

     - Vai o quê? Estamos todos ouvindo.

     - Eu vou... seu Asdrúbal!

     - Sim, chefe!

     - Vamos para a minha sala!

     - Sim, senhor!

     Seu Juarez e seu Asdrúbal voltam para a sala de Juarez. Este se senta em sua mesa e põe as mãos no rosto.

     - É o pandemônio...

     - Chefe, para mim está claro o que o seu Marcílio está tramando. Ele quer derrubá-lo e pegar o seu cargo. Para isso, ele o está desacreditando na frente dos outros funcionários.

     - É pior que isso, é uma revolução... ele quer fazer uma revolução no escritório...

     - Faça o que eu disse: despeça-o enquanto ainda é tempo!

     - Eu não posso, Asdrúbal! Não vê? Ele iria embora como mártir! A bomba iria explodir toda na minha cara. Todos iam passar a me desobedecer. Um Poder só é Poder quando há pessoas que o obedecem. Seria o meu fim...

     - O que fazer?

     - Eu tenho que minar o poder das gravatas. Mas como? A não ser... já sei!

     Seu Juarez sai correndo de sua sala e adentra no escritório:

     - Escutem todos! À partir de amanhã, não é mais obrigatório o uso de gravatas no ambiente de trabalho! Rará, é isso mesmo! Ninguém mais é obrigado a vir engravatado para trabalhar! Por isso, podem tirar essa forca ao redor dos seus pescoços, a opressão terminou!

     Todos ouviram o seu Juarez em silêncio. Ele, arfante ao final do discurso, observou as caras neutras de seus funcionários. Então, todos voltaram ao trabalho.

     - Eu acho que eu consegui, Asdrúbal. Eu acho que eu consegui. Estou suando: me busque uma toalha.

     - Sim, mestre... digo, chefe.
    
***

     - Eu não acredito.

     No dia seguinte, todos os funcionários vieram usando bermudas e chinelos de dedos. E gravatas.

     - Eu não entendo, Asdrúbal... eu liberei as gravatas... por quê?

     - Essa é uma atitude totalmente não profissional, chefe. As bermudas então, nem se fala.

     - Eu sei, infeliz! Eu só... Opa, lá vem ele.

     Seu Marcílio entra na sala de seu Juarez, com suas bermudas, seu chinelo de dedo e sua gravata amarela.

     - Boa jogada, Juarez. Pena que falhou.

     - Seu maldito! Eu vou esganá-lo, seu infeliz!

     - Opa! Não toque em mim. Lembre-se que eu estou blindado. Fazer qualquer coisa comigo seria suicídio.

     - Por quê, Marcílio, por quê?

     - Por quê? Porque o senhor representa tudo o que ainda há de podre no sistema trabalhista! Toda a tirania dos chefes que acham que podem ditar o modo de vida de seus trabalhadores, o que fazer, quando comer, o que vestir. O senhor simboliza toda uma repressão sem sentido que nos faz ter de vir trabalhar em pleno verão, de terno preto e sapato, com a joça do ar-condicionado estragado! Por que você não manda consertá-lo? A sanidade mental dos seus funcionários não é importante?

     - Isso é por causa do ar-condicionado?

     - Vai muito além do ar-condicionado.

     - Mas eu cedi! Eu permiti que os funcionários viessem sem gravata! Não é isso o que você queria?

     - Ah, chefinho, a gravata é apenas um símbolo. Não é porque não precisamos mais ter uma corda em volta do pescoço que estamos livres de amarras. Ainda somos controlados por um senhor de terno preto e gravata no pescoço. A única forma de sermos livres é derrubando a ditadura corporativa dos homens de terno!

     - Eu não acredito... você realmente quer fazer uma revolução...

     - A classe operária tomará conta dos meios de produção! Basta de opressão! Viva Lênin! Viva Marx! Viva Che!

     - Asdrúbal! Tire ele daqui!

     - É pra já, chefe.

     - Ei, tire suas mãos de mim, seu discípulo de engravatado...

     Asdrúbal expulsa seu Marcílio e fecha a porta. Suspira.

     - Eu avisei, chefe. O caos está instaurado. Eu quero que saiba que estarei com você enquanto o navio afunda.

     - Cala a boca, Asdrúbal! Ainda não acabou. O seu Marcílio fez um grande teatrinho onde eu fui pintado como o monstro escravizador. Tenho que mostrar que sou como eles, que sou humano. Mas como? A não ser...

***

     No outro dia, o seu Juarez foi trabalhar de gravata amarela. O amarelo da gravata do seu Juarez era muito mais amarelo que o amarelo da gravata do seu Marcílio. O seu Juarez fez questão de cruzar pelo escritório várias vezes, de forma a exibir sua nova aquisição. E, sempre que passava pelos funcionários, fazia um elogio:

     - Bela gravata, seu Dutra!

     - Gostei da cor, seu Carvalho!

     - Legal o tom, seu Pacheco. Rosa. Progressivo.

     - É roxo, chefe.

     - Ainda assim. Muito bom. Continue fazendo... essa coisa de usar... isso.

     Seu Juarez comprou uma gravata amarela para cada dia da semana. Ele tinha as gravatas amarelas mais chamativas do escritório. Desconfiava-se que o seu Juarez pintova suas gravatas com marca-texto, para elas brilharem mais. Pouco a pouco, os funcionários foram deixando de usar as gravatas exóticas; dada algumas semanas, todos já estavam trabalhando novamente de terno. Agora que o chefe aderiu ao hábito, não tinha mais graça. O protesto perdeu a sua razão de ser. Até o seu Marcílio passou a usar uma gravata amarela mais sóbria. Seu Juarez venceu.

***

     O que não quer dizer que ele parou de usar as gravatas amarelas: seu Juarez acabou gostando do acessório. Seu Marcílio tinha razão: elas realmente davam um sentimento de liberdade, de extravasar. Por causa delas, seu Juarez ia de bom humor para o trabalho. Desse jeito, tratava melhor os funcionários, que rendiam mais e realizavam mais vendas. Logo, a divisão do seu Juarez bateu todas as vendas das outras divisões. Seu Juarez foi chamado para uma reunião com os cabeças da empresa:

     - Seu Juarez, em primeiro lugar, parabéns pelo ótimo desempenho apresentado nos últimos meses.

     - Obrigado.

     - A sua divisão é a que mais vende, muito mais que a divisão B ou a C juntas, por exemplo.

     - Bom, temos que ver que uma toupeira vende mais que a divisão C.

     - Rarará, é verdade. Gosto do seu espírito, seu Juarez. Por isso queremos elevá-lo a diretor regional da empresa.

     - Uau! É mesmo!?

     - Com certeza. Você é nosso melhor funcionário. Ninguém bate o seu desempenho em questão de gerência. Só que...

     - O quê?

     - Bom, gerente regional é um cargo que exige que se transmita confiança e profissionalismo. E, para que você assuma o cargo, tem uma coisinha que gostaríamos que o senhor mudasse...

     - O quê? O que é?

     - A sua gravata amarela.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A cultura do ódio

     Não sei se vocês sabem, mas existem certas restrições impostas a jornalistas em ano de eleições. Não dá, por exemplo, para emitir opinião sobre propaganda eleitoral. Tudo para equilibrar o jogo democrático, afinal, se a mídia quiser fazer uma panelinha para falar só os podres de um candidato e só o lado bom do outro certamente o resultado da eleição é afetado. Esse é o motivo pelo qual tenho evitado escrever sobre política, apesar de ser o momento mais propício. Sim, provavelmente nada aconteceria a um simples blogueiro, em um blog que nem tem lá muitas visualizações, mas lei é lei, né.

     Só que dessa vez eu resolvi quebrar o silêncio, e por um bom motivo. Antes eu evitava publicar as minhas opiniões até mesmo para ser imparcial, o que eu acho necessário em período de eleição (não sou contra as restrições aos jornais nesse período), mas agora eu resolvi falar porque o que tenho para criticar acontece não com um ou com outro, mas com TODOS os candidatos. Todos os dois.

     O que é essa campanha de ódio que estamos vendo na TV? Os últimos debates se resumiram a trocas de farpas entre os candidatos. Propostas, necas. O essencial não é mostrar-se o mais bem preparado, e sim pintar o outro como um monstro que levará o país a um retrocesso perigoso e potencialmente sem volta. Isso é mentira: nem Serra nem Dilma ousariam alterar bruscamente um projeto de governo tão popular quanto o atual, tenha ele suas raízes no governo FHC ou Lula. O fato é que nenhum dos dois irá mexer no Bolsa Família, na Petrobrás ou na legislação sobre o aborto, nem reprivatizar ou privatizar loucamente as empresas. São pontos polêmicos, cujas alterações desagradariam a grande parte da população e condenariam o governo do potencial presidente mexeriqueiro ao ostracismo. Muito perigoso. O ideal é deixar como está.

     Ainda assim os dois lados acusam seus opositores de radicalização, como se os planos de governo fossem opostos. E cria-se ódio e mais ódio, e factoides, e os factoides geram agressão, e a agressão gera mais agressão, e os candidatos ao invés de mandarem parar com o baixo nível se fazem de vítima por agressões com uma bolinha de papel e uma bexiga suspeita. O correto seria pedir para os eleitores baixarem a bola, mas o clima de acusações mútuas está a levar o Brasil para um cenário no qual não importa quem ganhe, metade da população não vai gostar. E vai espernear.

***

     Não precisava ser assim, mas a agressão colou. Colou porque é bom odiar. É bom se dizer anti-alguma coisa. Os políticos só estão a dar ao povo o que o povo quer. É ótimo poder xingar irracionalmente qualquer coisa. Um meio-motivo já basta. Não é necessário um quadro imparcial da situação, é bom saber os fatos só o suficiente para poder ter ódio de alguém, sem saber os motivos que o levaram a fazer aquilo. O FHC privatizou porque é do mal. Não foi para renovar empresas sucateadas e sim para dar dinheiro aos estrangeiros. O PT fez o mensalão porque é do mal, e não para conseguir apoio num Congresso engessado onde a maioria era oposição. Ouvir só um lado da história é bom, porque dá motivos para odiar sem ter que entender. Entender é secundário. Entender dá menos motivos para odiar.

     Por que e quando começou essa cultura do ódio? Do ódio por prazer? Será que sempre foi assim? E os hippies, será que no fundo, por baixo daquela capa de paz e amor, eles não amavam odiar? Os alemães têm uma palavra para se referir ao prazer que temos ao ver o outro se dando mal. Como quando rimos ao ver uma vídeo-cassetada. Não tenho ideia de como é a palavra, deve ser alguma coisa cheia de consoantes, mas o fato é que esse prazer na dor alheia existe de fato. Está registrado no dicionário. O prazer na dor é o combustível do ódio. Odiar é querer ver o outro se ferrar, e se sentir bem com isso. Na Alemanha ou em qualquer outro lugar.

     Não acho que esse amor pelo ódio seja uma característica inata e sim algo adquirido com a falta de amor. Pois veja bem, alguém rejeitado, que não se adequa ao que é esperado dele, deve se sentir muito bem ao ver que não é o único tratado assim. Quem é a grande maioria dos fãs dos vídeos do Felipe Neto? São pessoas bem resolvidas ou adolescentes e pós-adolescentes, vítimas de bullying ou indiferença, que precisam provar, até para si mesmos, que existem pessoas mais ridículas do que eles e, portanto, mais merecedoras de um estigma social? Poderiam ser elas os alvos desses vídeos, mas não são, e por isso elas podem rir à vontade.

     Não é ótimo rir quando o lado menos aceito dos outros é exposto na internet, um lugar onde todos podem gerar ódio e ninguém precisa assumir sua identidade? Na internet todo mundo paga de foda e ninguém o é, senão não perderiam tempo em discussões nas páginas de comentários do Youtube.

***

     Não, não: essa cultura do ódio é recente e parte das exigências que a estrutura social atual pede de seus membros. É uma estrutura que exige o alcance de patamares altíssimos, que apresenta modelos ideais impossíveis de se alcançar, que reforça a competição ao invés da cooperação. Há um perfil ideal extremamente restrito de cor, sexualidade, poder monetário, beleza, felicidade e disponibilidade de tempo impossível de ser implantado em sua totalidade em uma mísera pessoa. Ninguém o é, e todos adoram jogar isso na cara uns dos outros.

     Essa cultura surgida na estrutura econômica subiu para a superestrutura cultural e agora alcançou a política. Nunca, desde a redemocratização, houve tamanha corrente de ódio. Isso ameaça a democracia de um jeito muito óbvio: como pode um presidente odiado por metade da população governar um país? Será que destruiremos anos de construção de uma democracia forte por isso, ódio? Odiar não por o presidente ter um programa de governo ruim, mas simplesmente porque ele não é o outro candidato?

     Eu não vou pedir para que no domingo vocês votem com consciência. Votem sem ódio. Só isso. Boas eleições.